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terça-feira, 13 de julho de 2021

Licença para odiar: Como nasce uma filial dos Proud Boys em Portugal - "O Setenta e Quatro esteve 3 meses infiltrado no grupo de extrema-direita [...] fez o juramento de membro de pleno direito e foi nomeado responsável pelos recrutas. Conheceu os planos do grupo e as ligações ao Chega e neofascistas do Escudo Identitário"







O Setenta e Quatro esteve três meses infiltrado nos Proud Boys Portugal. Conheceu os seus líderes, a sua estrutura interna e o processo de recrutamento. Fez o juramento de membro de pleno direito e foi nomeado responsável pelos recrutas.

Reunidos em torno de uma mesa num terraço em Sintra, os membros votaram e a aprovação foi unânime. Meses de contactos e encontros presenciais iam finalmente culminar na adesão à tão prometida irmandade de homens que combatem o politicamente correto, a ideologia de género, o comunismo e a esquerda no geral. Faltava, no entanto, dar o grande passo: fazer o juramento.

Era o momento em que se deixava de ser recruta para se ser membro de pleno direito. Rodeado por seis membros e com um telemóvel a filmar, o “melhor recruta que já tiveram” repetiu as palavras que o presidente recitou. “I’m a Proud Western Chauvinist who refuses to apologize for creating the modern world [Sou um orgulhoso chauvinista ocidental que se recusa a pedir desculpa por criar o mundo moderno]”. Seguiram-se abraços e, depois, cervejas para festejar, as mulheres puderam regressar.

Não têm Facebook, Twitter, Instagram nem qualquer rede social pública e escondem os rostos sempre que aparecem em fotos. Usam apenas a rede social encriptada Telegram para recrutarem e se organizarem. Chamam-se Proud Boys Portugal e desde 2019 que mantêm relações próximas com a rede internacional com epicentro nos Estados Unidos e filiais na Europa.

O Setenta e Quatro esteve três meses infiltrado no grupo de extrema-direita: teve acesso a documentos internos, conheceu os seus líderes, a sua estrutura interna e o processo de recrutamento. Teve contactos digitais e presenciais com os seus elementos, fez o juramento de membro de pleno direito e foi nomeado responsável pelos recrutas. Conheceu os planos do grupo e as ligações ao Chega e aos neofascistas do Escudo Identitário.

Os Proud Boys são conhecidos pela sua dimensão e atos de violência nos EUA, mas há anos que estão para lá das fronteiras norte-americanas.

O método de infiltração pelo Setenta e Quatro deveu-se à noção de o grupo atuar e recrutar num regime de semiclandestinidade e, como o seu Código de Conduta veio a comprovar, recusar falar com jornalistas. Os seus membros também não se expressavam abertamente no chat público do Telegram (foram feitos avisos sobre o que se dizia), deixando apenas passar o que queriam (propaganda, por exemplo), levantando questões sobre quem e quantos são, o que pensam e querem fazer no concreto.

Mas não só. Um contacto oficial poderia levar o grupo a adotar novos métodos para os seus membros se manterem anónimos. A mentalidade violenta dos Proud Boys, e a existência de uma filial em Portugal, justifica o inegável interesse público para a infiltração. Podem vir a representar uma ameaça à segurança pública num país cada vez mais polarizado e onde a normalização da extrema-direita (e das suas ideias) avança a grande velocidade, criando-se terreno fértil para o seu crescimento.

Nascem os Proud Boys Portugal

A violência dos Proud Boys era tema de destaque na imprensa norte-americana e internacional quando, em 2019, Pedro Lopes, hoje com 21 anos, entrou em contacto com elementos dos Proud Boys no Instagram e por chats no Telegram. Trocaram opiniões e intenções, o jovem português disse querer criar uma filial em território português – um outro português já o tinha tentado e falhado.

A ideia foi bem-recebida, mas era necessário um encontro cara-a-cara para acabar com eventuais desconfianças. Um membro dos Proud Boys Britannia, filial da rede internacional no Reino Unido, estava a passar por Portugal e foi encarregado de estabelecer contacto – foi mais tarde expulso do grupo britânico por desfalcar verbas de um crowdfunding.

Conheceram-se presencialmente e Lopes terá deixado boa impressão, uma vez que o PB Britannia regressou duas semanas depois, agora acompanhado por outro membro, contou Ricardo Mota, sargento-em-armas dos PB com 28 anos, no primeiro encontro. Entretanto, Lopes falou com conhecidos seus, entre os quais Mota, para se criar a filial portuguesa, pois as regras dos PB estipulam ser necessário um mínimo de cinco membros.

