A poucos dias da votação do Orçamento do Estado para 2021 na generalidade, Mariana Mortágua explica quais são as diferenças que separam o Bloco e o Governo nas negociações: investimento no SNS e contratação de profissionais, uma prestação social que tire de facto as pessoas da pobreza, ou a alteração da lei laboral que previna a vaga de despedimentos que se aproxima. Também o fim da transferência de dinheiros públicos para o fundo abutre Lone Star é uma prioridade, porque "um partido com a noção do que aí vem e do país que vamos ter em 2021 não pode permitir que isso aconteça", defende a deputada bloquista.
Como é que o Bloco avalia a execução das medidas negociadas com o governo no anterior orçamento?
Houve um conjunto de medidas que estavam presentes no orçamento para 2020 e que nós negociámos tendo em conta uma grande prioridade que temos tido ao longo dos últimos anos que é a saúde. Identificámos há muito tempo a necessidade de reforço de investimento, de profissionais, não só de médicos.
Vamos acabar o ano de 2020 com menos médicos do que tínhamos no início do ano, ao contrário do reforço que tinha sido acordado.
Depois de termos aprovado a nova Lei de Bases da Saúde com o Partido Socialista, inscrevemos no orçamento para 2020, entre outras medidas, a contratação de 8.400 profissionais para a saúde, o investimento em meios complementares de diagnóstico - aqueles exames que as pessoas têm de fazer no SNS mas que o SNS acaba por contratar a privados - e outros reforços, nomeadamente na área da saúde mental.
Nestas três áreas, o que viemos a constatar já no final do ano de 2020 é que nenhum destes compromissos acabou por ser cumprido. Vamos acabar o ano de 2020 com menos médicos do que tínhamos no início do ano, ao contrário do reforço que tinha sido acordado. Os concursos abriram muito tarde, já no final do ano, e portanto o SNS viu-se privado de ter os profissionais de que necessitava ainda mais em tempo de pandemia.
O investimento na saúde mental não foi realizado, e portanto estamos na estaca zero, como se não tivesse existido orçamento. O mesmo aconteceu ao investimento em meios complementares de diagnóstico
Já depois no orçamento suplementar que foi feito para responder à pandemia houve outras medidas que acordámos com o governo, entre elas um apoio social para os trabalhadores informais que também não saiu do papel.
E não há hoje um único trabalhador informal que tenha esse apoio. E, por isso, as negociações para o orçamento de 2021 foram marcadas também por este conjunto de compromissos que acabaram por não ser cumpridos da parte do Governo e que colocaram novas exigências às negociações para 2021.
O que seria preciso no orçamento responder à atual crise?
Este orçamento tem de ter uma resposta muito determinada à crise.
Temos de compreender qual é o contexto em que está a ser negociado o Orçamento para 2021. Não é um contexto de crescimento económico, não é um contexto em que estamos a fazer avanços e progressos que podem não ser muito imediatos mas que dão passos para o futuro. É um contexto de enorme crise social, económica, de saúde pública. E, por isso, este orçamento tem de ter uma resposta muito determinada à crise.
O Bloco elegeu quatro áreas, desde o início, que para nós eram importantes nesta resposta à crise: a primeira é a saúde, com a contratação de todos os profissionais que o SNS precisa e dando a estes profissionais as condições de que precisam para se manter no SNS.
Este foi um problema que nós identificámos em 2020. Os concursos até podem ser abertos mas as pessoas não ficam no SNS porque não têm condições para isso. Temos de garantir também que enquanto o SNS se foca na resposta à pandemia não deixa de lado todos os outros cuidados e tratamentos em que tem de investir.
A segunda resposta essencial é o trabalho. A crise mostrou-nos que os mais precários são as primeiras vítimas da crise. E por isso quisemos trazer para o orçamento medidas para combater os despedimentos, travar a vaga de despedimentos que se antecipa, encarecer o despedimento e portanto proteger as pessoas por essa via.
Mas também proteger as regras e condições de trabalho, através da contratação coletiva.
