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terça-feira, 13 de abril de 2021

JERÓNIMO DE SOUSA SECRETÁRIO GERAL DO PARTIDO COMUNISTA PORTUGUÊS FAZ HOJE ANOS - PUBLICO AQUI UMA ENTREVISTA DA REVISTA "SÁBADO" FEITA EM MAIO DE2005

 



www.sabado.pt 

Especial SÁBADO 12 anos. Entrevista de vida a Jerónimo de Sousa: "Ser-se comunista não é ser-se miserável." - Vida



Por trás do ar rude e do rosto marcado, há um homem que se emociona quando fala do neto e da infância. Jerónimo de Sousa insiste em dizer que é operário, apesar de ter largado a fábrica da MEC - Fábrica de Aparelhagem Industrial, há quase 30 anos.





















Como se chega a líder do PCP sem se passar pelas cadeias do regime e pela clandestinidade?
Nunca foi condição do partido ter o estatuto de prisioneiro antifascista. Aliás, uma das coisas interessantes do PCP é ter conseguido não fazer distinções entre os militantes de antes do 25 de Abril e os militantes do pós-revolução.

O PCP surge na sua vida por herança familiar?
Diria antes que foi resultado do meio em que vivia e da própria origem operária: nascido na cintura industrial de Lisboa e filho de operários. Enquanto crescíamos, ou assim que chegávamos à fábrica, havia naturalmente um contacto com o PCP, que nos levava a uma adesão, o que muitas vezes nem sequer significava filiação.

Como era a vida em casa dos Sousa, em Pirescoxe?
Era a vida normal de uma família operária. Com grandes dificuldades económicas, onde se aplica bem aquela expressão célebre de Soeiro Pereira Gomes: "Não tínhamos tempo de ser meninos." A fábrica era o destino inevitável assim que fizéssemos 14 anos, a idade legal para começar a trabalhar. Sabíamos que não valia a pena ter o sonho de ser quadro, intelectual ou de ter uma profissão liberal. Quando perguntavam o que queríamos ser, respondíamos que ou seríamos metalúrgicos na MEC, vidreiros na Covina ou operários químicos na Solvay.

Quando tomou consciência de que o destino era a fábrica?
Tinha essa ideia clara. Quando o professor perguntava, tinha sempre grande dificuldade em escolher a profissão. Aliás, foi o próprio professor primário, que um dia me disse que tinha de prosseguir os estudos, por achar que ia longe. 

O padre lá da freguesia também chegou a ter interesse pela minha evolução, porque eu sabia tudo sobre a Bíblia. 

O professor da primária colocou a questão de ter de ir estudar. Informei a minha mãe, porque ela era a matriarca. 

Ela, com um sorriso irónico, respondeu: "Pois, está bem. Mas vais estudar como? Não temos possibilidades de comprar livros. Quem é que paga o transporte para Lisboa?" Informei o professor, mas ele insistiu, dizendo que conseguia que fizesse a admissão à escola preparatória gratuitamente, e que depois teria condições de prosseguir. 

Assim fiz. Fui para a Escola Eugénio dos Santos, onde tirei o preparatório, mas depois vieram os 14 anos e com eles chegou a "lei" que era implacável. 

A minha mãe disse-me que tinha de ir trabalhar. Quando muito, podia estudar à noite.

Ainda fez o 4.º ano do curso Industrial...
Sim. Mas era um esforço tremendo. 

Aliás, na escola de Vila Franca, cheguei a falar com um professor de Português que tinha vindo de Coimbra e estava acostumado a lidar com as elites. 

Ele informou-nos de que numa escala de 0 a 20 nunca nos daria mais que 11 valores, porque éramos estudantes nocturnos e estávamos ali só para aprender o básico e não para evoluir intelectualmente. 

Então, descrevi-lhe o que era a vida de nos levantarmos às seis e meia da manhã, tomar o café quente de cevada que a velha preparava, arrancar com a lancheira de um lado e os livros do outro, ir a pé para a MEC, que ficava a três quilómetros de casa. Descrevi-lhe a fábrica e o trabalho muito duro a que estávamos sujeitos. 

Depois, sair às seis da tarde, agarrar novamente na lancheira e nos livros, seguir a pé até à Póvoa de Santa Iria e, no fim, ir para as aulas e regressar a casa à uma da manhã, a pensar no professor de português, que só me daria 11 valores por aquela redacção, como se dizia na altura.

O professor foi sensível a essa argumentação?
Não. Quando ele me deu os tais 11 valores dizendo que quem tinha 9 valores eram os medíocres e os mentecaptos, resolvi deixar de estudar.

