"A lei da vida
OTELO morreu anteontem e eu fui apanhado de surpresa porque desconhecia que ele estava hospitalizado e já em transe final. Decidi esperar dois dias para este apontamento, porque o de me precaver contra as frases inevitáveis sempre que se escreve a quente.
Há 46 anos, as portas da prisão de Caxias abriram-se para mim e para mais algumas dezenas de presos políticos, não sem antes termos estado algumas horas transformados em reféns da PIDE que ainda resistia num prédio da Rua António Maria Cardoso, propriedade da Casa de Bragança onde agora existe um condomínio de luxo.
Sem a ação de Otelo e dos seus companheiros de insurreição, muitos mais portugueses, guineenses, cabo-verdianos, angolanos e moçambicanos iriam morrer numa guerra colonial que já levava 13 anos de matanças; Portugal ficaria muito mais tempo atolado no fosso do analfabetismo estrutural que era fruto de um obscurantismo tardo-miguelista comandado por um professor beirão de Finanças e um cardeal famalicense devoto de Hitler; milhares de conterrâneos nossos teriam de ir à procura de pão no estrangeiro, sujeitando-se a ficar instalados em bidonvilles rodeados de lama e miséria por todos lados.
Eu próprio tinha à minha espera, no Tribunal da Boa Hora, em Lisboa, o pedido já formulado do Mistério Público: pena máxima, que era de 25 anos, além de medidas de segurança que podiam ser de 3 mais 3 anos.
Salvaguardas as devidas diferenças, para o prisioneiro Otelo, se nada de extraordinário acontecesse, o castigo não seria menor, porque o Tribunal Plenário se limitava a dar seguimento às encomendas da PIDE.
Estive com Otelo em Havana um ano depois. A seu pedido, fui integrado na sua comitiva oficial; estive com ele em Varadero, onde tive lhe emprestar uma camisa, porque ele se deixou apanhar por uma onda mais atrevida; acompanhei-o numa ida ao Oriente para uma visita ao Quartel de Moncada; fui com ele a uma casamata com janela para Miami donde os cubanos vigiavam os céus do Norte e tinham, numa resposta rápida (6 minutos), capacidade de fogo para fazerem os EUA arrependerem-se bem de terem feito Cuba em cacos e tições fumegantes, como chegou a ser um dos planos do Pentágono.
O que não era difícil, claro, dado o poderio militar ianque.
Hoje, tudo isto me vem à memória, incluindo a frase que Otelo proferiu à chegada a Lisboa: “Oxalá que nós não tenhamos de meter no Campo Pequeno os contrarrevolucionários, antes que eles nos metam a nós.”
Não agiu assim nem a tempo, porque foi o que os vencedores do 25 de Novembro lhe fizeram a ele e aos militares de esquerda logo encarcerados na Prisão de Custoias, Matosinhos.
Ainda hoje a sua frase é repetida, mas truncada, de forma a significar outra coisa.
Este é o Otelo a quem eu tanto devo. E Portugal, também. Era generoso e determinado, mas sem preparação para a ação política. Foi só por isso que se meteu depois em tantas alhadas e cometeu tantos erros. Mas poderia cometer ainda muitos mais, porque, todos somados, não pesariam o suficiente para desequilibrarem a balança de valores éticos e patrióticos com que a História o consagra para sempre."
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