O jovem português foi iniciado no primeiro grau de pertença à “irmandade” de extrema-direita num ritual em que teve de fazer o juramento dos Proud Boys. A partir daí, os contactos sucederam-se, estreitando laços com a filial britânica, a principal dos PB na Europa e a grande patrocinadora do grupo português – 14 PB Britannia publicaram no canal britânico, em meados de outubro, uma foto de grupo no Algarve.

Os Proud Boys norte-americanos também anuíram a apoiar e a reconhecer a filial portuguesa e, para o demonstrar, os PB Portugal tiveram uma página a si dedicada no site dos norte-americanos – o site foi mandado abaixo em outubro de 2020 e substituído por um Donald Trump, sorridente, a dançar.

O reconhecimento internacional foi um marco para o grupo português. Os contactos continuaram no Telegram, ora trocando notícias, vídeos ou simples propaganda, como rituais de iniciação, merchandising, lutas com antifascistas, etc. Não tardou a que os portugueses dessem um novo passo no fortalecimento das suas ligações internacionais.

Em outubro de 2020, em plena pandemia, Pedro Lopes (presidente nacional), Ricardo Mota (sargento-em-armas) e Carlos Cravo (secretário) foram até York, no Reino Unido, para um encontro presencial com os PB Britannia num típico pub. Disseram ter pago as viagens dos seus bolsos e foram submetidos ao ritual do 2º grau da hierarquia. Como consequência desse ritual, Lopes disse ter ficado com a zona das costelas negra.

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Três dos dirigentes dos PB Portugal em York, no Reino Unido, com os PB Britannia | Telegram dos PB Portugal

Três dirigentes dos PB Portugal em York, no Reino Unido, com os PB Britannia | Telegram dos PB Portugal

Tiraram fotos e depressa as divulgaram no chat da comunidade, onde membros de filiais norte-americanas, britânica e alemã também estão. Foi, por assim dizer, o último passo no reconhecimento internacional oficial, e, mais tarde, um britânico chamado Peter veio a Portugal encontrar-se com eles.

O chat da comunidade e o canal no Telegram foram criados a 9 de março de 2020 e o primeiro era inicialmente composto por uma maioria de PB de filiais de fora de Portugal. Foi no decorrer de uma pesquisa fortuita no Telegram, em dezembro de 2020 e por mera curiosidade sobre a eventual existência dos PB em Portugal, que o Setenta e Quatro os encontrou.

Lá estavam fotos da viagem a York, da sua presença numa manifestação negacionista da covid-19 nos Restauradores, em novembro de 2020, em Lisboa, e de ostentação de facas num encontro do grupo. Estavam também imagens de membros PB internacionais com passado violento, sem esquecer o facto de a filial portuguesa ser reconhecida pelos norte-americanos.

Os PB são conhecidos pela sua dimensão e atos de violência nos Estados Unidos, mas há anos que estão para lá das fronteiras norte-americanas. A primeira filial no estrangeiro nasceu no Canadá em 2017 e depois seguiram-se outras na Bélgica, na Finlândia, na Alemanha, na Suécia, na Irlanda, na Noruega e na Escócia, sem esquecer Portugal a partir de 2019.

Quando questionado numa entrevista ao Expresso se Portugal se arriscava a ter uma milícia do género dos Proud Boys, o Diretor Nacional da Polícia Judiciária, Luís Neves, foi perentório ao dizer que “qualquer milícia que se tentasse criar no nosso país seria imediatamente combatida à nascença e derrotada pelas autoridades”.

A estrutura internacional dos PB é semelhante à dos neonazis Hammerskins Nations, Blood & Honour e Soldiers of Odin, ainda que adaptada e muito menos rígida e coordenada. O comando central da rede é uma filial de Anciões. São oito no total, com sete a estarem nos Estados Unidos e um no Reino Unido, chamado Angel, responsável pelas restantes filiais europeias, inclusive pela portuguesa.

Um dos elementos presentes no chat da comunidade dos PB Portugal é o norte-americano Jason Cardona, membro dos PB nos Estados Unidos. Na primavera de 2019, uma coligação de grupos de extrema-direita, composta pelos PB, os American Guard, os Resist Marxism, os Patriot Prayer e vários milicianos, começaram a planear em chats encriptados uma série de comícios violentos ao longo da Costa Leste dos Estados Unidos.

Nos chats divulgados pelo media alternativo Unicorn Riots, vários PB publicaram fotografias em que apresentam armas, com Jason Cardona a mostrar uma faca e um machado, afirmando que os iria levar para futuras ações de rua. “Concordo que, uma vez que as nossas forças estejam a 100%, os contra-ataquemos para todos e quaisquer assaltos. Quanto melhor isto estiver planeado, melhor vai correr”, afirmou o norte-americano que em 2012 foi detido pelas autoridades por se fazer passar por polícia uniformizado.

