Memória com milhões de anos para contar, a serra da Arrábida e o território adjacente são reservatórios de conhecimento, património e histórias por contar.
Texto Paulo Rolão Fotografia Luís Quinta
A vida na Arrábida desenvolve-se em estreita associação com o ambiente que, por vezes, assume estranhas morfologias, como na fenda do Creiro.
Nada indicava que a missão fosse tão penosa. Mas foram muitas as descidas íngremes, as pedras que faziam resvalar os pés, as subidas que pareciam obstáculos incontornáveis e a força de braços obrigava a agarrar os ramos das árvores para evitar graves desequilíbrios.
A respiração ofegante não evitava, contudo, que atentasse em pormenores marcantes das veredas: a densa vegetação, uma orquídea aqui ou ali, uma fenda de rocha nua que estreitava o caminho e quase escondia o Sol. Por baixo de uma pedra, espreitou um caracol endémico. No ar, o vulto da segunda maior borboleta diurna da Europa marcou igualmente presença. Lá em baixo, por baixo dos meus pés, adivinho os passos da aranha mais pequena da Europa, com menos de meio milímetro, mero grão de poeira no grande livro da serra.
Só mais um esforço e a redenção ficou à vista: à frente, o areal e a imensidão das águas de transparências azuis; atrás, a encosta verdejante da serra.
Só mais um esforço e a redenção ficou à vista: à frente, o areal e a imensidão das águas de transparências azuis; atrás, a encosta verdejante da serra. A mesma visão que, há milhares de anos, os humanos que ocupavam a Gruta da Figueira Brava, uns metros abaixo, tinham diante de si.
Aquela paisagem era outrora vista com outro olhar. Nessa época distante, o mar estava mais longe da entrada da gruta, cercada agora pela ondulação rasteira. Toda a vasta planície litoral era território de caça dos nossos antepassados. Eles não podiam saber que aquela região fora um marco na evolução da história da Terra – fora ali que começara a abrir-se o Atlântico Norte há milhões de anos, no início da fractura do supercontinente Pangeia.
Desde os alvores da humanidade que a região da Arrábida foi ocupada. Há vestígios de artefactos atribuíveis ao Homo erectus com centenas de milhares de anos. Nessa altura, a paisagem e as condições climáticas eram completamente diferentes. Com a descida do nível do mar, o Homem de Neandertal refugiou-se, há sensivelmente 40 mil anos, em grutas naturais, como são os casos da lapa de Santa Margarida e da gruta da Figueira Brava, comunicantes através de galerias internas e ocupadas sazonalmente por humanos e outras vezes por animais selvagens. Foi na segunda que foi encontrado material osteológico de Homem de Neandertal, de que se destaca um molar superior.
E era ali, pelos contrafortes da serra, que estes grupos de caçadores-recolectores gravitavam, errando pelas praias, abrigando-se nas grutas, caçando focas e mamutes e recolhendo marisco.
E era ali, pelos contrafortes da serra, que estes grupos de caçadores-recolectores gravitavam, errando pelas praias, abrigando-se nas grutas, caçando focas e mamutes e recolhendo marisco. “Após o Paleolítico Médio, surge uma estranha lacuna”, diz Carlos Tavares da Silva, um dos primeiros arqueólogos profissionais do país e director do Centro de Estudos Arqueológicos do Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal. “Na realidade, não existe qualquer vestígio do Paleolítico Superior…
É um mistério! Se eles existem por toda a Estremadura, porque não na Arrábida?”
Saltando esta lacuna, o Epipaleolítico tem o vestígio mais exemplar no Casal do Mocinho, na região da plataforma do cabo Espichel, como explica Carlos Tavares da Silva: “O homem continua a ser caçador-recolector, mais recolector do que caçador porque, com as alterações climáticas, a caça grossa começou a diminuir.”
Do Portinho da Arrábida aos fundos marinhos, onde ainda sobrevivem cavalos-marinhos, toda a fauna e flora estão condicionados pela geologia da Arrábida e pelo clima. Na transição para o século XX, o poeta, jornalista e arqueólogo Arronches Junqueiro escreveu: “Algas colossais contorcem-se no fundo, como serpentes gigantescas. A vastíssima baía do Portinho, sob a enorme abóbada do céu, esmaga-me de grandeza e majestade.”
No Mesolítico, as ocupações começaram a fixar-se nas margens dos cursos de água e, com a emergência do Neolítico, surgem as primeiras comunidades de agricultores. Começa-se a criar gado. Por volta de finais do quarto milénio antes de Cristo, o Neolítico atinge, com a Revolução dos Produtos Secundários da Criação de Gado, o período máximo de desenvolvimento, como o define Tavares da Silva: “Considero esta época tão importante como a revolução industrial do século XIX!”
