Texto Robert Draper Fotografias Pascal Maitre
O barco desliza sob um céu iluminado pelas estrelas. Rasga uma superfície de água que por vezes parece oceânica na sua imensidão, outras vezes pouco mais do que um riacho seco, razão pela qual é uma loucura – e, já que se fala nisso, uma ilegalidade – navegar de noite. Para os passageiros que vão a bordo, essas reflexões sobre o que é prudente ou o que é legal não são totalmente irrelevantes. Em última análise, contudo, há uma regra que prevalece sobre todas as outras: no rio Congo, cada um safa-se como pode.
O barco vai perigosamente sobrecarregado, empurrando três barcaças com um motor concebido para transportar cerca de 675 toneladas. As barras de ferro, as sacas de cimento e os produtos alimentares a bordo ultrapassam as 815 toneladas.
Esvoaçando ruidosamente sobre as barcaças vê-se uma manta de retalhos de oleados e panos, debaixo da qual vão cerca de seiscentos passageiros humanos. Metade, talvez, terá pago 74 euros para fazer a viagem rio acima. Os restantes embarcaram clandestinamente, sem pagar.
Muitos são habitantes da cidade que partem na esperança de encontrar trabalho na safra do milho e do amendoim. Algumas mulheres, munidas de fogões portáteis a carvão, ofereceram os seus serviços como cozinheiras. Outras, como prostitutas. Cada um safa-se como pode. Ouvem--se cantigas, discussões, orações. Aromas a fumo de carvão e claustrofobia mortal. Jarros de uísque de fermentação caseira vão passando de mão em mão. De vez em quando, um passageiro ébrio cai borda fora. Até agora ninguém se afogou, mas a viagem ainda mal começou.
Num camarote do convés superior do barco, um homem de compleição esguia, com mais de 40 anos de idade, lê a Bíblia de lanterna em punho, sentado num canto.
Chama-se Joseph. Comprou este navio há dois anos, por 750 mil euros. Trabalhou no negócio de transporte de carga por via aérea e pensou, nessa época, que as regras do céu se aplicariam mais ou menos ao rio.
Aprendeu, entretanto, que a realidade é diferente. A tripulação é composta sobretudo por ladrões e um deles é seu sobrinho por casamento. Joseph calcula que leva um excesso de carga de 180 toneladas, sobrecarregando o motor, abrandando a velocidade, aumentando o risco de encalhamento e, claro, privando-o dos seus lucros.
Aceitámos o acordo… só que o motor não funcionava. Também não era possível libertar o barco do lodo do fundo.
Joseph teme que os tripulantes se apercebam de que ele topou o logro. Receia que paguem ao cozinheiro para lhe envenenar a comida. Pão e manteiga são o único alimento que ingere. Abomina toda aquela depravação.
Há algumas noites, o comandante desligou o motor durante algumas horas, de forma a poder descer para o interior de uma das barcaças e entreter-se com algumas passageiras do sexo feminino. E, por isso, Joseph procura refúgio na sua Bíblia. Sente-se rodeado de pecadores, entre os quais ele próprio. Alguns membros da sua família são pregadores, mas Joseph adora dinheiro.
No final deste ano, feitas todas as contas, estará 93 mil euros mais rico. Por essa altura, talvez o investimento tenha valido a pena.
Eu e o fotógrafo Pascal Maitre sentimo-nos solidários com Joseph. Resolvemos viajar no seu barco, o Kwema Express, após dez dias desastrosos passados noutra embarcação no porto de Kinshasa. O responsável pelo barco era um tipo robusto e impassível que nos cobrou por um camarote, mais uma piroga de escolta com motor fora-de-borda, mais segurança, mais manutenção, mais peças novas, mais toda a parafernália imaginável de documentos oficiais e por tudo o resto que lhe veio à cabeça, cerca de 4.600 euros, deixando-nos praticamente limpos.
Aceitámos o acordo… só que o motor não funcionava. Também não era possível libertar o barco do lodo do fundo. Depois, um cadáver humano todo inchado foi descoberto a boiar nas redondezas.