A terceira são os rendimentos. Numa crise, o pior que pode acontecer é as pessoas caírem na pobreza. Quem cai na pobreza, dificilmente sai dela. E nós queremos evitar que as pessoas caiam na pobreza garantindo que há uma prestação social que retira todas as pessoas da pobreza. E portanto tem de ter condições de recursos, regras de acesso, que permitam a todas as pessoas que dela precisam poder aceder.
Esta tem um horizonte de um ano, para cobrir o período da pandemia, mas deixa também passos para futuro: queremos uma medida que reestruture os apoios sociais no futuro de forma a dar uma proteção mais consistente, mudando as regras do subsídio social de desemprego, do rendimento de inserção, enfim, fazendo uma alteração mais estrutural.
A última prioridade que temos identificada neste momento é a questão do Novo Banco. Não só porque é necessário poupar os recursos públicos, mas porque também é necessário proteger o Estado da relação com um privado que se tem revelado predatória.
Porque é que a questão do Novo Banco é tão importante para este orçamento?
O Bloco sempre se opôs à venda do Novo Banco. Dissemos desde o início que a venda do Novo Banco era um erro, porque não protegeria o banco entregá-lo a um fundo abutre. Não protegeria o banco nem o país e as suas contas públicas. Na altura levámos esse tema a debate e dissemos muito claramente ao governo que estávamos dispostos a negociar uma outra solução e a apoiar o governo numa outra solução. Qualquer solução tinha custos, mas nós queríamos um investimento que permitisse que o banco ficasse em mãos públicas e servisse para apoiar a economia (o Novo Banco é o banco com mais ligação às PME em Portugal, coisa que a Caixa não tem). Era um ativo importante para o sistema bancário nacional e público.
O governo encontrou uma solução para o Novo Banco que não passa de um truque.
O governo rejeitou essa possibilidade, garantindo ao país que a venda à Lone Star protegia os interesses do Novo Banco e, acima de tudo, protegia os contribuintes. Todos nos lembramos do Primeiro-Ministro dizer que o Novo Banco não teria impacto direto ou indireto nas contas públicas. E lembro-me de ouvir o antigo ministro das Finanças Mário Centeno a dizer que não haveria nenhuma garantia pública para a venda do Novo Banco. O Novo Banco foi vendido com uma garantia de quase quatro mil milhões de euros e que está a ser completamente utilizada pela Lone Star. Nós procurámos travar essa venda, quisemos fazer esse debate e procurámos também que o orçamento tivesse regras para que a injeção no Novo Banco não fosse feita sem uma autorização expressa da Assembleia da República.
Esses nossos esforços foram sempre rejeitados com um acordo entre PS e PSD. Aliás, já no Banif se manifestou.
O PS e o PSD têm o mesmo entendimento sobre a banca e sobre as soluções para a banca. Não têm alternativas diferentes nesse aspeto. Acontece que entretanto, ao longo do ano de 2020, vieram a público um conjunto de notícias e de investigações jornalísticas que nos dão conta que o contrato não só é ruinoso do ponto de vista estratégico para o país, mas que pode estar a dar espaço à Lone Star para ter uma gestão abusiva desse mesmo contrato.
Cada decisão que a Lone Star toma na gestão do Novo Banco, na forma como regista perdas, na adoção de regras contabilísticas, na forma como vende os seus ativos, é uma conta passada ao fundo de resolução. E por isso o que dissemos é que o Estado não poderia continuar a garantir financiamentos ao Novo Banco ou que o Fundo de Resolução continuasse a garantir o financiamento ao Novo Banco enquanto não fosse feita uma auditoria à gestão da Lone Star.
Achamos que isto é o mínimo do ponto de vista da defesa do interesse público. E até do Estado, que tem de ter alguma dignidade e respeito na sua relação com privados. Entretanto o governo encontrou uma solução que não passa de um truque, que é dizer: “Bom, o Estado não empresta diretamente ao Fundo de Resolução para o Fundo de Resolução colocar no Novo Banco.
