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quarta-feira, 28 de julho de 2021

Óscar e Otelo


 expresso.pt 

Carmo Afonso Advogada


“Não teve pelotões de fuzilamento”. É assim que Robert Fisk, no livro “A Grande Guerra pela Civilização”, se refere ao 25 de abril. Foi numa conversa com um conselheiro do Ministério dos Negócios Estrangeiros iraniano e para lhe dar um exemplo, uma demonstração, de que era possível. Não sabia que Robert Fisk tinha feito a cobertura da nossa revolução. Foi com orgulho que constatei que a sua excepcionalidade é reconhecida. 

Uma revolução que é referenciada pelo vermelho dos cravos e não pelo do sangue. Sangue. Já lá iremos.

Morreu Otelo Saraiva de Carvalho, o homem que organizou a revolução do 25 de abril e a quem devemos um fim da ditadura inteiro e limpo. Terão sido as suas qualidades militares e as suas virtudes pessoais a permitir que um golpe militar se transformasse numa revolução e uma revolução numa festa que foi bonita. 

O reconhecimento por tal facto parece ser transversal, com as exceções, claro, de quem preferia que a revolução não tivesse acontecido. Temos aqui uma boa oportunidade para finalmente se fazer tal contagem, mas não é para esses que escrevo.

O que opõe as pessoas, e que não surpreende, é a medida do reconhecimento público e histórico que Otelo Saraiva de Carvalho merece; se a sua participação nas Forças Populares 25 de Abril, FP-25, é uma razão para que o país e a história não lhe concedam as honras que os seus feitos de abril exigem.

Diz-se de Otelo que matou e sempre com referência ao terrorismo das FP-25. Nunca vi interesse em saber se Otelo também matou na Guerra Colonial onde combateu. Ainda bem. Não seria justo. Otelo serviu Portugal em África, é assim que costuma dizer-se de quem combateu as forças organizadas pelos movimentos de libertação das antigas províncias ultramarinas de Angola, Guiné e Moçambique. O regime de Salazar, e depois de Marcelo Caetano, não cedeu às oposições internas nem às pressões internacionais, quis manter o império colonial e impedir a independência dos países africanos. 

Haverá quem se orgulhe deste passado, talvez os mesmos da contagem do parágrafo acima. A maioria dos portugueses não. É certo que a nossa democracia assenta no repúdio pelo colonialismo.

As mortes da Guerra do Ultramar não mancham currículos. Comprovámos isso mesmo quando a Assembleia da República aprovou um voto de pesar pela morte do Tenente-Coronel Marcelino da Mata. Um voto de pesar por um militar que matou e torturou, sem pejo, em nome da ditadura. Foram, aliás, os seus únicos feitos.

O governo e o Presidente da República foram unânimes na recusa ao luto nacional pela morte de Otelo. Assisti, e muito bem, ao luto pelas mortes de Gonçalo Ribeiro Telles, Agustina Bessa-Luís, Eduardo Lourenço e Carlos do Carmo. Houve mais. Já agora: também assisti ao luto nacional pela irmã Lúcia. Nunca o percebi, um estado laico não deveria prestar-se a isto, mas respeito quem é devoto. Assisti também ao luto nacional pela morte do General António de Spínola, que presidiu ao movimento de extrema-direita MDLP, ao qual foram atribuídos o atentado que vitimou o Padre Max e a Maria de Lurdes e mais algumas centenas de ações de luta armada.

O envolvimento de António Spínola na luta armada não foi impedimento ao decretar de luto nacional. No caso de Otelo foi. Recordar aqui que as lutas armadas que lhes foram atribuídas tinham várias semelhanças e uma grande diferença: a de Spínola pretendia a reposição da ditadura do antigo regime e a de Otelo a concretização da revolução de abril no seu radicalismo, a imposição da ditadura do proletariado.

Não é um caso de “venha o diabo e escolha” e ninguém se deve conformar que assim seja tratado. O sonho da ditadura do proletariado terá morrido e não acredito no seu retorno. As suas concretizações não foram boas. 

Mas ele não nos envergonha. Foi esse sonho que levou às revoluções igualitárias. Continuam a ser os seus princípios a orientar as políticas sociais nos dias de hoje. Foi sempre a aproximação a esses princípios que marcou os melhores momentos da história. Eles são a base da social democracia europeia.

Deve aceitar-se que Otelo Saraiva de Carvalho não tenha o justo reconhecimento pelo seu contributo único para a fundação da democracia portuguesa? Qual é a razão honesta para que o seu nome não fique inscrito na memória colectiva acompanhado desse reconhecimento?