A apologia da violência política não se ficou por aqui. “Se eles [antifascistas] querem conhecer a Sabedoria [o nome que deu a uma das armas] apenas têm de pedir”, escreveu Cardona, que mais recentemente se candidatou à polícia de Springfield, no Oregon. “Uau… Bem, vai valer a pena pôr a minha bota do trabalho no rabo de alguém. Vão ser BONS MOMENTOS”.

Também os PB Portugal fazem questão de mostrar que são ‘duros’ aos seus congéneres internacionais. No canal de Telegram do grupo, foi partilhada uma foto de um encontro dos membros de pleno direito com facas nas mãos – foram oferecidas por Pedro Lopes e andam sempre com elas, tendo-as mais tarde mostrado com orgulho ao Setenta e Quatro.

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Membros dos PB Portugal com facas

Membros dos PB Portugal com facas num encontro | Telegram dos PB Portugal

O Telegram, considerado por especialistas um dos lados ocultos da Internet, é a única solução para difundir propaganda e atrair possíveis recrutas (apenas homens), pois as redes sociais Facebook, Twitter e Instagram eliminam automaticamente páginas e perfis associados aos Proud Boys. Ao mesmo tempo cada membro explora os seus contactos na vida real à procura de novos membros. Fazem-no com algum cuidado, para não porem em risco os seus empregos.

O Setenta e Quatro monitorizou-os durante algumas semanas no Telegram, mas pouco conseguiu saber além do que os próprios desejavam, enquanto se estavam a estruturar e a integrar na rede internacional. Era, portanto, necessária uma outra abordagem: a infiltração, para se saber quem e quantos são, o que pensam e querem fazer no concreto.

Os PB Portugal têm neste momento seis membros de pleno direito e estão a levar a cabo uma estratégia de crescimento sólida e vagarosa, dizendo não quererem aceitar toda a gente que se candidate – o presidente receia perder a mão no grupo. O plano é, no entanto, crescerem em membros e só depois passarem a organizar ações públicas em que enfrentem a esquerda nas ruas, ainda que a pandemia lhes tenha trocado temporariamente as voltas.

Uma das vias de recrutamento que os PB têm tentado usar é um chat no Telegram chamado Somossuperindignado, a comunidade de uma página de Instagram de extrema-direita com mais de 12 mil seguidores

chat da comunidade PB no Telegram tem 40 membros, o dos recrutas tem 14 e, por fim, há um terceiro composto apenas pelos membros de pleno direito, onde a organização do grupo acontece – já produziram merchandising e Mota disse quererem, mais cedo ou mais tarde, começar a produzir t-shirts para contornar as limitações da Fred Perry impostas para impedir a sua apropriação pelo grupo.

Os dirigentes do grupo estão ainda em chats com elementos de outras filiais nos Estados Unidos e na Europa, onde se vão pondo a par das atividades uns dos outros.

“Somos grande parte dos subúrbios de Lisboa, zona de Sintra, da Amadora”, disse Lopes, presidente nacional da filial portuguesa e militante do Chega, num encontro por Zoom em que interrogou o jornalista infiltrado do Setenta e Quatro. Mas também há membros da Linha de Cascais, de Oeiras e Algés. A maioria dos membros, acrescentou o chefe, tem idades entre os 20 e os 30 anos, com um dos recrutas a ter 34 anos.

Houve, no entanto, dois potenciais recrutas de 17 anos, mas foram obrigados a esperar até fazerem 18 anos, por o Código de Conduta definir que apenas pessoas maiores de idade podem pertencer ao grupo. Lopes, que usa uma pulseira do Movimento Zero, disse várias vezes estar a recrutar um comissário da PSP acabado de formar, sem que o jornalista infiltrado alguma vez o tenha visto – o comissário estava, no entanto, no grupo do Telegram dedicado aos recrutas.

E, por fim, um outro recruta, conhecido apenas pela alcunha Costa1 no Telegram, ainda não fez o juramento por se ter alistado no Exército com o objetivo de completar o curso dos Comandos.

O jornalista do Setenta e Quatro foi com o sargento-e-armas à manifestação do Chega contra o seu pedido de ilegalização, em Lisboa, a 18 de abril. Lá chegados, Mota falou descontraidamente com militantes do Chega e disse estar ali para “ver como estava a situação”, dando a entender ver as fileiras do partido como terreno fértil para o recrutamento.

