Região Norte deverá passar os dois mil casos na próxima semana e poderá chegar aos 3000. Peritos estão preocupados com o agravamento da situação e admitem que o risco de colapso do sistema é real. Atuais medidas podem não ser suficientes para abrandar crescimento exponencial.
Óscar Felgueiras, matemático especialista em epidemiologia da Universidade do Porto, que no início da semana alertou para o crescimento agora sem precedentes de casos na região Norte, confirma um agravamento da situação epidemiológica e alerta que a próxima semana deverá ser muito difícil para as equipas. No balanço de uma semana em que o país bateu sucessivamente recordes de novos casos e passou mais cedo a barreira das 2 mil novas infeções, com a região Norte a registar mais de mil casos diários, o investigador considera que neste momento o crescimento pode ser considerado explosivo. «Se compararmos os últimos sete dias com os sete dias anteriores, o crescimento do número de casos foi de 107%, ou seja, mais do que duplicaram. Na semana anterior tinha sido de 65% e na anterior 14%. Num crescimento exponencial é suposto este crescimento ser constante. Não é essa a situação atual, é pior».
Os dados disponibilizados esta sexta-feira pelo Instituto Ricardo Jorge sobre a curva epidemiológica e a evolução do RT indiciam um agravamento da situação em todo o país, com previsível aumento de novos casos.
O RT a nível nacional subiu para 1,27 no último cálculo do INSA, quando no relatório da última sexta-feira era de 1,10. O agravamento é notório no Norte, onde o RT sobe de 1,22 no final a semana passada para 1,36 nesta última análise, revela o relatório disponibilizado pelo organismo. Perante estes valores, Óscar Felgueiras diz que as projeções indicam que é praticamente seguro que serão ultrapassados os 2000 casos na região Norte. «Não é impossível haver algum dia em que sejam atingidos os 3000, caso as medidas tomadas não produzam efeito», diz o investigador, que no início da semana deixou também o alerta de que o aumento mais acelerado de casos poderia começar a colocar dificuldades à deteção e diagnóstico.
O SOL questionou a Direção Gera da Saúde e o Ministério da Saúde sobre o crescimento de casos na região Norte e a conjugação de um RT de 1,36 quando se registam mais de mil casos, uma situação sem precedentes.
Até à hora de fecho não foi possível obter resposta. Na conferência desta sexta-feira, não houve referências à evolução do RT.
O secretário de Estado da Saúde sublinhou a preocupação com a evolução do número de casos e a necessidade de toda a população aderir às medidas, reiterando que existe capacidade de resposta tanto no SNS24 como em termos de testagem – que triplicou em relação a março, disse – e nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde, em particular na região Norte e Lisboa, onde se registam a maioria dos casos. A preocupação durante a semana foi demonstrada no entanto por um médico das equipas de saúde pública da região e também no São João foram adotadas medidas para antecipar maior capacidade de internamento nos próximos dias.
Pressão no S. João semelhante a pico março e abril
Ontem à tarde, o diretor da urgência e medicina intensiva do Hospital de São João, Nelson Pereira, disse ao SOL que a pressão registada nos últimos dias já foi muito semelhante ao que se registou no hospital em março e abril. Na altura, o São João foi o hospital a sentir o impacto mais forte do aumento explosivo de doentes. Agora, mesmo havendo mais hospitais a responder à subida de casos no Norte – na altura o encaminhamento era apenas para os hospitais de primeira linha – nos últimos dias as urgências do São João receberam em média 150 a 180 casos suspeitos, pessoas com sintomas, e 25% a 35% deram positivo dependendo dos dias. Um cenário que, apesar das medidas tomadas para aumentar a capacidade, deixou as equipas mais apreensivas. «Temos 17 doentes em cuidados intensivos, o dobro da semana passada, e devemos chegar ao final do dia com 20.
É galopante. Acreditamos que nos próximos dias vamos continuar a subir e estamos muito preocupados», admitiu Nelson Pereira. «Esta semana não batemos o recorde que foi de 350 suspeitos no mesmo dia, creio que a 26 de março, mas foi na altura em que estava para entrar em vigor a fase de mitigação, os centros de saúde não estavam ainda organizados. Não é comparável por isso.
Em termos de pressão de urgência é muito semelhante. Em termos de pressão em enfermaria e cuidados intensivos ainda é mais baixo, mas temos o dobro das pessoas».
Quase 90% dos infetados diz o mesmo: baixaram a guarda
Quem são os doentes? São sobretudo jovens, mas também mais idosos, porque a infeção vai-se espalhando. Nelson Pereira diz que a maioria das pessoas, talvez mesmo 90%, fazem o mesmo relato: «Estiveram em contacto com alguém, com quebra de segurança, sem máscara e esse alguém entretanto deu positivo. É quase sempre no contexto familiar, lazer e proximidade com alguém conhecido. Há de ser muito pequena a percentagem de doentes que se infetam num contexto diferente».