A história escreve-se mesmo quando não nos apercebemos que isso está a ser feito. Não é o caso aqui. Sabemos todos que a forma como o Estado Português trata a morte de Otelo fará parte da história e influenciará o seu decurso. Não há inocentes. Assistimos a uma deslocação lenta mas firme, na política portuguesa, para a direita. Os maiores partidos portugueses assim o determinam. Como admitiu Rui Rio, o PSD está muito mais à direita do que o lugar que ocupou com Sá Carneiro. Este definia o PSD como um partido de esquerda não marxista.

O PS também acompanha esse movimento. Contrariamente ao que os seus ferozes críticos apontam não é rigoroso que se trate de um partido de ideologia socialista, prevalecendo sim o seu carácter liberal. 

Temos ainda o aparecimento com expressão da extrema-direita neofascista. Quem diria.

O aparecimento do partido Chega mudou o tabuleiro da política em Portugal. Não foi para melhor. Não me refiro às razões que determinam a sua ilegalidade mas à nova dinâmica que veio imprimir. As forças políticas mais prejudicadas por esta praga, os partidos à direita, optaram por não excluir entendimentos. A partir daí, e mesmo para se justificarem perante o país, o seu discurso sobre o partido neofascista foi de aceitação; só precisa de se moderar um bocadinho. Uma espécie de: não sejam tão racistas, vamos lá suavizar isto. 

Esta aceitação do Chega pelos partidos tradicionais veio dar-lhe força. Resultado: a direita está refém do Chega para chegar ao poder. Bonito serviço.

O Partido Socialista agradece. Não poderia ter aparecido melhor forma de perpetuar o seu poder. Na verdade não poderia ter aparecido pior forma. Grande ironia aqui: os que tanto odeiam o governo de António Costa, e falo de toda a direita, facilitam-lhe a vida. Pagaremos todos por este erro, esta falta de coragem da direita. As minorias já estão a receber uma factura muito pesada.

Daqui resultam pelo menos três coisas: por um lado os partidos que se mantêm numa esquerda sem cedências liberais são considerados de extrema esquerda. 

Trata-se sobretudo de uma classificação que desconhece o conceito. Pacheco Pereira escreveu sobre o tema e de forma irrepreensível. Sugiro a sua leitura.

Por outro lado existe uma crescente relativização de tudo o que tem a ver com o 25 de abril e com as suas conquistas. É a constituição que precisa de ser alterada, são os capitães de abril que, como diz Vasco Lourenço, não estão na moda, são os princípios que precisam de ser atualizados, é a democracia que teria acabado por aparecer mesmo sem revolução.

E a terceira: a tolerância colectiva que é pedida perante o partido Chega. Todos sabem que se trata de um partido racista, muitos saberão que essa característica é fundamento para a extinção do partido nos termos da Lei dos Partidos mas muitos acreditam que seriam um ato muito radical extinguir um partido político com assento parlamentar. O sistema parece estar disposto a ignorar as suas próprias regras para proteger quem diz estar na vida política para o derrubar. Em cada esquina uma ironia.

Assim vai a política portuguesa.

O consentimento na existência de um partido político que viola a lei, e os princípios fundamentais da democracia, gera a radicalização política no espaço público. 

Não apenas a radicalização de quem a ele adere mas também a dos que a ele se opõem. Este fenómeno tem um aspecto positivo - o despertar de mais pessoas para a política - e muitos negativos. A existência de muitas tribos é certamente um bom exemplo dos aspectos negativos.

É aqui que voltamos ao Otelo. A sua morte, novamente como previu Pacheco Pereira, foi tribalizada. Sucede que nessa guerra tribal ganhou quem Otelo combateu. A sua partida poderia servir para lembrar os perigos do fascismo, a escuridão da ditadura e a fragilidade da paz. Mas não, como escreve um amigo: a única coisa que a história nos ensina é que a história não nos ensina nada.

António Costa afirmou que “o importante é não termos uma polémica sobre o tema”. Lamento, não é assim. 

Este nunca poderá ser o objectivo. As polémicas não matam a democracia, as cedências nos princípios sim.

Otelo Saraiva de Carvalho já foi julgado por crimes de sangue das FP-25 e foi absolvido. Já tinha sido julgado, e nesse caso condenado, por associação terrorista. Cumpriu uma pena de prisão de cinco anos.

Óscar acertou as suas contas com a sociedade.

Otelo parte sem que lhe tenha sido feita justiça. Só a dos seus amigos e a dos que escolheram não fazer parte do silêncio manso de quem consente. É preciso coragem para celebrar Otelo. Coragem, uma coisa que a ele nunca faltou.

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