Uma das vias de recrutamento que os PB têm tentado usar é um chat no Telegram chamado Somossuperindignado, basicamente a comunidade de uma página de Instagram de extrema-direita com mais de 12 mil seguidores – a rede social é usada pela extrema-direita para chegar aos mais jovens. O grupo usa e abusa do sentimento de indignação e está carregado de conteúdos racistas, xenófobos, machistas e transfóbicos. Serve ainda como ponto de discussão para debates político-ideológicos, e de apelos à cooperação.

“O confinamento social imposto pela crise pandémica aumentou o tempo de exposição da sociedade em geral, e dos jovens em particular, ao meio online e abriu um leque de oportunidades para que os movimentos radicais de extrema-direita disseminassem conteúdos de propaganda e desinformação digital”, lê-se no Relatório Anual de Segurança Interna 2020, publicado em março de 2021.

Estes movimentos, continua o documento, atuam “com vista a aumentar as suas bases sociais de apoio, a galvanizar os sentimentos antissistema e a reforçar a radicalização de base xenófoba, recorrendo a um discurso apelativo da violência e do ódio, num momento em que a sociedade portuguesa é, também, confrontada com fenómenos de polarização ideológica”.

A manifestação negacionista em novembro de 2020, em Lisboa, podia ter sido uma oportunidade de cooperação. “Ontem teria sido uma boa oportunidade de juntar [sic] uns 30 indignados em Lisboa juntamente com os PB. Qdo [quando] há cenas no Porto, outros 30 juntamente c [com] o escudo [Identitário]…Caramba, só este grupo tem 600 pessoas”, escreveu o perfil Somossuperindignado, proprietário do chat.

Daí que os PB usem o chat para recrutar. “Abrimos novamente recrutamento”, escreveu Lopes, administrador do grupo, depois de partilhar o link para o chat dos PB. “Para os que têm coragem para pertencer desejo-vos boa sorte no processo de recrutamento”, concluiu – o Setenta e Quatro disse ter encontrado os PB por esta via e nem desconfiaram.

Numa outra mensagem, o presidente convidou-os a aderir ao chat dos PB para “interagir com pessoal PB português e do estrangeiro”.

A infiltração

“Deixa-me ver o teu cartão de cidadão”. Foi assim que João Filipe, vice-presidente dos PB Portugal, se dirigiu ao repórter do Setenta e Quatro pouco depois de ter entrado no carro que tinha acabado de o apanhar à porta de casa no início de junho. “Não dou. Isso é privado, não se pede”, recebeu como resposta. “Mostra-me o teu e eu mostro-te o meu”, insistiu João Filipe.

Seguiram-se minutos de insistências e mais insistências, enquanto o carro com mais dois PB passava a mais de 100km por uma via rápida, sem que houvesse alternativa de fuga. A única solução era recusar e mostrar indignação pelo pedido. E assim foi.

Até que, entre risos, o presidente dos PB lá lhe perguntou: “João, porque é que queres ver o cartão dele?”, com a resposta a ser também entre risos: “Esqueci-me do nome dele e não queria estar a perguntar”. Risada coletiva e, aproveitando o momento para exteriorizar o nervosismo, o vice-presidente foi insultado com todos os palavrões que vieram à memória do jornalista infiltrado, enquanto uma pinga de suor escorria pela cara. Ainda se riram mais, não existia qualquer desconfiança.

A infiltração tinha começado há mais de dois meses, nos primeiros dias de abril, com a adesão ao chat da comunidade no Telegram. Depois de algumas perguntas e respostas mais genéricas, suspeitas iniciais e dias de silêncio pelo meio, lá se marcou um encontro no Largo de Santos, em Lisboa, com o responsável pelo recrutamento.

Era final de tarde e a hora marcada já tinha sido largamente ultrapassada quando o sargento-em-armas finalmente chegou para conhecer o novo recruta, para lhe tirar a pinta. Mota veio acompanhado por um amigo de infância negro que se remeteu ao silêncio o tempo quase todo, apenas falando para rejeitar a ideia de os PB serem racistas e afirmar terem uma comunidade.

“Somos a maior irmandade a nível mundial”, disse Mota, que garantiu ser o mais desconfiado dos PB e cujo grande orgulho de política de rua é ter participado numa manifestação antirrefugiados ligada ao PNR em 2015. “Discutimos política, cada um tem o seu ponto de vista. Temos pessoal que votou desde a Iniciativa Liberal até ao Chega, passando pelo PSD e CDS. Há os mais conservadores, os mais liberais”.

Apesar da alegada pluralidade política no seio do grupo – “temos várias ideologias” –, uma coisa ficou bem assente na conversa: o ferrenho anticomunismo. “Somos anticomunistas e anti-extrema-esquerda”, garantiu o sargento-em-armas, o terceiro mais importante na hierarquia. E isso ficou ainda mais claro quando, no fim-de-semana do centenário do PCP, Mota publicou uma fotografia de uma bandeira comunista vandalizada no chat da comunidade.