São os bancos que vão emprestar o Fundo de Resolução para o Fundo de Resolução colocar no Novo Banco. E o governo tenta convencer-nos com este truque que assim os contribuintes não são chamados e não têm nada a ver com o Novo Banco. A verdade é bem distinta disso. Porque o Fundo de Resolução neste momento é uma entidade que tem uma enorme dívida. Está tecnicamente falida. Essa dívida é uma dívida que os bancos devem ao Fundo de Resolução e que o Fundo de Resolução deve ao Estado.
O Fundo de Resolução é um negócio onde o Estado está metido até ao pescoço.
A dívida é tão grande, tão grande, que os bancos não a poderiam nunca pagar. Ou não poderiam nunca pagar de uma só vez. Então o que o Estado disse foi: “eu vou reestruturar esta dívida durante 20, 30, 40 anos, o tempo que for preciso para que os bancos consigam pagar essa dívida usando apenas o imposto que já pagavam”. Os bancos têm uma contribuição que é o imposto que pagam ao Estado e por isso o que o Estado disse foi “vou reestruturar-vos esta dívida para sempre, para sempre o tempo que for necessário, e vocês vão pagar esta dívida não com pagamentos adicionais mas com o imposto que já pagavam ao Estado e que eu vou consignar ao pagamento da dívida”. Imaginem que vocês pagam o vosso IRS e ao mesmo tempo têm uma dívida ao Estado e o que o Estado diz é “eu perdoo-vos a vossa dívida mas vou usar o vosso IRS para ir abatendo e vocês não têm de pagar mais IRS. Eu vou reestruturar a dívida para que o vosso IRS seja suficiente para me irem abatendo a dívida.”
Qualquer pessoa que tenha uma dívida ao Estado sabe que não é assim que o Estado se comporta. Portanto, é óbvio que o Fundo de Resolução só existe porque é garantido pelo Estado e porque é uma dívida pública, o Estado endividou-se para pôr lá dinheiro e está a usar os impostos da banca para se ir pagando ao longo do tempo. É um negócio entre o Estado.
Este empréstimo que os bancos vão fazer ao fundo de resolução será pago exatamente da mesma forma. Será pago com os impostos que a banca paga ao Estado e que o Estado envia para o Fundo de Resolução. Portanto é impossível dizer que o Fundo de Resolução é um negócio entre bancos.
O Fundo de Resolução é um negócio onde o Estado está metido até ao pescoço e só existe porque o Estado consigna as suas receitas de impostos ao Fundo de Resolução.
O que está no orçamento é um truque e é importante que isso seja claro. Mas também julgamos que o Estado tem uma posição negocial a defender junto do Lone Star e deve exercê-la. Para proteger até o Novo Banco. Porque daqui a uns meses a Lone Star deverá ter esgotado a garantia e das duas uma: ou o Novo Banco continua a dar prejuízo e a Lone Star vem pedir a conta ao Estado e não protege os contribuintes, ou então o Novo Banco dá lucro e a Lone Star vai vendê-lo a outro fundo abutre ganhando o lucro depois de ter sido limpo com os impostos do Estado. Em caso nenhum o Novo Banco ficou protegido.
O que separa o Bloco do PS no debate sobre o próximo orçamento?
O PS tem dito muitas vezes que o orçamento responde a tudo aquilo que o Bloco pedia. E é fácil quando falamos genericamente sobre saúde, apoios sociais, emprego, podemos dizer que estamos todos de acordo porque estamos de acordo com princípios.
A questão é saber como é que estes princípios se concretizam. E se esses princípios vão ter alguma alteração na vida das pessoas que vai ser muito dura no próximo ano ou se esses princípios se vão traduzir em promessas que depois são uma desilusão no futuro.
A nossa grande preocupação é que as medidas e os objetivos anunciados pelo governo, que são também objetivos do Bloco, tenham uma tradução efetiva.
E por isso o que nos separa neste orçamento não são meros detalhes, não são caprichos, é a diferença entre ter medidas que tenham um impacto na vida das pessoas ou não tenham.