Decidimos cortar nas despesas. Ouvimos falar em Joseph e no seu barco, combinámos um encontro com ele num hotel de Kinshasa, fechámos contrato, mandámos vir mais dinheiro e, de seguida, fugimos com ele para a imunda cidade portuária de Mbandaka, onde os tripulantes se ocupavam buliçosamente do carregamento do barco com carga comprada no mercado negro, durante o dia, e divertindo-se com mulheres locais à noite.
Dois dias mais tarde, estamos por fim a caminho, navegando até Kisangani, a cidade da lendária curva do rio. O objectivo consiste em compreender esta constante da história turbulenta da República Democrática do Congo (RDC). Será que o poderoso rio pode ainda ser uma fonte de receitas desaproveitada por um país há muito devastado pela pobreza e pela corrupção? Ou o rio Congo é um universo em si mesmo?
Estamos em Fevereiro, na estação seca, e o rio mostra-se com pouca água e consistência lamacenta. Com intervalos de poucos quilómetros, a imensidão da floresta virgem que bordeja a água abre-se numa clareira e dá lugar a um amontoado de palhotas, com os seus telhados de colmo.
Ainda não rompeu a aurora e já há fogueiras acesas e mulheres a fritar pastéis. Outros passageiros levantaram-se dos seus colchões de espuma e começaram a dispor as mercadorias que levaram para vender.
Um magote de crianças emerge do interior, acenando. Algumas trepam para as suas pirogas e remam ferozmente na direcção do barco, aproveitando a esteira como se fossem praticantes de surf pequenos e magrinhos.
A última piroga desaparece, engolida pela floresta, sob um sol escaldante. À noite, eu e Pascal deitamo-nos dentro dos sacos-cama, debaixo de redes mosquiteiras, sobre o telhado do barco, com uma bandeira da RDC esvoaçando mesmo por cima de nós. Não há electricidade. Nenhum ruído, de qualquer espécie que seja, excepto o rugido do motor até de manhã bem cedo, quando acordamos ao som de um cântico. Um pregador conduz outros passageiros numa oração. Descemos para averiguar.
Ainda não rompeu a aurora e já há fogueiras acesas e mulheres a fritar pastéis. Outros passageiros levantaram-se dos seus colchões de espuma e começaram a dispor as mercadorias que levaram para vender: sabão, pilhas, poções feitas de ervas, sapatos, uísque rançoso. Pouco depois, visitantes provenientes das profundezas do mato aparecem e conduzem as suas pirogas, remando até às barcaças e içando-se a bordo, qual aranhas, trazendo consigo os produtos que têm para trocar: bananas, peixes-gato, carpas, jibóias, babuínos, patos, crocodilos.
O mercado flutuante durará todo o dia. A certa altura, uma dúzia de pirogas está amarrada ao barco. Torna-se rapidamente evidente ao nosso olhar que este regime é completamente simbiótico. Se não existisse este comércio, os passageiros não comeriam, nem os aldeãos teriam remédios para a febre do bebé, nem uma panela nova para substituir a que já está ferrugenta.
ALDEIA FLUTUANTE
A navegação no rio Congo exige paciência.
O avanço faz-se com lentidão ao ritmo de poucos quilómetros por hora. As barcaças encalham no silte do fundo. Os motores avariam-se O tempo passa devagar. Os homens jogam às damas. As mulheres cozinham, limpam, cuidam das crianças -- e esperam. Quando a barcaça passa por alguma aldeia, vêem-se pirogas a largar, disparadas, das margens do rio, pilotadas por habitantes locais com produtos para vender.
A barcaça transforma-se num mercado animado, ao mesmo tempo que prossegue lentamente a sua marcha rumo ao destino.
Os passageiros oferecem para venda artigos para o lar, roupa, medicamentos e arroz.
Os aldeãos trazem animais caçados na selva, incluindo macacos, cobras e porcos. os porcos, adquiridos para revenda com lucro numa escala posterior da viagem, viajam como os humanos: apertados uns contra os outros, no meio das mercadorias.
