O HOMEM LOBO ou O Canibal, gravura de Lucas Cranach, o Velho (1472-1553), reconstituindo a aterradora lenda dos licantropos. Museu Metropolitano, Nova Iorque. Metropolitan Museum / Scala, Florença
Em 1589, um burguês alemão foi acusado de assumir a forma de um lobo e devorar crianças e adultos. A sua condenação talvez tenha sido uma maquinação.
Texto: Isabel Hernández
No dia 31 de Outubro de 1589, a grande multidão reunida na praça da cidade alemã de Bedburg, no eleitorado de Colónia, assistiu a uma execução aterradora. O réu era Peter Stumpp, um abastado proprietário de 50 anos, acusado de ter assumido a aparência de um lobo, graças a um pacto com o diabo, e assassinado várias pessoas, incluindo crianças e mulheres grávidas, cujos cérebros devorou.
Em finais do século XVI, viveu-se em França uma febre dos lobisomens, ou loup-garous. Por exemplo, em 1573, o tribunal de Dôle acusou um tal Gilles Garnier de ter atacado, “estando na forma de lobo, uma rapariga de 10 a 12 anos numa vinha, e tê-la matado tanto com as suas mãos em forma de patas como com os seus dentes”. "Um Monstro com cabeça de cão." Monstrorum Historia. 1642. AKG / Album.
Depois de ser submetido à tortura do cavalete para confessar, foi-lhe aplicado um castigo adequado às acusações de canibalismo, assassínio e “comércio com o diabo”: primeiro foi esfolado com tenazes de ferro em brasa, em seguida foi colocado na roda, onde lhe quebraram todos os ossos com a parte romba de um machado, a fim de evitar que pudesse regressar do túmulo e vingar-se. Por último, foi decapitado e o seu corpo lançado à fogueira.
A cabeça foi colocada sobre um poste no centro da povoação, junto à roda onde fora executado, assente sobre uma figura com forma de lobo.
Acordos com o diabo
Segundo parece, durante o processo, Stumpp acabou por confessar que praticava magia negra desde os 12 anos e que ficara rico graças a isso.
Relato aterrador. O inglês George Bores, aparentemente testemunha do processo de Stumpp, publicou em 1590, em Londres, um folheto com 16 páginas intitulado "A deplorável vida e morte de Peter Stubbe, um malvado feiticeiro que com a aparência de um lobo [...]matou e devorou homens, mulheres e crianças durante 25 anos."
Além do mais, admitiu que o diabo em pessoa, com quem fizera um pacto, lhe oferecera um cinto mágico, graças ao qual se transformava num monstro com aparência de lobo, “forte e poderoso, com olhos grandes e enormes que brilhavam como fogo durante a noite, dentes cruéis e afiados e um corpo enorme, sustentado por robustas patas”.
Reconheceu todos os assassínios de que foi acusado (de 14 crianças e duas mulheres grávidas, cujos fetos e coração comeu), bem como ter mantido relações incestuosas com a própria filha e relações carnais com um súcubo (um demónio com aspecto de mulher) que o próprio diabo lhe enviara em diversas ocasiões. Uma das crianças assassinadas fora o seu próprio filho – e também confessou ter comido o seu cérebro.
O julgamento e execução de Stumpp transformaram-se num acontecimento mediático em toda a Europa. Foram impressos numerosos panfletos, rapidamente traduzidos em inglês, holandês e dinamarquês, entre outras línguas, nos quais se contava “a verdadeira e maravilhosa notícia de um camponês que, por artes de magia, se transformava em lobo durante sete horas por dia”. Esses documentos de divulgação explicavam também como Stumpp “possuía um cinto e que, ao atá-lo ao corpo, se transformava na figura de um horrível lobo”.
A história deplorável de Peter Stumpp. Estas vinhetas relatam o caso de Peter Stumpp para um público popular. Na tira superior, vê-se o lobisomem, com uma faixa à cintura, devorando uma pessoa, sendo imediatamente perseguido pelos aldeãos. Recuperada a sua forma humana, Stumpp é apresentado diante da justiça e, em seguida, torturado, decapitado e queimado. Charles Walker / Alamy / ACI
Outras fontes contemporâneas mencionam o caso, como o vereador de Colónia, Hermann von Weinsberg (1518-1597), que registou o episódio, com muitos pormenores, no seu diário.