Quando perguntam se já havia sintomas, a resposta muitas vezes é também comum, reforça o médico. «Dizem-nos ‘sim, por acaso já andava constipada’. E quando perguntamos por que é que estiveram juntos dizem também muitas vezes o mesmo:
‘Não pensei’. As pessoas depois sentem algum arrependimento, mas acaba por ser tarde de mais».
‘As pessoas pensaram que era um problema dos outros’
Para o médico, importa por isso mesmo uma maior consciencialização e auto-responsabilização social. «Ou por incapacidade por apreender a mensagem, ou porque a mensagem não está a ser passada da melhor maneira, as pessoas foram entendendo isto como um problema dos outros. Compreenderam bem o ‘vai toda a gente para casa, ninguém se mexe’, agora que se diz mexam-se à vontade mas com segurança não conseguiram fazer essa ligação. Há aqui uma sensação que só conhecem duas velocidades, oito ou oitenta, e tem que haver aqui uma velocidade intermédia», diz o médico, deixando um apelo: «Podemos manter alguma atividade social, até poderemos ir jantar fora com o nosso agregado familiar, mas não podemos fazer festas de amigos, estar no trabalho sem máscara, não podemos fazer uma pausa para fumar com um amigo e quebrar a segurança. É nestas pequenas coisas que está o busílis da questão, não é em grandes quebras e ajuntamentos mais mediáticos. Não estou a defendê-los e provavelmente há trabalho a fazer aí, mas é isto».
Nelson Pereira admite no entanto que o que assusta neste momento as equipas é a granularidade da epidemia, a forma como se chega a este ponto e está muito mais espalhada do que em março, o que se traduzirá numa enorme carga de doentes. «Está por todo o lado, quase não conseguimos identificar os surtos. A sensação é que as coisas estão de tal forma disseminadas que não há surtos. Quase toda a gente conhece alguém que está infetada ou em quarentena, o que é significativamente diferente do que aconteceu na primeira onda».
Sobre a tempestade que se aproxima dos serviços de saúde, admite que a estratégia de identificar, isolar e controlar poderá não ser viável a partir de certo momento, alterações que compete às autoridades de saúde avaliar, mas admite que a este ritmo de aumento de casos será difícil a realização de inquéritos e que mesmo o acompanhamento dos doentes que podem ficar em casa enfrentará dificuldades. Sobre o que é necessário neste momento nos hospitais, reforça a necessidade de uma resposta em rede, em que todos se preparem com antecipação para garantir resposta aos doentes. «Não basta dizer eu já fechei, é preciso que cada hospital se responsabilize pela efetiva implementação do seu plano de contingência e não estamos propriamente a assistir a uma resposta equitativa. Acabam os hospitais que mais esforço fazem, e abrem mais vagas, a ser mais pressionados. Somos centro de referência no Norte e Centro para o ECMO e temos de nos reservar para esses doentes que mais ninguém pode tratar», insiste. Reforça também o apelo para que sejam criadas rapidamente estruturas para receber doentes que não têm retaguarda familiar, os casos sociais que acabam por permanecer nos hospitais, o que já se está também a notar no São João com o aumento de casos de idosos internados. «Está previsto no plano de outono/inverno mas não temos visto ainda uma resposta articulada o suficiente».
Quanto à necessidade de mais medidas depois das anunciadas esta semana pelo Governo, insiste na necessidade de transmitir o risco atual à população. «As pessoas não estão a perceber a necessidade imperiosa de adotar estas medidas, se calhar daqui a uma semana vão percebê-lo da pior maneira. Quando se diz que há capacidade de resposta no SNS, é verdade, ninguém entrou em colapso, a questão é se estamos a introduzir medidas suficientes para que o número daqui a dez dias deixe de subir e perceber que isso não acontece no dia seguinte. Há o tempo que as pessoas demoram a ter sintomas, a procurar serviços de saúde, a piorar.
Se hoje tivermos 2600 pessoas infetadas, há uma percentagem que vai precisar de ficar internado e precisar de cuidados intensivos e não é hoje, é daqui a alguns dias. Não basta dizer que está tudo bem e há capacidade.
Há uma semana tínhamos metade dos doentes que temos hoje em enfermaria e cuidados intensivos. Se aumentou 100%, daqui a uma semana como vai ser?».
Óscar Felgueiras alerta também que, havendo folga no sistema de saúde, é um risco real que possa desaparecer caso continue a duplicação semanal dos casos. «Embora as medidas tomadas sejam no geral um passo no sentido correto, existe um claro risco de não serem suficientes».
sol.sapo.pt
Sem comentários:
Enviar um comentário