O pregador, de nome Simon, vende calças de ganga e camisas usadas. Viaja até uma igreja em Lisala, terra natal do antigo ditador Mobutu Sese Seko. “No tempo de Mobutu, o dinheiro chegava-me para pagar um bom quarto só para mim”, lamenta, evocando talvez a desordem vivida na RDC sob a égide do actual presidente, Joseph Kabila. “É difícil apreciar estas condições de vida. Tudo o que podemos fazer é rezar e confiar esta viagem às mãos de Deus.”
Simon tem um companheiro de viagem, um homem de ombros largos chamado Celestin que é dono de uma pequena plantação de seringueiras e palmeiras-dendê na aldeia de Binga, localizada na margem de um afluente conhecido como rio Mongala. Parece extasiado por ver dois estrangeiros brancos a bordo do barco.
“Ontem à noite sonhei que dois estranhos viriam visitar-me à plantação”, diz Celestin. “Por isso, se calhar foi Deus que vos mandou!”
Retribuímos o sorriso e agradecemos o convite. Também não fazemos promessas.
A primeira coisa que se aprende na navegação no Congo é que nada é governável, muito menos a velocidade.
As águas do rio são baixas, o barco vai pesado, o comandante emborca goladas de uísque congolês de um frasco e o proprietário refugiou-se nas Escrituras. Embora nestas paragens sejamos os sortudos, por aqui a sorte é a moeda mais volátil.
O rio faz a ligação entre nove países africanos ao longo do seu percurso de quase 4.700 quilómetros até ao oceano Atlântico, mas a sua identidade é inseparável da identidade da República Democrática do Congo.
ESTRADA FLUVIAL
Com quase 4.700 quilómetros de comprimento, o rio Congo, juntamente com os seus afluentes, atravessa a segunda maior floresta tropical do mundo, unindo a República Democrática do Congo a oito países. Rápidos perigosos interrompem o curso do rio a jusante de Kinshasa e a montanha de Kisangani, confinando o trânsito de barcaças de mercadorias ao troço de 1.700 quilómetros entre aqueles dois pontos.
“O rio Congo é a espinha dorsal do nosso país”, diz Isidore Ndaywel è Nziem, professor de história na Universidade de Kinshasa. “Sem espinha dorsal, um homem não consegue pôr-se de pé.” Visto desta maneira, o curso do rio desenha a imagem de um camponês obstinado mas gravemente encurvado. O facto de não ser dirigido por qualquer autoridade torna o rio o grande nivelador da nação. Também é verdade que diminui significativamente o seu valor como recurso. Tendo em conta o enorme potencial hidroeléctrico e agrícola dos 3,9 milhões de quilómetros quadrados da sua bacia hidrográfica, todo o continente poderia depender deste rio e,consequentemente, do seu país anfitrião. Em vez disso, o rio continua a correr em estado bravio e a RDC vacila, vergada ao peso do excesso demográfico, da pobreza, da inexistência de lei e ordem e da corrupção.
Mais de um século volvido, o lugar do Congo na nossa imaginação ainda não se alterou. Nem o fracasso, que perdura, em tentar domesticá-lo.
O rio e os seus afluentes têm funcionado como vias de penetração das migrações humanas, reconstituíveis até aos primeiros colonizadores de expressão banto, em 400 a.C. Na RDC actual, a rede fluvial serve de tecido conjuntivo essencial na articulação entre aldeia, cidade, oceano e mundo exterior. No entanto, estes factos não reflectem a sua verdadeira importância. Há muito que o rio Congo é visto como mais do que apenas o seu caudal poderoso, pois poderá conter diamantes, recursos minerais e muitos outros materiais cobiçados pelo mundo civilizado.
Em 1885, o rei dos belgas, Leopoldo II, colonizou o Estado Livre do Congo, de dimensão quase oitenta vezes superior ao seu próprio país, ignorando por completo os custos e os direitos humanos na sua demanda desenfreada pela exploração do comércio da borracha na bacia fluvial. O romance clássico de Joseph Conrad publicado em 1902 com o título “Coração das Trevas” relata a loucura dos negociantes de marfim ocidentais enquanto pilhavam esta região obscura e indómita. Mais de um século volvido, o lugar do Congo na nossa imaginação ainda não se alterou. Nem o fracasso, que perdura, em tentar domesticá-lo.