Em sua casa ouvia-se a Rádio Moscovo. Como é que nunca foi importunado pela PIDE?
Dentro das casas procurávamos ouvir essas notícias, às vezes com alguma criatividade popular e superstição. Por exemplo, a ideia de ter um papel e um copo de água em cima da rádio para interferir em qualquer possível intercepção das notícias por parte da PIDE.

Onde nasceu?
Os filhos dos operários nasciam em casa, através do acompanhamento das "curiosas", que tinham algum jeito para parteiras.

O menino Jerónimo era bem ou mal comportado?
Era muito criativo. O meio em que vivia obrigava-me a despertar muito cedo para a vida, para a irreverência e para a descoberta. Chegávamos a casa muitas vezes à procura de comida, e as mães, com uma grande dificuldade financeira, mandavam-nos ir dar uma volta até à hora do jantar. Nesse sentido, havia sempre ali o Tejo, que era um recurso natural, havia sempre uma quinta próxima onde íamos à chinchada para arranjar alguma sobremesa. Nasci com 5,4kg, era um rapaz fisicamente sólido, assumia a liderança do grupo lá do bairro.

Alguma vez passou fome?
Se tivesse em conta apenas as disponibilidades familiares, passaria fome. Mas com sentido de desenrasca havia sempre um recurso. Andávamos dois ou três quilómetros até ao Tejo para aprender a nadar nos esteiros e apanhar camarões, caranguejos ou lamejinhas, que substituíam a refeição que não havia em casa.

Há alguma história de que se recorde?

Estamos a falar de crianças que eram autênticos capitães da areia. Quando acabávamos de nadar sem autorização dos pais, tínhamos sempre um esquema. Dirigíamo-nos ao apeadeiro de Santa Iria da Azóia, sabíamos o horário preciso dos comboios e quando é que havia descarga do açúcar que vinha das colónias ou de Cuba, transportado pelas velhas fragatas do Tejo. O guarda ia na cabina e os estivadores, que eram gente nossa, porque eram operários que iam ali fazer um gancho, davam-nos cobertura. Aproximávamo-nos rasteiros, estendíamos as boinas e eles com o gancho da descarga abriam as sacas e nós enchíamos os recipientes improvisados com açúcar de mel. Subíamos a ravina direitos a Pirescoxe e, quando chegávamos a casa e a mãe se preparava para nos chegar a roupa ao pêlo, oferecíamos o açúcar para evitar uma sova.

Como era a relação com os seus pais?
As mães eram mais fraternas, mais amigas. No meu pai, endurecido pela vida, os gestos afectivos não eram muitos. Tinha cinco irmãos e a distribuição da comida fazia-se de forma hierárquica. Os mais velhos, porque precisavam de trabalhar, tinham de ser alimentados melhor. Eu, sendo o mais novo, e a minha mãe éramos sempre os últimos a desfrutar da refeição.

Havia livros em sua casa?
Não. Os meus pais eram analfabetos.

O que fazem os seus irmãos?
Têm profissões variadas, mas todos de origem operária. À excepção do mais velho, que chegou a ser um alto responsável nas obras do metropolitano e nas obras da ponte 25 de Abril. Mas era um autodidacta. Tinha o ensino básico, mas era tratado por senhor engenheiro. Os outros eram operários típicos. Um era vidreiro, a minha irmã trabalhava na fábrica dos gelados da Olá, outro foi marceneiro e estofador.

Tem uma boa relação com eles?
Sim, com todos. A maioria é do partido. Há dois que são votantes do PS, mas temos uma bela relação.

Como brincavam?

Não havia brinquedos, tínhamos de os criar. Da fisga ao berlinde ou às bolas de trapos. Talvez o menos jeitoso para os fazer fosse eu. Como tenho 25 centímetros de palmo, como afinador de máquinas era um problema para apertar parafusos pequenos.

Namorava muito?
Tinha essa fama, tendo em conta que dançava e cantava bem. Era um rapaz de 1,80m, atrevido, irreverente, bem-parecido, que trabalhava numa fábrica onde a maioria eram mulheres. Era solidário com elas. Estava sempre disponível para lhes afinar a máquina para que o trabalho fosse menos penoso, o que levou a que nas primeiras eleições livres para a comissão de trabalhadores fosse o mais votado.

Quando despertou para a sexualidade?
Despertei muito cedo, porque éramos obrigados a ser adultos muito cedo.

Entre a beleza e a inteligência, o que prefere?
Não seria franco se não dissesse que uma mulher atraente é sempre uma mulher atraente. Mas valorizo muito a capacidade intelectual. Uma mulher interessante é sempre mais bonita do que uma simplesmente bonita.

Alguma vez embarcou na onda colectiva de libertinagem dessa época?
Não. Isso não significa que não fosse um fã dos Beatles, do rock ou do twist e que não vivesse intensamente esse período, embora sem desvarios.