Monstros lendários
O caso de Peter Stumpp é mais uma das histórias de lobisomens que povoavam o imaginário popular europeu desde tempos distantes.
Não há dúvidas de que esta obsessão aterradora por homens que, durante a noite, se transformavam em lobos e devoravam gado, seres humanos ou cadáveres traduzia os medos de populações que viviam num estado crónico de insegurança. Era esse o caso do eleitorado de Colónia, onde nos anos anteriores ao processo contra Stumpp, muitas crianças que cuidavam dos rebanhos haviam morrido devido a ataques selvagens, possivelmente de feras – sobretudo lobos – que, naquela época, povoavam as densas florestas da Alemanha. Além disso, sabia-se que tinham morrido camponeses enquanto trabalhavam na floresta e os seus corpos solitários também haviam sido devorados pelos animais. Isto explica o ressurgimento da antiga e sinistra efabulação do monstro semi-humano da floresta.
Ernesto de Baviera, Arcebispo de Colónia, numa gravura de 1584. Mary Evans / Scala, Firenze
Rancores e vinganças
É significativo que os camponeses, na sua busca pelo homem diabólico que se transformava em lobo à noite, tenham acusado precisamente Peter Stumpp. Com efeito, este teve o azar de ser um camponês rico numa época de escassez e grandes fomes provocadas por más colheitas, despertando facilmente invejas e suspeitas.
As testemunhas de algumas das mortes asseguraram que o suposto lobisomem coxeava da pata anterior esquerda, o que os seus conterrâneos relacionaram com o facto de Stumpp ter perdido a mão esquerda num acidente enquanto cortava lenha. Com efeito, Stumpp ou Stumpf, significa “maneta” em alemão e era, aparentemente, a alcunha de alguém que, na verdade, se chamava Abel Griswold.
Bedburg localiza-se a apenas 30 quilómetros de Colónia. Esta imagem mostra uma porta da cidade medieval na década de 1930.
Juntamente com Stumpp, foram executadas mais duas pessoas: Katharina Trumpen, uma camponesa sua vizinha, e a sua filha Sybilla.
O caso de Katharina era semelhante: a partir dos documentos conservados, foi possível deduzir que, tal como Stumpp, era viúva e uma das proprietárias mais poderosas da região. Acusá-la de conivência e incluí-la no processo evitava que ela e Stumpp se unissem e aumentassem ainda mais o seu poder face às autoridades. Por outro lado, uma vez declarados culpados, as suas terras passariam a pertencer ao senhor local, que poderia dispor delas à sua vontade. A condenação de Stumpp também deve ter tido um fundo político-religioso. Em 1577, Gebhard Truchsess von Waldburg era eleito arcebispo de Colónia e, poucos anos depois, anunciou a sua conversão ao luteranismo, casou-se com uma jovem nobre protestante e autorizou a prática da nova religião no seu arcebispado.
A reacção das autoridades católicas foi rápida: em 1584, Truchsess foi substituído por um novo arcebispo católico, Ernesto da Baviera. Isto daria origem a um conflito, a chamada Guerra de Colónia (1583-1588), afectando consideravelmente a cidade de Bedburg no momento exacto em que o caso Stumpp rebentou. Com efeito, o novo arcebispo invadiu a região de Bedburg com o objectivo de expulsar o seu senhor, Adolf von Neuenahr, que apoiara Gebhard Truchsess. Os aldeãos viram soldados comportarem-se como bandidos, assaltando lugares, aldeias e caminhos e assassinando impiedosamente os pastores para se apoderarem dos seus rebanhos.
Em 1589, chegou a Bedburg um novo senhor, o católico Werner von Salm-Reifferscheid-Dyck, mas deparou com a resistência da população, maioritariamente protestante. Decidiu, então, dar um exemplo de qual seria o seu fim se não cedessem no seu empenho, escolhendo como bode expiatório Stumpp, que se convertera ao protestantismo com Neuenahr. Por outras palavras: a sua execução terá sido, simplesmente, a melhor forma de intimidar os protestantes daqueles territórios.
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