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Os PB Portugal assumem-se declaradamente como anticomunistas

Os PB Portugal assumem-se declaradamente como anticomunistas | Telegram PB Portugal

“Nós não temos um projeto a curto prazo, temos um a longo prazo. Quantos mais formos, melhor”, garantiu, vangloriando-se depois dizendo ter poder para depor, se quisesse, o presidente do cargo, o que não tem.

Esse projeto passa, continuou o sargento-em-armas, por os PB cooperarem com outros grupos, mais especificamente com o Escudo Identitário, criando uma frente alargada de extrema-direita.

“Estou a falar com pessoas para fazermos uma coisa em grande no 10 de junho [de 2021], uma manif de comemoração do Dia de Portugal. Bandeiras e símbolos de Portugal, como o PNR costumava fazer”, explicou ao Setenta e Quatro. “Essa ideia partiu da minha parte e de uma pessoa do Escudo Identitário, a Irene Sousa, a porta-voz do Escudo Identitário, numa conversa”.

Mota tem sido a principal ligação entre os PB Portugal e o Escudo Identitário e era suposto os primeiros participarem no evento convocado pelo segundo no 10 de junho deste ano. Porém, o sargento-em-armas não pôde comparecer à última da hora e a ação de unidade ficou sem efeito.

No entanto, nesse 10 de Junho, o dia da “raça” para a extrema-direita, os escudistas contaram com a presença de elementos dos Blood & Honour Portugal, que vieram de propósito de Matosinhos. Depois de uma manhã em frente ao Monumento dos Combatentes, em Lisboa, elementos dos dois grupos juntaram-se à concentração do Partido Nacional Renovador (PNR, hoje Ergue-te!) no Largo Camões, também na capital.

Não foi o primeiro momento de cooperação entre os dois grupos. De acordo com o relatório Terrorism Situation and Trend Report 2021, da Europol, o Escudo Identitário e os neonazis Blood & Honour cooperaram num protesto contra as medidas de confinamento declaradas pelo governo.

A estratégia de cooperação entre os escudistas e os PB (e no 10 de junho indiretamente com os Blood & Honour) não é consensual no seio dos segundos. O secretário dos PB, Carlos Cravo, deixou claro querer apenas relações cordiais com os neofascistas identitários por temer “merdas perigosas”.

“O Escudo é um grupo com o qual temos algum contacto, mas não estamos ligados porque não quisemos. Ou seja, havia a ideia de fazermos uma ligação de amizade pública, mas tivemos um bocado de cuidado ao associarmo-nos a merdas perigosas, e o Escudo é grande”, explicou o secretário, referindo ter participado num jantar do grupo neofascista, trocando ideias com Rui Roque.17

O antigo militante do Chega propôs na II Convenção do partido uma moção que defendia a remoção dos ovários das mulheres que recorressem à Interrupção Voluntária da Gravidez no Serviço Nacional de Saúde.

“A pessoa com quem nós mantemos contacto tem perfeita noção disso [de haver elementos perigosos no grupo], sabe perfeitamente que dentro do grupo tem pessoal completamente otário e que os tem de manter, pois quando há rivalidades [com antifas, por exemplo] são os primeiros a andar à porrada se for preciso”, acrescentou o presidente.

No entanto, há desejos em conflito com a alegada linha de não cooperação. “Continuo a achar que era bacano juntarmo-nos todos e irmos à Festa do Avante!”, disse o presidente, referindo-se a uma unidade com o Escudo Identitário. “Fazer o quê?”, perguntou o jornalista do Setenta e Quatro. “Não vais fazer nada, quando o primeiro [segurança] fizer alguma coisa…”, completou Lopes, rindo-se depois.

Este é um exemplo de referência à já tradicional estratégia dos Proud Boys norte-americanos: criarem situações de grande tensão com os seus adversários políticos para que culminem em violência, alegando depois terem agido em autodefesa. O principal obstáculo é ainda serem poucos.

A lógica dos PB Portugal pouco foge à dos seus congéneres norte-americanos, ainda que  adaptada à realidade nacional. A violência é explicitamente recusada, mas há passagens no Código de Conduta que deixam clara a possibilidade de lutas de rua.

Regressemos ao primeiro encontro presencial. O sargento-em-armas terá dado boas referências sobre o novo recruta e, uma semana depois, o repórter do Setenta e Quatro foi convocado sem aviso prévio para um encontro por Zoom. Uma vez na sala de videoconferência, foi interrogado entre 20 a 30 minutos sobre a sua vida: onde vive, quanto paga de renda, o que faz da vida, em quem votou nas últimas presidenciais, o que acha dos PB, se tem namorada, entre outras perguntas.