Alguma vez experimentou drogas?
Não.

Nunca se sentiu tentado a fazê-lo?
Nunca me senti atraído nem tentado.

Como é que lida com a toxicodependência?
Com uma profunda compreensão e um sentimento de angústia em relação aos toxicodependentes. Fundamentalmente, eles têm uma base de doença, muito mais que uma opção, e precisam dessa compreensão, da ajuda e da contribuição da sociedade e particularmente do Estado.

Se um membro do Comité Central do PCP tiver um problema com drogas, o que lhe acontece?
Se isso acontecesse e, felizmente, neste momento não temos nenhum caso visível, aquilo que seria justo e necessário da minha parte e do resto do Comité Central era procurar recuperar esse camarada. Ajudá-lo, e não excluí-lo.

Falou do interesse do padre da freguesia por si. Alguma vez teve convicções religiosas?
Claro que sim. Fui baptizado quando tinha 8 anos. Acreditava em Deus e ia à missa. Mas quem foi o primeiro motivador da minha descrença foi precisamente um padre que, entretanto, tomou conta da paróquia. Resolveu abandonar o sacerdócio e a crença através de um casamento de conveniência com a filha de um ex-colonialista, um indivíduo rico lá de Santa Iria. Ele era muito católico, meteu a filha na sacristia e o padre considerou que era tempo de mudar de vida. Na minha reflexão de criança tive um choque. Se um padre, que é o mensageiro de Deus, não acredita, como é que hei-de acreditar? Foi o primeiro golpe na minha crença.

Sendo descrente, porque decidiu casar?
Casei pelo registo civil aos 19 anos. Houve um factor que pesou sobre essa geração: a guerra colonial. Partíamos para a guerra e, se namorávamos, era o selar de um compromisso com alguém de quem se gostava. Nunca havia a certeza do regresso.

Quando é que nasceu a paixão pelo teatro?
Com 17 ou 18 anos. Pertencia ao movimento cultural da colectividade 1.º de Agosto, em Santa Iria da Azóia.

Quando se estreou?
Numa peça muito ligeira, uma comédia. O Domador de Sogras era a peça em que tinha o papel principal. Depois disso ainda fiz A Forja, de Alves Redol, e o Felizmente Há Luar, do Luís de Sttau Monteiro, mas a tropa e a guerra interromperam essa minha veia.

E o fado, como aparece na sua vida?
Tinha a ver com outra característica daquela zona. Não o chamado fado fadado, ou fado marialva, mas o fado operário que também comunicava politicamente. Os mais velhos aproveitavam muitas vezes os piqueniques ou os convívios na taberna para cantarem o fado operário, onde a crítica e a contestação eram marcantes.

Como foi a experiência na guerra colonial?
Quando parti para a guerra já tinha uma consciência social e política muito grande. A luta contra a guerra colonial era um dos elementos da minha consciência.

Nunca pensou em desertar?
Não, porque o partido não defendia essa tese. Por outro lado, não tinha capacidade económica para fugir para o estrangeiro.

Foi mobilizado para onde?
Fui para a Guiné, integrado numa companhia de polícia militar. Ao fim de dois meses enviaram o meu pelotão, num processo claramente repressivo, para junto da fronteira com o Senegal, sem condições, sem armamento, sem viaturas, enfim, atirado aos bichos. Era uma missão quase suicida. Passámos lá 50 dias. A roupa desfez-se no corpo, o oficial enlouqueceu e eu, que era soldado, tive de assumir a responsabilidade de aguentar o drama.

Isso foi uma tentativa de eliminação?
Tudo levava a crer que sim. Quando chegámos ao local junto da fronteira, o jovem oficial que nos levou disse que estávamos numa aldeia controlada pelo PAIGC, não tínhamos comida nem utensílios para cozinhar, não tínhamos sítio para dormir, o que nos obrigou a cavar abrigos debaixo do chão. Ficámos sem rádio e sem viaturas. Tínhamos as G3 apenas com cinco carregadores. O rapazito disse-nos: "Vocês são fortes, são da polícia militar, por isso desenrasquem-se." Ao fim de 50 dias lá nos meteram num barco de amendoim e viemos pelo Geba abaixo para junto da companhia de polícia militar. Quando chegámos juntei os meus camaradas e afirmei que a partir dali nunca mais faríamos uma queixa de um soldado ou de um cabo. Quando muito, de sargento para cima.

Alguma vez deu um tiro na guerra?
Não. Isso foi um problema que ficou por resolver. Durante os 50 dias no mato interroguei-me sobre o que fazer se o PAIGC nos atacasse. Isso era um problema porque muitas vezes o instinto de sobrevivência se sobrepõe aos valores e às convicções. E esta era uma das angústias que eu tinha. Felizmente nunca resolvi a contradição.