Durante décadas, o Gabinete Nacional dos Transportes, ou ONATRA, deteve o monopólio das transacções e comércio realizados no rio. A situação alterou-se na década de 1990, nos anos finais do regime de Mobutu. Como reconhece Sylvestre Many Tra Hamany, funcionário superior do ONATRA, “os motores dos nossos barcos começaram a envelhecer e a avariar, o que provocou grandes demoras e nos fez perder credibilidade”.
Em resposta, segundo Thierry André Mayele, do directório de Vias Fluviais (RVF), “os nossos políticos decidiram liberalizar a navegação no rio, sobretudo para conseguirem eles próprios obter lucros com o negócio”. A administração congolesa preparou um enquadramento legal e fiscal fácil de contornar: pagavam aos comissários portuários salários tão baixos que o suborno e a extorsão se sobrepuseram ao resto. Privaram de recursos o ONATRA, a RVF e todas as restantes autoridades fluviais.
E as coisas assim se mantêm. O governo assegurou-se de que o maior tesouro natural da RDC continua a ser desregulamentado.
Ainda assim, a precariedade do tráfego no rio ilustra apenas o abandono generalizado do Congo pela RDC.
Quem se desloca pelo rio sabe que assim é, conhece os riscos da viagem. A exploração continuada de madeiras, por interesses nacionais e estrangeiros, tem contribuído para uma erosão fortíssima na bacia hidrográfica. Esta realidade, agravada pela incapacidade do Estado para dragar o rio, pela facilidade com que os tripulantes das embarcações subornam as autoridades portuárias para fazerem vista grossa da tonelagem em excesso e pela inexistência de navios de socorro sobre as águas, significa que os passageiros, ao embarcarem, estão sujeitos a uma lotaria com mau prenúncio.
“Todos os anos naufragam, em média, cinco navios com excesso de carga”, explica Thierry Mayele. Dois meses antes de embarcarmos a bordo do barco de Joseph, um navio semelhante virou-se nas imediações de Kinshasa. Segundo o funcionário público com quem falei, “o comandante estava bêbedo e embateu contra um rochedo. Num navio grande como aquele, não há maneira de saber quantos passageiros se afogaram, pois não existe manifesto de embarque”. E acrescenta: “Os números divulgados pelo Estado apontam para 30 ou 40 mortos.” A sua risada céptica conta o resto.
Ainda assim, a precariedade do tráfego no rio ilustra apenas o abandono generalizado do Congo pela RDC. Para encontrarmos provas flagrantes desse abandono, é preciso infiltrarmo-nos na bacia hidrográfica do rio, como eu e Pascal fazemos alguns meses mais tarde, a bordo de um navio pouco maior do que uma aldeia flutuante. Para o conseguirmos, libertamo-nos de cronogramas e itinerários rígidos e navegamos ao sabor da corrente até que a informação pescada de conversas passageiras nos abra um caminho inesperado. Queremos inspeccionar a orla do rio em busca de sinais de vida no mato. Desembarcar. E ter fé.
MARÉ DESCE, MARÉ SOBE
Os colonialistas fogem. os déspotas são derrubados, e os habitantes das margens do Congo aproveitam aquilo que ficou para trás. Em Lisala, terra natal do falecido ditador Mobutu Sese Seko, as crianças têm aulas nas salas degradadas de uma das suas antigas residências. Noutro local do rio, os aldeãos mantêm em funcionamento uma prensa para fabrico de óleo de palma colhido nas árvores que crescem arbitrariamente numa plantação abandonada das redondezas. Alguns modos de vida ainda subsistem como sempre existiram em tempos antigos.
Os pescadores wagenia continuam a tecer enormes armadilhas para capturar peixes nos fortes rápidos localizados perto de Kisangani, exactamente da mesma maneira que o faziam quando o explorador Henry Morton Stanley os observou no decurso da sua famosa viagem de barco, rio abaixo, em 1877.