O jornalista tinha, semanas antes, adotado um visual completamente diferente e construído uma lenda (disfarce). O disfarce criado entrava quase na perfeição no género de recrutas que os PB almejam, seja lá fora ou cá dentro: jovem de 28 anos socialmente isolado, politicamente ignorante, mas sociologicamente de direita, desempregado do setor da hotelaria e incapaz de estabelecer relações com mulheres. Muito crítico do governo socialista por as medidas de confinamento terem causado o seu despedimento.

Foi um interrogatório em que cada um dos membros de pleno direito pôde fazer perguntas à vontade e, para ganhar tempo, manobrando aqui e ali, o Setenta e Quatro ia dizendo “piadas” machistas. Gozava ora com um ora com outro, recebendo risadas em troca. As portas no grupo tinham-se aberto definitivamente.

“Além de sermos um grupo político, somos acima de tudo uma fraternidade, uma irmandade. Já tive dias péssimos e quem esteve lá para mim foram os PB”, acrescentou Mota.

Questionados sobre os PB norte-americanos e as relações que tinham, as respostas foram escassas. “Claro que há aquela génese [internacional], por assim dizer, do que é o nosso movimento, mas no final do dia somos só malta que quer estar ao pé da sua gente”, respondeu o vice-presidente. “Se quiseres uma coisa para te entregares e para que recebas algum retorno, até para conheceres outras pessoas like minded, nós estamos aqui.”

“Os Proud Boys existem em grande parte dos países do mundo, não é só nos Estados Unidos. Os EUA chamam a atenção porque são mais e fazem mais merda”, afirmou o presidente. “Os PB do resto do mundo, todas as filiais que não estejam na América do Norte, pertencem em teoria à mesma organização, mas na prática Canadá, Estados Unidos e México são uma coisa, o resto do mundo é outra.”

Uma alegada separação que não impede, continuou o presidente, de todos estarem ligados e falarem entre si. Por exemplo, é palpável no canal de Telegram dos PB Britannia uma forte ligação às filiais norte-americanas, com membros a participarem presencialmente em atividades nos dois lados do Atlântico. Os britânicos enviam até camisolas Fred Perry para os seus congéneres norte-americanos, numa tentativa de contornar a decisão da empresa de não vender mais destas camisolas nos Estados Unidos.

A lógica dos PB Portugal pouco foge à dos seus congéneres norte-americanos, ainda que na prática esteja adaptada à realidade nacional. Apesar de a violência ser explicitamente recusada, há passagens no Código de Conduta que deixam clara a possibilidade de lutas de rua.

“Os Proud Boys Portugal operam de maneira muito diferente dos aos [sic] Proud Boys nos Estados Unidos. Se espera ações de rua e/ou violência, veio a procura no sítio errado”, lê-se no documento de introdução aos recrutas com apenas uma página. “Somos um grupo de apoio para homens com valores do Oeste [sic]. Não são permitidos cabeças-quentes ou gente problemática neste grupo, e qualquer pessoa que tenha a ideia de causar problemas será impedido de se juntar”.

Os elementos da extrema-direita tradicional portuguesa parecem sentir-se atraídos pelo grupo, quando sabem da sua existência, por causa da reputação internacional dos PB.

O uso de violência como atuação política e a pertença de neonazis foram várias vezes recusados em conversas com o repórter do Setenta e Quatro, mas também houve a admissão de terem tido pelo menos um membro neonazi que tatuou duas suásticas no corpo e que grafitou suásticas perto da sua casa.

O membro publicou, disse Mota, o seu feito nas redes sociais, tornando-o público, e isso representou um risco de imagem para os PB Portugal, daí a sua expulsão. Se não o tivesse divulgado, teria sido ignorado, garantiu no primeiro encontro no Largo de Santos.

Não foi caso único. Os elementos da extrema-direita tradicional portuguesa parecem sentir-se atraídos pelo grupo, quando sabem da sua existência, por causa da reputação internacional dos PB. Um outro caso foi o de um militar da GNR com ligações ao PNR e aos Portugal Hammerskins, contou Lopes. O militar tentou entrar no grupo, mas o presidente afastou-o por temer conotações negativas.

O grupo tem tentado evitar associações com a extrema-direita violenta, uma vez que os norte-americanos PB já têm uma imagem muito negativa, principalmente depois da invasão do Capitólio a 6 de janeiro de 2021 e por serem considerados uma organização terrorista pelo Canadá.

Porém, no documento do Código de Conduta, de cinco páginas, é palpável a característica intrínseca da promoção da violência na mentalidade do grupo, à semelhança dos norte-americanos.