Pelo factor bélico, as populações têm tendência para a fixação em lugares altos.
A criação de gado deixou então de ser a fonte exclusiva de alimento. Os animais fornecem a partir de então lã, leite e, sobretudo, tracção animal – e daí surge o arado, que simplifica e impulsiona o desenvolvimento humano. “As populações aumentam, crescem os excedentes, mas subsistem regiões pobres, que só têm uma escapatória: o homem tem de tornar-se guerreiro. A posse de terras ricas era a ambição máxima.”
Pelo factor bélico, as populações têm tendência para a fixação em lugares altos. Na Idade do Cobre, os castros fortificados abrigavam grandes populações, como Chibanes e Outeiro Redondo, datados de cerca de 3000 a.C. O primeiro foi abandonado, reocupado na Idade do Ferro e novamente ocupado no período romano republicano.
O Santuário de Nossa Senhora do Cabo celebra um culto inspirado na lenda de um homem que viu uma grande luz no topo da falésia. Nossa Senhora teria subido a inclinação íngreme sentada no dorso de um burro. A lenda bebeu inspiração dos trilhos de dinossauro visíveis na encosta e interpretados como pegadas de um burro.
Subindo no lento elevador da história, também os romanos deixaram aqui marcos da sua presença, sobretudo relativos à época republicana (séculos II e I a.C.), tal como anteriormente os fenícios e, posteriormente, os muçulmanos.
“A Arrábida é um mundo mediterrâneo, de forte influência fenícia, como em Cacilhas, Setúbal, Santarém e Castro Marim”, diz Carlos Tavares da Silva. Todas tiveram origens autóctones, mas a influência fenícia nestes locais foi muito marcante.
É com eles, aliás, que surge a Idade do Ferro, pois dominavam a técnica na perfeição. “Sabia que foram os fenícios que introduziram a galinha no nosso território?”, pergunta com um sorriso.
Mapa: Anyforms.
Nem só de ruínas vive a região. Toda a serra é rica em fauna e flora, como atestam os estudos dos naturalistas dos séculos XVIII e XIX. A vegetação é abundante, a floresta cerrada e a flora adaptou-se ao clima, à maresia e à especificidade das falésias. Concentram-se neste território cerca de 1.400 espécies vegetais, que correspondem a 40% da flora portuguesa e menos de 1% da área vegetal do país, explicam a directora do Jardim Botânico da Ajuda, Dalila Espírito-Santo, e o investigador do Instituto Superior de Agronomia Pedro Arsénio. “Há duas espécies endémicas, a Convolvulus fernandesii (ou corriola-do-espichel) e a Euphorbia pedroi (o trovisco-do-espichel) que, não sendo abundantes, têm uma localização que se restringe a apenas seis zonas da serra, algumas em aparente contracção”, elucida Pedro Arsénio.
Para salvaguardar o futuro, uma das soluções, não só para a Arrábida, mas para todo o país, passa por “um banco de sementes, criado em 2010, com o propósito de colher as sementes do Jardim para manter a colecção, tê-las disponíveis para trocas com outros jardins botânicos do mundo, e potenciar a conservação de forma a preservar a biodiversidade”, diz Dalila Espírito-Santo.
O Jardim Botânico da Ajuda coordena este banco, conservando as sementes a 11% de humidade e a 5ºC de temperatura, o que garante um período de conservação de mais de cinquenta anos.
Pedro Arsénio remete para outra característica especial da Arrábida:
“Em Portugal, existem sensivelmente 45 a 55 espécies diferentes de orquídeas e, na Arrábida, há 30 com presença devidamente registada. É expressivo do valor ecológico da região”. A serra é um mundo vegetal e essa dimensão não pode ser esquecida. Apesar da pressão humana, da construção, da actividade das pedreiras e da cimenteira, alguns hectares de mato testemunham uma Arrábida prístina, cápsula do tempo já passado e laboratório vivo da evolução a uma escala mensurável.
A serra é um mundo vegetal e essa dimensão não pode ser esquecida.
Imagine-se a bordo de uma nave espacial a orbitar a Terra e suponha que tem capacidade para recuar 250 milhões de anos. A perspectiva disponível seria de uma massa terrestre uniforme que se encontrava rodeada por mar e com uma baía gigante – a Terra, então, era o supercontinente Pangeia, o oceano único Pantalassa, com uma enorme baía – o mar de Tétis.