Encontramos a aldeia de Yailombo, uma comunidade de duzentas famílias de pescadores, depois de alugarmos uma piroga com motor fora--de-borda em Kisangani e navegarmos três horas rio abaixo até Isangi, virando de seguida rumo a sul pelo rio Lomami, um importante afluente do Congo, por onde viajamos um dia inteiro. Estamos agora em Novembro e, ao final da manhã, a luz solar é tão escaldante que as mulheres que vemos a transportar banana-pão e mandioca em pirogas seguram na mão um chapéu-de-sol para proteger os seus bebés.
Ao desembarcar, sigo os sons dos cânticos das crianças da escola. Encontro-as sentadas em cadeiras de plástico, amontoadas naquilo que parece uma grande gaiola de bambu dilapidada. O professor chama-se Cesar, tem 23 anos, bigode fininho e um sorriso tímido.
A avaliar pelos seus braços finos e musculados, também deve trabalhar no rio.
As crianças aprendem a remar em pirogas muito novas. A família deste rapaz construiu uma habitação temporária nas margens do Mongala, afluente do Congo, para capturar peixe no rio e num lago das proximidades.
“Pesco das seis da tarde às seis da manhã”, explica. “De seguida, ensino das sete até ao meio-dia. Ser professor não me dá dinheiro para alimentar a minha família.” Seca o peixe que captura em fumeiro e, depois, a sua mulher leva o peixe seco por rio até Kisangani — cinco ou seis dias a remar, em cada sentido. Kisangani, diz Cesar, é o lugar mais distante de casa onde alguma vez esteve.
Para ensinar os 53 alunos do terceiro ano de Yailombo, os aldeãos pagam-lhe 17,30 euros por mês. A escola de bambu é tudo o que a aldeia possui, uma vez que a escola oficial mais próxima está à distância de mais de um dia e meio de piroga. “Algum representante do governo congolês alguma vez visitou Yailombo?”, pergunto.
Cesar acena afirmativamente com a cabeça. “Durante o período eleitoral, vêm em campanha com a sua propaganda”, responde. “Chegam e fazem promessas de que irão construir um hospital ou uma escola. Nunca cumprem.”
Deixamos o rio Lomami e regressamos ao Congo. Estamos na estação das chuvas e somos praticamente os únicos que andamos pelo grande rio enquanto navegamos para noroeste, ao sabor da corrente.
Como todas as aldeias que visitamos, em Yailombo não há hospital, nem estradas asfaltadas, nem automóveis, nem água canalizada, nem electricidade, nem serviço telefónico, nem Internet, nem polícia, nem jornais. Os únicos bens da aldeia são o rio e a floresta. Pelo menos, o isolamento serve para proteger estas aldeias da carnificina infligida pelas milícias na região oriental da RDC. Alguns dias antes de chegarmos a Yailombo, nos arredores de Kisangani, encontramos pescadores wagenia, famosos pelo seu audacioso método de pesca com rede, pendurados em andaimes de bambu mesmo por cima das revoltas cataratas do rio Congo. Quando perguntei ao chefe dos wagenia, Beaka Aifila, de 47 anos, se o seu povo alguma vez tinha sentido a presença de uma autoridade externa, respondeu-me sem sequer hesitar.
“Durante a guerra dos seis dias”, retorquiu, referindo-se ao conflito de Junho de 2000 entre as tropas ugandesas e ruandesas, no decurso da brutal Segunda Guerra do Congo (1998-2003), quando os combates encarniçados alastraram a Kisangani. “Naquelas manhãs, quando íamos inspeccionar as redes, encontrávamos cadáveres humanos em vez de peixe.”
Deixamos o rio Lomami e regressamos ao Congo. Estamos na estação das chuvas e somos praticamente os únicos que andamos pelo grande rio enquanto navegamos para noroeste, ao sabor da corrente. Passam dias sem que avistemos mais nenhum barco a motor. Por alguma razão que desconhecemos, o comércio é lento e há poucas barcaças.
Ao mesmo tempo, os pescadores com as suas pirogas andam com menos sorte. Ficamos com todo o peixe que trazem. Sempre que sabemos da existência de um mercado, vamos lá e compramos amendoins, bananas, pão, tomate e carvão vegetal.
