Pseudoescorpião gigante das grutas do Algarve (Titanobochica magna).
Em grutas no algarve e noutros pontos de Portugal, uma equipa de bioespeleólogos tem acumulado descobertas de novas espécies e géneros de organismos.
O fundo das grutas é agora a nova fronteira.
Texto e fotografias: António Luís Campos
O dia nasce no estuário e os primeiros raios de sol começam a dourar a paisagem. De galochas e fatos de espeleólogo enlameados, com passo apressado, vários vultos dirigem-se para a margem do rio Arade. O lodo acinzentado já foi coberto por uma fina camada de água.
Não serão muitos os caminhantes a aventurar-se por um trilho que promete lama, lama e mais lama.
A urgência nota-se nos olhares inquietos e rostos franzidos: a maré está mais alta do que o previsto e corre-se o risco de a entrada da gruta Ibn’Ammar e do lago interior já estar inacessível. Esta é uma das principais cavidades do sistema subterrâneo do Algarve, que foi classificado em 2016 como hotspot mundial de biodiversidade cavernícola pela “Science”, uma das mais importantes revistas científicas.
De cabelo arruivado sob o capacete, a bioespeleóloga da Universidade de Copenhaga Ana Sofia Reboleira explica que são poucos os locais na Terra com essa designação, significando que, numa dada gruta, existem pelo menos vinte espécies cavernícolas diferentes terrestres ou aquáticas. Nos últimos anos, o Algarve tem proporcionado surpresas.
Novas espécies para a ciência têm sido descobertas a um ritmo alucinante. Numa zona onde são muitos os interesses económicos em colisão com a conservação da natureza, as ameaças acumulam-se e a urgência do estudo destas diminutas e elusivas espécies cavernícolas cresce.
Em comum entre estas descobertas, destacam-se as adaptações evolutivas encontradas. Muitos destes organismos mudaram para sobreviver num habitat tão agreste e diferente como o das grutas. Alguns sofreram despigmentação, o que os tornou maioritariamente pálidos; noutros, registou-se degeneração das estruturas oculares por não haver luz solar. Em compensação, ganharam um acentuado alongamento dos apêndices (antenas, patas, pinças).
O melhor e maior exemplo (literalmente!) é o pseudo-escorpião gigante das grutas do Algarve (Titanobochica magna), que os investigadores carinhosamente designam por “gigante do Sul”. Tudo é relativo: um adulto pode medir 30 milímetros de envergadura, com pinças poderosas e uma mordedura venenosa, que o torna um superpredador à sua escala – talvez comparável ao Tiranossaurus rex em terra, contemporâneo dos antepassados deste pseudo-escorpião. As origens da família Bochicidae, a que pertence, remontam ao Jurássico, há 170 milhões de anos, antes ainda da separação continental, como atesta o registo fóssil. Agora, no ambiente escuro para o qual a evolução o dotou de armas decisivas, o Titanobochica magna é também uma fera.
Apesar de o pseudo-escorpião ter maravilhado a comunidade científica pela dimensão e espectacularidade morfológica, ele tem companhia: o peixinho-de-prata Squamatinia algharbica, primo afastado dos que habitam nos interstícios de nossas casas, foi também recentemente descoberto. E, na saída de campo fotografada para esta reportagem, foi recolhido um grande exemplar de centopeia, que deverá ser brevemente descrita como nova espécie para a ciência. Será a primeira centopeia cavernícola de Portugal.
Este campo científico tem avançado a galope nos últimos anos em Portugal. O número de espécies conhecidas no nosso país triplicou. No Algarve, está identificada uma dezena de cavidades, mas o facto de se encontrarem espécies semelhantes em diferentes locais sugere que o sistema de grutas é muito vasto, embora as ligações entre si ainda não sejam conhecidas. Pelo país, há outras zonas importantes para a biodiversidade cavernícola, como a Arrábida, Montejunto e as serras de Aire e Candeeiros e Sicó.
Um dos projectos internacionais em que Portugal participa denomina-se “HiddenRisk”. Segundo Ana Sofia Reboleira, “buscamos compreender os impactes das actividades humanas nos ecossistemas subterrâneos e avaliar a importância destes para a saúde pública”. Apesar de quase invisíveis e pouco apelativos para o público, o seu papel é fulcral e influencia-nos globalmente: 97% da água disponível para consumo humano provém de aquíferos de profundidade (esse valor ronda os 50% em Portugal).
Ana Sofia Reboleira recolhe um exemplar ainda desconhecido para a ciência numa gruta do Algarve.
Nas palavras da bióloga, “os animais subterrâneos são responsáveis pela reciclagem da matéria orgânica que se infiltra até aos lençóis freáticos, garantindo a qualidade da água e o seu equilíbrio ecológico”.
Esse processo é fundamental “para a agricultura, florestas, nascentes e fontes. São mesmo importantes para nós!”, acrescenta.
Algumas centenas de quilómetros a norte, em pleno Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros, no Algar do Pena (que, com 125.000m3, é a maior sala subterrânea conhecida do país), procura-se envolver a sociedade civil com a comunidade científica.