Continua a viver com 750 euros por mês?
Continuo. Não sou funcionário do partido. Quando entrei para a Assembleia Constituinte, e depois para a Assembleia da República, obedeci ao critério estabelecido pelo PCP, que é: nem beneficiado nem prejudicado. Nesse sentido, tinha como referência a tabela salarial dos metalúrgicos.

Como é que se vive com tão pouco dinheiro?
Com dificuldades, mas não se esqueça de que é um salário médio. Imagine o que é viver com o salário mínimo. Convém esclarecer o seguinte: é um preconceito pensar que os comunistas gostam de ganhar pouco ou de passar mal. Não, os comunistas gostam das coisas boas da vida, de ter um estatuto e uma remuneração com dignidade, de ter qualidade de vida. Ser-se comunista não é ser-se miserável.

Quando se avaria alguma coisa, a torradeira ou a máquina de lavar, quem a arranja?

Se alguém arranja ou estraga sou eu. Mas a minha companheira usa uma expressão: "Quando mexes nas coisas geralmente sobram peças" [risos].

Já entrou no McDonalds?
Não.

É um preconceito contra um símbolo do imperialismo americano?
Não. É apenas uma reacção ao cheiro. Eu bebo Coca-Cola sem nenhum preconceito.

É um bom garfo?
Já fui mais. Mas é verdade que sou um apreciador de petiscos e gosto de os fazer.

Qual é o seu prato preferido?
Um bom peixe grelhado.

E qual é a receita que mais gosta de fazer?
Gosto de uma que aprendi com o Cunhal. É caracoleta cozida, limpa, com a parte comestível colocada de novo dentro da casca com um bocadinho de presunto, alho e manteiga e vai ao forno a gratinar.

escargot é um bocadinho burguês.
Mas é um petisco notável e de luxo.

Leu O Capital de Karl Marx?
Sim, claro.

Todo?
Será exagero dizer que li todo. Eu aderi ao partido sem ter lido O Capital [risos].

Só aderiu ao PCP após o 25 de Abril. Porquê?
A questão nunca se colocou em termos de entrar ou não entrar. O partido preferiu convidar-me para fazer parte de uma lista unitária no sindicato dos metalúrgicos, antes do 25 de Abril. Depois, fiquei surpreendido, porque é exagero dizer que houve uma adesão formal ao PCP. Cheguei à sede do partido e colocaram-me logo na primeira comissão concelhia de Loures, e eu sem saber o que era uma concelhia, tive de perguntar.

Que outros clássicos do comunismo leu?
A Mãe, de Gorky, ou A Jovem Guarda foram livros marcantes. Depois li algumas obras de Lenine. Foram tudo leituras posteriores à minha filiação no partido.

Se tiver de escolher entre um filme do Eisenstein e um do Coppola, qual prefere?
Sem dúvida, o Coppola.

Gosta do Steven Spielberg?
Gosto. A capacidade técnica e a criatividade fascinam-me.

Se uma das suas filhas chegasse a casa e lhe dissesse: "Pai, aderi ao Bloco de Esquerda." Como reagiria?
Teria de respeitar, mas seria um desgosto profundo.

E se a opção fosse pelo CDS?
O sentimento seria o mesmo.

Costuma brincar com o seu neto de 3 anos?
Sempre. Somos companheiros inseparáveis, desde jogarmos os dois à pancada até às grandes conversas, passando pelas brincadeiras mais acriançadas. Se queremos que as crianças gostem de nós, temos de nos pôr à altura delas.

Já foi aos Estados Unidos?
Já fui ao Brasil, ao Uruguai, ao Canadá. Aos Estados Unidos nunca fui.

Não sente curiosidade?
Sim, é um grande país.

Qual o político que mais admira?
O Álvaro Cunhal.

Ele foi um líder perfeito?
Não, de certeza que não. Ele próprio dizia que nenhum de nós na nossa vida, tanto revolucionária como pessoal, é um indivíduo perfeito.

Estaline foi um grande líder?
Estaline assumiu um papel histórico, numa fase concreta, que não pode ser silenciado por mais voltas que se dê. A contribuição do PC da União Soviética, dos seus dirigentes e do Exército Vermelho é incontornável. Sem prejuízo da avaliação que tem de ser feita do percurso político desse dirigente.

O capitalismo ainda é um papão?
É um estádio da história, tal como o feudalismo ou o esclavagismo. A vida está a demonstrar que o capitalismo não será o fim da história. É um mal para milhões de seres humanos que estão excluídos, desempregados, que vivem situações dramáticas, que morrem de fome. 

Entrevista publicada originalmente na edição 56 da SÁBADO, a 25 de Maio de 2005

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