Só se pára numa das grandes vilas ribeirinhas quando é absolutamente necessário comprar combustível ou outros bens importantes. Nessas alturas, temos encontros fastidiosos com funcionários da Direcção-Geral de Migração, que inspeccionam zelosamente os nossos documentos de identidade e fazem as mesmas perguntas cépticas até, por fim, exigirem o seu preço pelo favor de nos deixar em paz. O nosso grupo de viajantes inclui um tipo afável do escritório da Agência Nacional de Informação (ANR) de Kisangani, a versão do FBI no Congo. Oficialmente, pagamos-lhe para assegurar que a viagem rio abaixo se processa de forma expedita. Na prática, ele vem no grupo para ajudar a beber a nossa cerveja.
Depois de passarmos um longo dia a percorrer penosamente as águas agitadas pela tempestade do rio Mongala, um afluente do Congo, chegamos à vila portuária de Binga ao início da noite. Um homem alto e careca salta para fora de uma carrinha de caixa aberta e abraça-nos nas docas. É Celestin, o passageiro do barco de Joseph que em sonhos soube da visita de dois estrangeiros.
Nas noites seguintes passadas em Binga, eu e Pascal somos acolhidos com conforto surpreendente, repousando numa bonita casa de madeira e betão com quatro quartos de dormir e tectos abobadados. O dono da casa é o director-geral norte-americano da empresa de plantações que impera em Binga. Nunca chegámos a perceber de que maneira Celestin a reservou para a nossa permanência.
O primeiro ocupante foi um belga que fundou uma empresa borracheira em 1914, numa aldeia de pescadores desconhecida até então denominada Mbinkya, nome mais tarde abastardado para Binga pelos colonizadores. Outrora existiram pinturas nas paredes, uma mesa de pingue-pongue, um Mercedes no caminho de acesso à casa. Electricidade disponível durante todo o dia, na casa e em toda a vila. No entanto, Mobutu foi destituído em 1997: dois anos mais tarde, os belgas fugiram de Binga. Os rebeldes saquearam a casa do barão da borracha. Actualmente, o director-geral norte-americano faz visitas muito espaçadas.
Tudo isto sugeria a força pela qual os guerreiros ngombe eram outrora conhecidos, antes de os favoritos do rei Leopoldo chegarem e começarem a explorar a bacia fluvial.
Nas plantações, cultiva-se agora sobretudo palmeira-dendê para fabrico de óleo de palma. O número de assalariados a tempo inteiro foi reduzido de 4.000 para 650. Na vila, já não existe electricidade. Há apenas três automóveis, todos da empresa, nas estradas lamacentas de Binga. Pela vila, perpassa uma nostalgia dessa era comparativamente dourada.
A empresa permanece aqui por razões práticas. O clima tropical é óptimo para as seringueiras e as palmeiras-dendê, há mão-de-obra barata e os seus produtos podem ser carregados rio abaixo, em barcaças, a uma distância de 1.300 quilómetros e, a partir daí, transportados para o mercado ocidental. Por sua vez, Binga mantém o espírito profissional de uma vila empresarial, embora com parcos benefícios. Para os seus 67 mil habitantes, os dois mil postos de trabalho sazonais nas plantações são a única alternativa à pesca, caça e agricultura de subsistência. A empresa assegura a manutenção das escolas e dos centros de saúde.
No entanto, continua a existir uma estrutura tradicional dos ngombe. Um morador contou-me que, há pouco tempo, o chefe se zangara com os pescadores locais por estes não respeitarem os costumes e os punira, lançando uma maldição sobre o comércio pesqueiro da vila. Durante três anos, disseram-me, pouco peixe foi apanhado e muitas pessoas passaram fome. Os pescadores humilharam-se e pediram perdão e o chefe retirou a maldição. Tudo isto sugeria a força pela qual os guerreiros ngombe eram outrora conhecidos, antes de os favoritos do rei Leopoldo chegarem e começarem a explorar a bacia fluvial.
“A colonização belga matou a alma congolesa”, contou mais tarde o historiador Kambayi Bwatshia. “Nestas plantações, eles obrigavam as pessoas a trabalhar à força e cortavam-lhes as mãos se não trabalhavam o suficiente. Quem afirma que se vivia melhor no tempo da colonização ou sob o regime de Mobutu está apenas farto do caos. Mesmo assim, bem lá no fundo, deseja recuperar a sua dignidade.”
