Não havia necessidade
A desfaçatez da agressão diplomática recente do embaixador dos EUA em Portugal a propósito das relações de Portugal com a China, não está nada longe da linha de Carlucci.
Há coincidências interessantes. Publicado no mês que agora acabou, o novo romance do insuspeito Mario Vargas Llosa “Tempos Duros” ficciona em torno da história real do golpe da CIA na Guatemala, em 1954. Escreve-se na contracapa uma tese central: “Por detrás desta acção violenta está uma mentira que passou por verdade e que mudou a história da América Latina – por parte do Governo de Eisenhower – de que Árbenz, um líder moderado encorajava a entrada do comunismo soviético no país e no continente.
No mesmo mês, a Revista do “Expresso” de 12 de Setembro publicava, do historiador Lourenço Pereira Coutinho, o texto “O dia das mentiras – o caminho para o golpe militar de 1964 no Brasil”. Que conclui o mesmo assim: “O golpe militar de 1 de Abril de 1964 foi encarado pelos seus apoiantes como o início de uma contra-revolução que estancou o processo de uma revolução comunista. Mas seria verdade?” Através de Almino Afonso, ministro do trabalho de Goulart, responde: “Terá sido, pois um equívoco do dia das mentiras, mas que custaria a vida a muitas e muitas pessoas e suspenderia a democracia brasileira por mais de 20 anos”.
Refere o texto que o golpe teve a intervenção do então Presidente dos EUA Johnson e da CIA, e como notícia de enquadramento uma “frota naval norte-americana (que) já navegava rumo ao Atlântico Sul, apostada em apoiar o esforço militar dos revoltosos.”
A novidade destas abordagens não é certamente a constante histórica da intervenção ianque na América Latina, ontem, trasanteontem e hoje, como se aqueles Estados, nações e povos, fossem de facto o seu quintal das traseiras. O notável é perpassar a assumpção da tese da não necessidade dessa agressão por haver “mentira”, “equívoco” na sua justificação. Não havia risco de comunismo e logo… Se houvesse, se fosse verdade, outro galo cantaria.
A desfaçatez da agressão diplomática recente do embaixador dos EUA em Portugal a propósito das relações de Portugal com a China, não está nada longe daquelas concepções. E bem podem reagir PR e MNE. De facto, os que louvaram e louvam a intervenção de Carlucci em Portugal e não viram nenhuma questão no baptismo da residência do embaixador dos EUA em Lisboa, de Casa Carlucci, assumem agora uma indignação que cheira à légua a hipocrisia. Como se diz no “Expresso”, a entrevista do Embaixador foi feita na Casa Carlucci: “onde Frank Carlucci e Mário Soares conspiravam nos idos de 1975” exactamente para sabotar a Revolução de Abril, inventando um golpe comunista para assim justificar a contra-revolução que puseram em marcha para a destruir!
Aliás, na sua singeleza de negociante rasteiro, o embaixador, lembrando o jantar em São Bento com o primeiro-ministro, para celebrar o negócio da compra do Novo Banco pelo Lone Star, não deixa de ameaçar sobre a obrigação de cumprir a salvação do mesmo e engordar o Lone Star pelo Fundo de Resolução. E invocando duas vezes a “influência maligna da China”, não deixou nada de fora das ameaças, para lá do Novo Banco: o 5G e a Huawei, a Mota-Engil e a CCCC, o futuro titular do terminal de gás de Sines… Mas, estando há algum tempo no país, o senhor embaixador já devia saber que nós resolvemos facilmente, há muitos séculos, problemas de “influência maligna”, com uma pouca de água benta.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.
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