Um “troglobiário” (laboratório subterrâneo) proporciona apoio à investigação com experimentação em animais vivos no seu habitat, mas constitui também uma oportunidade única de educação ambiental, ao permitir a observação de animais cavernícolas in situ.
Ao abrigo do projecto pedagógico “Citizens & Science”, alunos do ensino secundário local são responsáveis por tarefas de manutenção (limpeza de aquários, alimentação, preparação de terrários), compreendendo em primeira mão a importância da conservação dos organismos subterrâneos.
Aliás, à superfície, as ameaças são bastante palpáveis, pois o cenário é preocupante: centenas de pedreiras, muitas das quais especializadas na produção de pedra de calçada, ameaçam o mundo subterrâneo: apesar de visualmente este tipo de extracção de inertes parecer menos grave do que as grandes unidades de profundidade, elas ocupam vastas áreas, afectando os ecossistemas cavernícolas e alterando os padrões de infltração de água, bem como as suas características físico-químicas.
Num dia anormalmente quente no Inverno escandinavo, a porta da garagem do Museu Zoológico de Copenhaga abre-se. Passando por sofisticados sistemas de segurança electrónica, chegamos finalmente às colecções. São infindáveis corredores escuros envolvidos num silêncio sepulcral, com milhares de exemplares conservados em frascos de todos os tamanhos e feitios, protegidos por uma assustadora guarda de honra de avestruzes, lobos ou javalis embalsamados, capaz de pôr os cabelos em pé ao mais batido investigador de campo! Ali está conservada a maioria dos espécimes recolhidos por Ana Sofia Reboleira.
São mais de setenta novas espécies descritas para a ciência, 37 das quais em Portugal, incluindo quatro novos géneros, que abarcam pseudo-escorpiões, milípedes, bichos-de-conta, insectos e fungos ectoparasíticos de artrópodes. Em Setembro de 2009, a edição portuguesa da National Geographic noticiou a descoberta das primeiras novas espécies de escaravelhos cavernícolas, Trechus gamae e Trechus lunai, no maciço estremenho. Na década seguinte, Ana Sofia Reboleira e os colegas conduziram o conhecimento para outro patamar.
Entretanto, uma nova geração de biólogos vai surgindo. Andrea Castaño, investigadora espanhola a desenvolver o doutoramento na Universidade de Copenhaga, conduz um estudo sobre os efeitos de contaminantes em organismos subterrâneos. Nos laboratórios do museu, tem lugar também um estudo sobre os efeitos do aquecimento global, com espécies oriundas de Sicó, a sul de Coimbra, através do aumento gradual da temperatura ambiente (ramping) e analisando minuciosamente os efeitos sobre a fauna.
É importante recordar que este conhecimento começa por ser obtido em condições bem diferentes, quase antagónicas, das do laboratório dinamarquês. De roupa clara e corte elegante, Ana Sofia Reboleira analisa agora à lupa animais que “não existem” (para a ciência), mas recorda que a “prospecção de taberna” é uma parte importante do processo. É um termo curioso. Evoca as ocasiões em que os membros da comunidade científica, ao balcão dos cafés e tabernas, de copo na mão, conversam com pastores, agricultores e habitantes locais que conhecem o terreno e desvendam a localização de cavidades que poderão ser depois exploradas.
As lamacentas, escuras e húmidas grutas de onde provêm estes insuspeitos animais podem estar a milhares de quilómetros de distância, mas, de olhos postos num microscópio electrónico de varrimento, com ampliação máxima de 400 mil vezes, a investigadora recorda com admiração o seu mais ilustre precursor, Barros Machado, o pai da bioespeleologia nacional e autor do “Inventário das Cavernas de Portugal”. Quarenta anos depois, esse trabalho pioneiro ainda é uma referência!
Em jovem, Barros Machado explorou mais de trezentas grutas, com o irmão Bernardino (nas décadas de 1930 e 1940). Neto do presidente da República Bernardino Machado, o seu incansável trabalho foi dificultado por motivos políticos (o avô vivia então um exílio forçado entre Espanha e França por desavenças com o governo que emergiu do golpe de Estado de 1926) e o cientista acabou por passar também uma larga temporada em Angola. As suas explorações eram épicas: percorria as serranias de norte a sul, montado em burros e progredia pelas grutas à luz de velas, preso a cordas artesanais.
Com acessos bem mais fáceis, Ana Sofia Reboleira e a mestranda Rita Eusébio estão de regresso às entranhas de terras algarvias, em Loulé, contorcendo-se por buracos apertados, com recurso a complexos sistemas de cordas.
A jornada é de progressão maioritariamente vertical. A busca de animais quase invisíveis continua, com a excitação própria de quem sabe que cada visita pode desvendar novos segredos.
Cada dia de campo pode fazer a diferença dado o desconhecimento e falta de sensibilidade do público para a preservação destes habitats, bem patente no cenário exterior, onde um enorme aterro ilegal de entulho cresce à vista de todos, ameaçando tapar a única entrada conhecida desta jóia cavernícola.
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