Por exemplo, se houver disputa entre dois membros de pleno direito e não for resolvida numa conversa privada, “os indivíduos envolvidos terão três minutos na próxima reunião, na qual se envolverão numa luta ‘mano a mano’”, lê-se no Código de Conduta.

“Depois da luta terminar, ganhar, perder ou empatar o assunto que a causou [sic] será resolvido para sempre e esquecido. Quem recuar ou se recusar a lutar, perderá a queixa e ela será esquecida”, continua o ponto 6 do Código de Conduta. O presidente e o vice-presidente disseram ter feito três rounds por diversão, só para ver como era.  

Às vezes nem é preciso sequer ‘ativar’ o artigo da “luta mano a mano”. No encontro em que o jornalista do Setenta e Quatro fez o juramento, o vice-presidente desafiou-o para um duelo de chapadas por ter dito que não era correto andar à luta com o presidente.

“Zé, levanta-te. Duelo de chapadas. Anda”, disse o vice-presidente. “Estás a falar a sério?”, respondeu o jornalista. “Sim, anda”, reforçou, puxando de seguida uma cadeira e dizendo para se pôr a mão nela, separando os duelistas. Foi-lhe perguntado mais uma vez se isto era a sério, recebendo como resposta que sim, que era.

O vice-presidente esbofeteou então o repórter na cara e depois foi a sua vez. João Filipe ficou marcado no rosto e a cuspir sangue da boca, sendo acudido de imediato pela namorada. Já os restantes PB e o vice-presidente deram os parabéns ao “Zé”, e quando o presidente soube que no passado este tinha feito uma arte marcial limitou-se a dizer: “essa tua capacidade vai dar jeito nas manifestações”.

O Código de Conduta está inclusive escrito a pensar na possibilidade de violência em manifestações. No ponto 7, onde se estipula as razões para expulsões, um membro poderá ser afastado da organização se “deixar um irmão para trás numa luta”.

Na parte sobre “diplomas” (ascensão de estatuto no interior do grupo), estipula-se que para um membro atingir o 2º grau (o primeiro é o juramento) este “deve ser dado por cinco membros do 2º grau ou superior, também deve ser filmado”. A linguagem é omissa e significa que para se atingir o 2º grau um membro deve ser esmurrado no tronco por outros cinco até conseguir dizer cinco marcas de cereais, à semelhança do que os PB norte-americanos fazem.

No último encontro em que o Setenta e Quatro esteve, filmou dois membros dos PB que fizeram este ritual. Porém, e mostrando desconexão entre a prática da filial portuguesa e as regras da rede internacional, os membros baixaram o tronco enquanto eram esmurrados, o que não é permitido, e limitaram-se a ler uma lista com cinco nomes de cereais, quando devem recitá-los de memória. A lógica é os membros PB serem fortes o suficiente para manterem a calma sob pressão.

Por fim, para se atingir o 4º grau, o mais elevado, é obrigatório que se tenha “demonstrado caráter exemplar e dedicação, que tenham sido doxxados [a prática de denúncia das suas verdadeiras identidades nas redes sociais ou pela imprensa], assediados publicamente” ou ter agredido um antifascista “apenas em caso de autodefesa”. “Atacar alguém que se nos oponha sem provocação não resultará em estatuto de 4º grau e poderá resultar em expulsão”, declara o Código de Conduta. 

À semelhança dos norte-americanos, os PB Portugal querem funcionar numa lógica guarda-chuva: ter uma filial nacional e depois várias subfiliais, distribuídas por cidades onde haja membros para tal. E a oposição ao antifascismo, quando tiverem número para tal, é um dos objetivos.

Neste sentido, a estrutura prevê um presidente nacional e depois direções de sub-filiais. Estas, por sua vez, detêm a seguinte estrutura: presidente, vice-presidente, sargento-em-armas e secretário. Também se deseja que cada sub-filial tenha um funcionário.

O Presidente é o responsável pela sua filial e por comunicar com a rede internacional; o vice-presidente lidera o grupo na ausência do presidente e garante o cumprimento do Código de Conduta; o sargento-em-armas assegura que o Código de Conduta é cumprido e é “responsável pela segurança dos encontros das reuniões e dos membros”; e, por fim, o secretário gere a recolha das quotas (cinco euros mensais), os gastos derivados das atividades do grupo e redige as atas das reuniões de membros de pleno direito.