Aproximemo-nos, façamos zoom sobre a actual Ibéria mas… não a encontramos.
Simplesmente, ela “não existe”, pelo menos tal como a conhecemos.
Nessa época, encontrava-se no coração do Pangeia e apenas a actual costa sudeste espanhola era banhada pelo mar de Tétis. Nas eras seguintes, a Terra foi construindo a sua própria história: Pangeia começou a fracturar-se, os continentes formaram-se e, ao mesmo tempo, iniciaram a deriva, afastando-se e colidindo ao longo de milhões de anos. Nestes movimentos, a “nossa” Ibéria esteve umas vezes colada ao Norte de África, outras ao Sul da Europa.
As ginetas e outros carnívoros usam a vegetação como refúgio.
José Carlos Kullberg, investigador do Departamento de Ciências da Terra da Universidade Nova de Lisboa, continua a desfiar o fio à meada: “A zona de ruptura fez-se quando a Península Ibérica se separou do Labrador, no actual Canadá.” Além da progressiva separação, outro factor interferiu – a colisão da placa africana com a euro-asiática levou a que o mar de Tétis se fosse fechando até formar o actual Mediterrâneo.
Com todos estes movimentos e rotações, inicia-se a abertura do Atlântico Norte e o fecho do mar de Tétis; é aqui que intervém a Arrábida. “A serra começou a erguer-se há cerca de 17 milhões de anos e o soerguimento de terras deu-se por colisão, levando à subida, para a superfície, dos materiais sedimentares que se tinham formado em ambientes marinhos aquando do início da abertura do Atlântico Norte”, explica.
A colisão da placa africana com a euro-asiática levou a que o mar de Tétis se fosse fechando até formar o actual Mediterrâneo.
Hoje, é possível fazer um roteiro dos acontecimentos que marcaram a região: as fases de magmatismo, a fenda do Creiro, o afloramento da praia da Foz da Fonte e a bacia do pré-Tejo. Em termos geológicos, nada é o que parece: “Antes, o Tejo terminava em delta, era uma área imensa que atingia a lagoa de Albufeira, e foi a elevação da Arrábida que provocou a separação dos cursos do grande rio ibérico e do Sado.
A atestar a importância geológica da serra, refira-se que três dos sete monumentos naturais de Portugal encontram-se na região: Lagosteiros, Pedreira do Avelino e Pedra da Mua. Mas é na pedreira do Jaspe, com a “onda” da Serra do Risco como guardiã, que olhamos a falésia calcária mais alta da Europa (380 metros). Debaixo dos pés, estão milhões de anos acumulados; em frente, temos o palco do encerramento do mar de Tétis e a abertura do Atlântico Norte.
Todo este conjunto de riquezas acabou por não ser aprovado aquando da candidatura a Património Mundial pelos responsáveis da UNESCO, o que defraudou as expectativas da região e de toda a equipa que a elaborou, e da qual João Afonso, responsável técnico da Associação de Municípios da Região de Setúbal (AMRS), foi porta-voz: “Foi um trabalho notável e uma união de vontades da Região de Setúbal e, em particular, da AMRS, dos municípios de Palmela, Sesimbra e Setúbal, do ICNF, mas também de espeleólogos, arqueólogos, geólogos, botânicos e, ainda, de quem intervém directa ou indirectamente no território. Foi toda a comunidade que se envolveu.”
A gruta do Frade, maravilha subterrânea e testemunho exuberante de como a água e a química moldam a paisagem. Fotografia Francisco Rasteiro/NECA.
Apesar do balde de água fria, produziu-se mais trabalho científico do que alguma vez tinha sido promovido em áreas tão diversificadas na região. O trabalho ajudará agora no planeamento e ordenamento do território, até porque os estudos da capacidade de carga das praias e da serra para fins turísticos forneceram um sentido de preservação daquilo que a Arrábida pode proporcionar e suportar.
“Vamos continuar a caminhar”, assegura João Afonso, que não fecha a porta a futuras candidaturas e certificações internacionais.
Esbaforido mas feliz na fenda do Creiro, olhando para as vertentes verdejantes e para o mar em frente, recapitulo os pontos de reportagem que, a pouca distância entre si, levam a conhecer endemismos de fauna e flora, sítios arqueológicos ímpares e monumentos naturais únicos. É essa a força da região da Arrábida: a concentração de património único em escassos quilómetros quadrados. João Afonso dissera-nos em Setúbal, a propósito do dossier da UNESCO:
“A Arrábida não vai parar.” Depois de uma pausa, acrescentou: “Na verdade, ela nunca esteve parada.”
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