Nada há de mais propício à eclosão da guerra que a projecção de uma imagem de fraqueza, e estas retiradas estratégicas ocidentais são, a esse título, preocupantes.
Paulo Casaca*, em Bruxelas | Jornal Tornado | opinião
As retiradas ocidentais
Depois de Biden chamar assassino a Putin, os EUA multiplicarem sanções e denunciaram a maior concentração de tropas russas junto da fronteira ucraniana desde 2014. Finalmente, a diplomacia turca divulgou um pedido dos EUA para a passagem de dois destroieres americanos em direção ao mar Negro.
Ainda de acordo com a reportagem da Defense News, a Rússia terá respondido que os exercícios militares iriam continuar por mais duas semanas e, mais importante ainda, anunciou o bloqueio do estreito de Kerch – que corta a comunicação entre as costas ucranianas do Mar Negro e as do mar de Azov.
Na sequência destes desenvolvimentos foi anunciada a anulação da passagem dos dois destroieres americanos para o Mar Negro, sendo pouco claro saber se se tratou de uma gestão da informação pouco amistosa por parte da Turquia – que tem necessariamente de ser notificada da passagem de vasos militares pelos Dardanelos – ou se se tratou de uma retirada decidida pelas autoridades americanas perante o reforço do dispositivo militar russo.
Este recuo da Armada Americana, real ou apenas sentido, do principal palco dos confrontos teve naturalmente o efeito de um balde de água fria junto das autoridades ucranianas que vêm este último desenvolvimento com legítima preocupação, dado que tem sido sobre a costa ucraniana do mar de Azov que a pressão russa tem sido mais óbvia.
Deixar passar em claro as jogadas hostis dos adversários é mau, mas anunciar contra eles medidas que não são levadas à prática é pior. Mais preocupante ainda é a impressão de que todo o crescendo de declarações anti russas da Administração Biden serviu apenas para que não se falasse de duas retiradas estratégicas americanas de maiores consequências, a de duas décadas de presença no Afeganistão e a decorrente da disponibilidade unilateral para retirar sanções ao Irão, abrindo assim o caminho para o prosseguimento do programa nuclear iraniano.
Nada há de mais propício à eclosão da guerra que a projecção de uma imagem de fraqueza, e estas retiradas estratégicas ocidentais são, a esse título, preocupantes.
Recomposição no Indo-Pacífico
Desde meados do mês de Março assistiu-se a mais uma manifestação de força chinesa nas frentes taiwanesa e filipina do Mar do Sul da China que passou pela utilização um porta-aviões e de centenas de embarcações, supostamente de pesca mas que são com efeito militares.
A armada norte-americana, neste caso, respondeu de forma adequada com uma presença equivalente e realizando exercícios navais conjuntos com as Filipinas. Por outro lado, a França mostrou-se interessada na participação da principal aliança em formação na região, até hoje conhecida pelo nome de ‘Quad’ e que une os EUA, a Austrália, a Índia e o Japão.
Os exercícios navais conjuntos indo-franceses, sucedidos por outros no quadro do ‘Quad’ no Golfo de Bengala levaram a sonoros protestos por parte de Pequim mas parecem ter sido claros na mensagem de determinação que enviaram. Recorde-se que, na margem oriental do golfo, o golpe de Estado militar na Birmânia de 2 de Fevereiro foi precedido, quinze dias antes, por uma muito significativa reunião entre o Ministro dos Negócios Estrangeiros da China e o líder militar do golpe Min Aung Hlaing.
A forma como a China multiplicou os protestos e ameaças perante os exercícios navais indo-franceses mostra como ela se vê já como potência directamente implicada. No contexto da ASEAN, a China é a referência para as duas ditaduras militares da Tailândia e da Birmânia, dois Estados cliente que são o Laos e o Camboja influenciando de forma diversa os restantes com excepção do Vietname que se lhe opõe frontalmente.
A derrocada ocidental no Afeganistão, por outro lado, prenuncia uma chegada ao poder dos talibã, um tremendo recuo civilizacional para os afegãos e um aumento substancial da instabilidade no país e na região. Tanto a China como a Rússia mostraram-se mais empenhados em se ver livres da presença ocidental do que em acautelar as potenciais consequências de um novo centro jihadista. Isto é particularmente verdade para a Rússia e para os Estados da Ásia Central integrados na sua esfera de influência, dado que o programa chinês de erradicação da identidade religiosa e étnica no Turquestão Oriental parece ser intransponível para qualquer penetração talibã.
Os talibãs estão longe de constituir uma força unificada, com o Irão a disputar hoje a influência do que no princípio foi uma pura emanação paquistanesa, sendo claro que nem uns nem outros garantem o controlo absoluto do grupo, o que poderá complicar os cálculos chineses de projecção no Índico Ocidental.
A emergência de uma nova aliança euro-árabe-israelita
Reuniu este fim-de-semana passado uma cimeira das diplomacias grega, cipriota, israelita e dos Emirados Árabes Unidos em Paphos com uma agenda em que a ameaça nuclear iraniana apareceu implicitamente como o ponto mais importante (destacado em título pela Al Arabiya).
O acordo nuclear iraniano de 2015, que a administração Biden afirma pretender ressuscitar, nunca foi mais do que o assentimento à emergência do Irão como potência nuclear coberto por uma massiva campanha de desinformação e propaganda. Se em 2015 se tratava de uma tragédia, em 2021 aproxima-se mais de uma comédia em que ninguém pode continuar a fingir que acredita no que o acordo pretensamente pretendia atingir.
Desde que, em Janeiro de 2016, o Presidente Xi e o líder espiritual Khamenei deram o seu assentimento ao acordo de cooperação estratégica, como eu acentuo no meu artigo do International Policy Digest, a cooperação sino-iraniana passou a ser estrategicamente mais determinante do que qualquer potencial cooperação irano-ocidental.
A recriação de uma cooperação irano-ocidental para dominar o mundo árabe, que seria uma tentativa de voltar aos tempos da pré-revolução islâmica, e que foi alimentada por praticamente todas as administrações americanas que antecederam a de Donald Trump, foi sempre um absurdo que simboliza a incapacidade das elites ocidentais entenderem o que por vezes apenas precisa de um mínimo de bom senso para ser entendido.
O facto decisivo nesta matéria foi a segunda sabotagem israelita do dispositivo nuclear iraniano de Natanz em menos de um ano. A credibilidade do dispositivo militar dos guardas revolucionários islâmicos para produzir a bomba nuclear foi severamente posta em causa.
A sombra deixada pelo acordo estratégico sino-iraniano, e a incapacidade ocidental para dar credibilidade a qualquer acordo, levam a que se torne virtualmente impossível convencer quem quer que seja da racionalidade da aproximação irano-ocidental.
Tão ou mais importante do que a formação da aliança euro-árabe-israelita esboçada em Pathos foi a massiva manifestação iraniana contra a transformação do seu país num satélite da expansão chinesa para o mundo árabe.
A diplomacia chinesa, tal como a ocidental, pode estar a cometer o enorme erro de subestimar a capacidade dos iranianos para se revoltar contra o poder ditatorial, e isso poderá levar à derrocada da sua projecção no Índico Ocidental.
* Paulo Casaca -- Foi deputado no Parlamento Europeu de
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