O recrutamento

O primeiro encontro presencial ainda não tinha acontecido e o repórter do Setenta e Quatro já tinha recebido o Código de Conduta. Soube exatamente quais os próximos passos, quais os erros a não cometer e quais os argumentos a usar nas conversas. “Entregou-se” como lhe pediram e a partir da conversa por Zoom seguiram-se mais encontros presenciais ao longo de quase três meses, conforme a disponibilidade dos membros. A prática de recrutamento foi-se percebendo aos poucos.

Num primeiro momento, pouco ou nada se falava de política, era mais um grupo de amigos que se encontrava, promovendo o espírito e o sentimento de camaradagem e irmandade, falavam de assuntos pessoais. Os membros do grupo, numa mistura de “irmandade” e de lógica de recrutamento, referiram por duas vezes oportunidades de trabalho ao jornalista.

A política, no seu conceito mais alargado, era introduzida sobretudo com “piadas” homofóbicas (ao mesmo tempo que diziam aceitar pessoas de todas as orientações sexuais) e misóginas, além de comentários de islamofobia. O bullying aos restantes membros também era uma constante, era incentivado até, como se fortalecesse a irmandade.

Acontecia sob a forma de “piadas” ultrapassando quase sempre a linha do insulto ao tocar em questões (muito) sensíveis da vida privada. No decorrer desta investigação, o jornalista do Setenta e Quatro adotou esta abordagem e quanto mais o fazia mais elogiado era, inclusive por quem era insultado. No entanto, no penúltimo encontro, em meados de junho, disseram-se “piadas” extremamente racistas. Sentiram que podiam ir mais longe na presença do recruta.

“Uma das coisas que nós temos é o espírito do housewife [dona de casa], a questão da mulher tradicional, o homem a trabalhar e a mulher em casa”

É um processo de recrutamento e de radicalização conhecido pela expressão do sapo a ferver na panela – ou, como a alt-right (direita alternativa) lhe chama, ser redpilled (tomar o comprimido vermelho, ver a verdade, em referência à trilogia cinematográfica Matrix).

Ou seja, um novo membro politicamente desconhecedor é acolhido com a narrativa da irmandade e vai ouvindo nas conversas – neste caso com “piadas” – ideias racistas, homofóbicas e misóginas até acabar por as normalizar, sem esquecer a promoção da violência. À medida que as vai aceitando, as conversas começam a subir de nível.

Foi precisamente esta estratégia de recrutamento que permitiu aos norte-americanos Proud Boys crescerem em poucos anos para os vários milhares de membros. O discurso de ódio normalizou-se sob a presidência de Donald Trump e a direita democrática radicalizou-se, abrindo espaço de recrutamento a este novo grupo de extrema-direita.

Não foi, portanto, por acaso que aos poucos começaram a ser introduzidos termos atribuídos à norte-americana alt-right, principalmente pela boca do vice-presidente, o mais culto do grupo. A ironia e o humor são usados como poderosos instrumentos para propagar discurso de ódio, normalizando-o e defendendo-se dos críticos dizendo serem apenas “piadas”.

Os encontros vieram a culminar numa churrascada em que todos os membros do grupo estiveram presentes com as suas namoradas – o Código de Conduta estipula que cada membro “tem direito a nomear a sua mulher como companheira”, como se fosse sua propriedade aos olhos dos restantes e obrigando-os a defender a sua “honra”.

“Uma das coisas que nós temos é o espírito do housewife [dona de casa], a questão da mulher tradicional, o homem a trabalhar e a mulher em casa”, disse Mota logo no primeiro encontro.

Tudo apontava para que fosse o dia em que o Setenta e Quatro iria finalmente fazer o juramento e entrar na dita irmandade – num encontro anterior o juramento não aconteceu por o secretário ter faltado à última da hora.

Foi então que mais alguns sinais começaram a surgir. À mesa do almoço, Mota começou a dizer que não gostava de extremismos, nem de esquerda nem de direita, mas aí o presidente, como de quem não quer a coisa, admitiu publicamente pela primeira vez em que espetro os PB estão: “Sabes que estás num almoço de extrema-direita, não sabes?”. Foi encarado com normalidade pelos restantes membros.

Terminado o almoço, foi hora de os membros de pleno direito votarem a entrada do jornalista infiltrado no grupo. As mulheres, essas, mantiveram-se à parte enquanto os assuntos internos dos PB eram resolvidos. A entrada, tal como o Código de Conduta estipula, foi por votação unânime: chamaram o recruta e deram-lhe a boa nova.

O juramento foi feito e o repórter do Setenta e Quatro nomeado responsável pelos recrutas, não sem antes o presidente dizer ter de enviar ao Ancião europeu o seu vídeo de juramento, a sua morada e o seu número de telefone. Ainda hoje estão para ser entregues.


Setenta e Quatro mapeou o universo da extrema-direita de 1974 até 2021. 

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