Estas palavras aplicam-se de maneira particularmente pungente a Celestin. Certo dia de manhã, salto para a sua moto e viajamos durante meia hora por estradas de terra batida enlameadas pelas chuvas até chegarmos à plantação da sua família — ampla, mas mal mantida, em nada semelhante à ordem geométrica da plantação norte-americana.
Ainda assim, é com evidente orgulho que Celestin me diz: “Esta concessão foi comprada pelo meu pai em 1980. Percorre 800 metros junto da estrada e prolonga-se por 6,4 quilómetros floresta adentro. Havia mato por todo o lado quando a comprou. Como tinha um bom emprego na empresa belga, poupou dinheiro. Eu fui o terceiro de dez filhos.
Fomos criados com ar condicionado, um jipe, salsichas e queijo – com todas essas coisas magníficas. Foi um privilégio crescer em tais condições, quando a vida é tão difícil para todos os outros congoleses que vivem ao longo do rio. Imitávamos a vida dos ocidentais. Vemos o homem branco a fundar uma plantação e pensamos: ‘Mesmo que não seja igual à dele, pelo menos posso fundar uma pequena plantação que seja minha e alimentar a minha família’.” A sua expressão ensombra ao reconhecer que os tempos áureos de Binga, tal como outrora existiu, pertencem ao passado e que o seu filho de 12 anos, Celestin Jr., precisa de encontrar um futuro noutras paragens. “Quero que o meu filho fique cá, em Binga, para se desenvolver”, afirma Celestin. “Depois, pode ir à procura de uma vida boa. Talvez na Europa ou na América. Aqui não, infelizmente.”
Naquele troço, o rio tem quilómetro e meio de largura. A imensidão bravia é soberana. Cada um safa-se como pode.
No último dia da minha viagem pelo rio Congo, o tempo apresenta-se calmo e avançamos rapidamente rumo a jusante, quando outra piroga a motor sai da margem, rugindo na nossa direcção. Vêm a bordo quatro jovens de uniforme camuflado, armados com AK-47. Gritam-nos em idioma lingala. Um deles prende as duas embarcações uma à outra com cordas. Dois sobem a bordo, de arma encostada à anca. Abrem os olhos de espanto quando vêem dois ocidentais. A cena é familiar: não costuma acabar bem.
Os jovens identificam-se como uma espécie de polícias. Afirmam que nós evitámos propositadamente fazer escala na sua aldeia, sem pararmos para nos “registarem”.
Estamos ali sem autorização, insistem. Os nossos acompanhantes e o comandante da piroga são todos jovens orgulhosos e berram-lhes de volta. Eu e Pascal imploramos calma. O nosso passageiro da ANR, como sempre, mantém-se requintadamente inútil.
Encontramo-nos a escassos 48 quilómetros do nosso destino, Mbandaka, onde tenciono apanhar o avião para Kinshasa. Os 345 mil habitantes daquela distante cidade portuária bem podiam pertencer a outro continente. Naquele troço, o rio tem quilómetro e meio de largura. A imensidão bravia é soberana.
Cada um safa-se como pode. A piroga interceptada por estes homens leva a bordo dois computadores portáteis, quatro máquinas fotográficas, milhares de euros em dinheiro e oito vidas humanas. Não vamos conseguir ganhar este confronto. A única dúvida está em saber quanto iremos perder.
Passados trinta minutos, alguns cigarros, duas ou três garrafas de água e um diálogo que se amodorra numa espécie de empate cansado, antes de uma viragem estranhamente jovial, os jovens revelam finalmente o valor que pretendem. O seu motor de popa está sem combustível. E, por isso, gostavam de ficar com o depósito cheio. E nove euros.
Preço justo. Apertamos a mão e acenamos-lhes um adeus, enquanto os jovens sorridentes com as suas armas fazem uma guinada apertada e se afastam de nós, acabando por desaparecer na corrente prateada-escura, algures lá ao fundo.
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