Exemplos: nós podemos acordar a contratação de médicos e fica no papel que os médicos serão contratados, já foi assim em 2020 e eles não foram contratados, agora temos a responsabilidade, sabendo isso, de perguntar porque é que não foram contratados, ou sendo contratados porque é que não permaneceram no SNS. E hoje sabemos que há menos médicos no SNS do que em janeiro de 2020 porque os concursos se atrasaram, porque não há vagas suficientes na especialidade, porque a Ordem dos Médicos trava as contratações que são necessárias através do controlo que tem nos concursos e porque o SNS não tem incentivos para os profissionais se manterem no SNS.
Alguém dizia hoje que no Algarve abriu um grande supermercado ao pé do hospital e o hospital ficou sem técnicos operacionais porque as pessoas foram trabalhar para o supermercado, porque ganham o salário mínimo no hospital e não têm sequer uma carreira que os proteja, e portanto são completamente indiferenciados. Sabendo nós isto, hoje, nós temos a responsabilidade de não acordar apenas a contratação de médicos mas acordar as condições específicas como esses médicos vão ser integrados no SNS e as garantias para se manterem no SNS. Ou seja: dedicação exclusiva, o que quer dizer aumentos remuneratórios, condições de trabalho, menos horário de trabalho com a contratação de mais médicos e carreiras para aqueles que precisam de carreiras. E é isto que nos diferencia do Partido Socialista neste momento.
Vamos votar apenas aquilo que temos a certeza que vai funcionar na vida das pessoas.
Na área do Trabalho, o Partido Socialista e o governo dizem “queremos proteger o emprego”. Muito bem! Toda a gente quer proteger o emprego. A questão é saber como é que nós impedimos os despedimentos. Porque é impedindo os despedimentos que se protege os empregos. E por isso nós dizemos: para impedir os despedimentos é preciso não só colocar travões para que empresas que têm lucros possam despedir, porque isso é uma decisão que do ponto de vista estratégico para o país faz pouco sentido, o nosso grande objetivo é proteger o emprego, mas também temos de dificultar os despedimentos. E por isso uma das medidas mais importantes que temos em cima da mesa é repor o valor das indemnizações por despedimento. “Ah, mas o Bloco está a ir muito longe, está a colocar reivindicações que nunca foram ouvidas.” Há muitos anos que o Bloco tem esta reivindicação em cima da mesa. Aliás, o PS também a tem. Porque o PS, quando a troika alterou as regras de indemnização por despedimento, cortando-as para metade, foi contra essa alteração. Por isso, uma parte do que nós estamos a propor é uma posição que o Partido Socialista defendeu no passado. E que é justa. Tem a ver com dar às pessoas uma indemnização justa em caso de despedimento, tornando mais caro o despedimento, impedindo os despedimentos fáceis.
A terceira grande diferença que temos tem a ver com a prestação social. Mais uma vez é fácil dizer “é a mesma coisa”. Mas não é a mesma coisa. Porque as pessoas daqui a uns meses quando o subsídio de desemprego se esgotar ou pessoas que não tinham acesso a outros subsídios e que estavam ao abrigo das prestações extraordinárias que entretanto foram criadas, quando chegarem daqui a seis meses e não puderem aceder à nova prestação que o governo propõe porque não cumprem a condição de recursos - porque os apoios extraordinários não tinham essa condição de recursos - elas vão pedir contas ao governo porque foi prometida uma prestação que ia tirar as pessoas da pobreza. Só que ela não faz isso. O que ela faz é criar um apoio extraordinário para quem é muito pobre. Mas não basta para tirar as pessoas todas da pobreza. E por isso se uma das grandes bandeiras do Bloco é ter uma prestação que tirasse essas pessoas da pobreza, nós não podemos validar uma prestação que diz que vai tirar as pessoas da pobreza mas que nós sabemos que não vai. É uma questão de responsabilidade: votar apenas aquilo que temos a certeza que vai funcionar na vida das pessoas.
A mesma coisa com o Novo Banco: o governo diz que vai tirar o Novo Banco do orçamento mas nós sabemos que é um truque e sabemos que os contribuintes continuam a ser comprometidos com o Novo Banco.
E por isso um partido com a noção do que aí vem e do país que vamos ter em 2021 não pode permitir que isso aconteça. São essas as grandes diferenças e é isso que está em causa na viabilização do orçamento.
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