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terça-feira, 27 de abril de 2021

Quando a PIDE pagou a conta


 visao.sapo.pt 



  • ABRIL DE 2015

Apesar dos sobressaltos da revolução, a partir do momento em que assumiu a pasta da Administração Interna, em julho de 1974, o então tenente-coronel Manuel Costa Braz não se desviou um milímetro do seu objetivo: criar as condições para cumprir a principal promessa do MFA, a realização de eleições livres para uma Assembleia Constituinte no prazo de um ano.

Com rigor mecânico, pôs em andamento uma máquina, lubrificada pelo voluntarismo de muita gente movida por ideais democráticos. Convidou juristas a elaborarem o quadro jurídico para a intervenção cívica da população, incluindo a Lei Eleitoral e criou o Secretariado Técnico dos Assuntos Políticos (STAP), que ocupou no Ministério da Administração Interna a sala que servira de gabinete a Silva Pais, o último diretor da PIDE/DGS.

Uma das missões mais bicudas a que deitou mãos foi o recenseamento eleitoral, a chave-mestra para umas eleições livres e justas. “O recenseamento eleitoral, a iniciar quanto antes, há de ser o mais amplo e sério de quantos de realizaram em Portugal”, vaticinou por esses dias Francisco Sá Carneiro, líder do PPD.

Seria um recenseamento completamente novo. Nada teria a ver com o último realizado pelo Estado Novo – voluntário, limitado e sujeito a requerimento.

As pessoas sentiram-se impelidas a legitimar a revolução. 

Queriam votar. 

E entre dezembro de 1974 e janeiro do ano seguinte formaram longas filas à porta das juntas de freguesia para se recensearem. Uma delas foi Jorge Miguéis, atual secretário-geral adjunto do Ministério da Administração Interna. Algumas juntas, como a de Santo António dos Olivais, onde ele se recenseou, tiveram de se desdobrar, criando delegações, para conseguir dar conta do recado. “Ao final do dia, as pessoas iam para a fila depois do trabalho. E o recenseamento estendia-se pela noite dentro”, recorda. Miguéis viria, dias depois, a integrar o STAP e a acompanhar de perto todo o processo.

O recenseamento deveria ter ocorrido entre 9 e 29 de dezembro de 1974. Mas estendeu-se pelo janeiro adentro. “Entrei no STAP a 25 de janeiro e o recenseamento ainda estava a decorrer”, recorda Miguéis.

Costa Braz, atualmente hospitalizado, lembrava há dois anos, numa entrevista para a edição online do jornal regional Mirante (do Ribatejo), que recensear os eleitores saiu relativamente barato. “O que se gastou no recenseamento foi dinheiro que eu tinha no cofre do gabinete, oriundo da PIDE/DGS”, disse.

Com os pseudocadernos eleitorais da ditadura a apresentarem 1,8 milhões de eleitores inscritos, o governo provisório de então estimava que fossem inscrever-se uns 5,5 milhões de eleitores. 

Mas o recenseamento ultrapassou todas as expectativas ao registar 6 231 372 portugueses.

“O povo português deseja a realização de eleições no prazo prometido no programa do MFA, como ficou demonstrado pela afluência espetacular ao recenseamento”, comentaria pouco depois Mário Soares, então líder do PS, ao Expresso.

A data fixada para as eleições na lei eleitoral foi o dia 31 de março de 1975. 

Mas acabou por ser mudada para 12 de abril. E, depois, para 25 de abril. Exatamente um ano após a Revolução dos Cravos.

O sobressalto provocado pela tentativa de golpe de Estado, liderada a 11 de março por António de Spínola, e a consequente radicalização do processo revolucionário, quase levara a um adiamento sine die do escrutínio. A questão foi acaloradamente discutida na chamada “assembleia selvagem” do MFA, realizada na noite de 11 para 12 de março.

Mas vingou a tese de que a revolução deveria ser legitimada nas urnas. 

Segundo recordou Diogo Freitas do Amaral à VISÃO, terá sido o próprio Presidente da República, general Costa Gomes, a empenhar a sua palavra de que os portugueses iriam a votos no prazo definido pelo MFA. Gosta Gomes terá mesmo chegado a ameaçar demitir-se da presidência e da chefia das Forças Armadas.

Enquanto isso, Costa Braz foi substituido na pasta. Manteve-se, porém, à frente do processo dinamizando as suas equipas, que não desmobilizaram.

O recenseamento estava feito. Mas se recensear 6,2 milhões de pessoas foi um bico de obra, pô-las a votar seria outro idêntico. O STAP articulava-se com o MFA na operação logística, comandada pelo oficial da Marinha Camões Godinho, secundado por Jorge Coelho, então com 20 anos e que mais tarde viria a ser ministro nos governos socialistas de António Guterres. “Foi uma autêntica operação militar”, recorda Coelho.

Havia muito para fazer: que urnas de voto escolher, qual a configuração das câmaras de voto para garantir o segredo do sufrágio? Havia que escolher um papel com uma gramagem especial, totalmente opaco, para imprimir boletins. Mas isso foi a parte fácil.

As urnas e as câmaras de voto foram inspiradas no modelo inglês, o papel foi oferecido pelo governo sueco, liderado pelo social-democrata Olof Palme, a impressão dos boletins foi assegurada pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda. 

Com tudo isso tratado, havia ainda que fazer chegar, no limite na antevéspera das eleições,todo esse material às assembleias de voto instaladas nas mais de quatro mil freguesias.

O recenseamento e a logística envolveram, segundo Coelho, dezenas de milhares de pessoas em todo o País, tendo as comissões de administração municipal e de freguesias (embriões das futuras autarquias) desempenhado um papel importantíssimo num processo que o antigo dirigente socialista descreve como “a construção de um país novo”.

“Nessa altura havia cidadania a todos os níveis”, afirma. Nem pessoas nem instituições regatearam esforços para tornar possível a promessa da madrugada libertadora de 25 de Abril de 1974.

O MFA empenhado na operação logística, que tinha a Base Aérea de Monte Real como epicentro. “Foi aí que se planearam todas as ações entre o STAP e os militares”, conta Jorge Coelho.

Envolvidos em todo o processo estiveram também a PSP e a GNR, garantindo, entre outros aspetos, que os materiais chegassem em segurança a todos os cantos do País, ilhas incluídas. “Tudo estava programado ao milímetro”, afiança Jorge Coelho, recordando, com ironia, a propósito um episódio ocorrido na ilha do Corvo.

O mau tempo que se fazia sentir no arquipélago impediu o desembarque dos materiais, quer de barco quer de avião. Mas, como recorda o antigo dirigente socialista, “aquilo era uma operação militar que tinha de ser executada”.

E, como nas operações militares, houve um plano B: as urnas, câmaras de voto e boletins regressaram à ilha Terceira. 

Aí foram metidos num helicóptero da Força Aérea, que manobrando em condições atmosféricas complicadas, os descarregou. Tudo para que 272 corvenses (de 301 inscritos) pudessem votar, exatamente um ano após do derrube da ditadura.

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