Perspectiva da escavação captada do topo da cisterna de água que abasteceu a cidade.
A área escavada vai ser valorizada, permitindo a circulação de visitantes pelos espaços que literalmente fizeram a história da cidade.
Texto: Gonçalo Pereira
Fotografias: António Cunha
Não costuma acontecer com frequência, mas um incêndio pode ser providencial. Em Outubro de 2008, o edifício do departamento técnico da Câmara Municipal de Beja ardeu; pouco depois, ruiu também um muro do edifício da antiga tipografia do jornal “Diário do Alentejo”.
A demolição destas estruturas em pleno coração da cidade alentejana permitiu à arqueóloga Conceição Lopes, do Instituto de Arqueologia da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, um raro vislumbre do passado.
Em sentido contrário ao dos afortunados mineiros do Chile, a cápsula do tempo de Conceição Lopes recuou da superfície até ao interior da terra, nove metros abaixo do solo, escavados com a paciência própria de quem esperava há muito por este momento.
Conceição Lopes doutorou-se com uma tese sobre Pax Iulia, a cidade romana de Beja, e o seu território envolvente. Conhece na ponta da língua o trabalho do arqueólogo Abel Viana no centro histórico da cidade durante a década de 1930, que permitiu a este homem meticuloso descrever a identificação de um templo do período romano.
Abel Viana “registava sistematicamente tudo o que encontrava, mas creio que a estrutura é tão complexa que a sua articulação não foi perceptível aos seus olhos”, comenta.
Desde a década de 1950, foram recuperadas várias peças associadas ao templo romano de Beja. Capitéis, lápides e fragmentos de estatuária estão hoje no Museu Rainha Dona Leonor em Beja.
Essa complexidade do subsolo de Beja expressa-se com a ajuda de uma metáfora. Imagine um elevador que parte da superfície, correspondente à actualidade.
Na sua viagem descendente, há a tentação de seguir rapidamente para o nível mais emblemático – o da ocupação romana. Mas o elevador encontra vários patamares de ocupação humana antes e depois desse nível. Todos são importantes. Em conjunto, é essa sucessão de níveis que revela a memória de Beja. “Repare, o templo romano é importante, porque expressa o prestígio da cidade no final do século I a.C., mas a cidade do século XIV construída por cima daquele espaço é igualmente importante; ou a cidade do século XIX, que destruiu o casco da cidade alta e foi responsável por um aterro de quase 1,5 metros. Ou a Beja da Idade do Ferro, onde encontrámos uma grande estrutura. São camadas da cidade que ali estão”, diz a arqueóloga.
Os trabalhos de 1997 e 1998 forneceram à equipa de Conceição Lopes os primeiros dados. Seguiram-se as campanhas de 2008 até 2010. E, aos poucos, emergiu informação que legitima o que Plínio e Estrabão escreveram: no último quartel do século I a.C., Pax Iulia seria uma colónia romana, pelo que os seus cidadãos gozariam do mesmo estatuto dos cidadãos de Roma. A monumentalidade dos seus edifícios, agora vislumbrados, comprova-o.
À cabeça, está o templo, o agora famoso templo de Beja. Com 31,4 metros por 19m, foi construído com uma estrutura invulgar, circundado por um tanque de água de 4,5 metros. Seria tão ou mais imponente do que o templo de Évora. E há toda uma rede de edifícios, nas imediações, que o envolvem.
Um deles, com uma sapata de três metros de altura, expressa bem a dimensão simbólica do local.
A equipa teve acesso a outro vislumbre do passado. Impressa em barro fresco, a pegada de um jovem foi perpetuada na estrutura da Beja romana, como um lembrete de que, em cada patamar de história, ali viveram gerações de pessoas, com os seus sonhos e a sua visão do mundo.
Impressa em barro, a pegada de um jovem do período romano resistiu mais de dois mil anos até ser de novo contemplada. Será uma peça importante do futuro circuito de visitação das ruínas.
nationalgeographic.pt
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