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sábado, 10 de julho de 2021

OPINIÃO|CINEMA «Raiva»: ninguém transforma o Mundo sozinho I/II

|CINEMA

«Raiva»: ninguém transforma o Mundo sozinho (I)

Fotograma do filme <em>Raiva</em> (2018), do realizador Sérgio Tréfaut
Fotograma do filme Raiva (2018), do realizador Sérgio TréfautCréditos/ Faux

Já se vivia em liberdade em Portugal quando Baptista-Bastos escreveu o prefácio para o romance Seara de Vento de Manuel da Fonseca. O texto foi incluído numa edição publicada em 1974 quase imediatamente após o fim da censura, com o título «A Letra de um Homem», e terminava com este parágrafo:

«A presença do pão parece ter modificado tudo.» Principia assim o capítulo cinco de Seara de Vento. Quem dignamente ousou viver, durante o ultraje fascista, sabia que, inversamente, a falta de pão iria, um dia, modificar tudo. 

As coisas modificam-se, alteram-se e transformam-se porque a marcha das coisas é irreversível. Todavia, há palavras que ajudam a apressar a alteração das coisas. Quem dignamente ousou escreve, durante o ultraje fascista, sabia que estava a contribuir para a modificação do nosso mundo. Que ninguém duvide que Manuel da Fonseca escreveu muitas dessas palavras. Que ninguém duvide que Seara de Vento foi um desses livros.

Raiva (2018), realizado por Sérgio Tréfaut, é uma adaptação para cinema desta marcante obra neo-realista publicada em 1958. O livro foi inspirado nos acontecimentos trágicos que ocorreram em 1933 no Cantinho da Ribeira, aldeia da Trindade, município de Beja, não muito longe de Baleizão, onde a vida de Catarina Eufémia seria ceifada duas décadas mais tarde. António Dias Matos, operário agrícola, tinha sido empurrado para o contrabando, após ficar sem trabalho por ter enfrentado o latifundiário Manuel Coelho, dominador da região e do seu povo. Foi acusado de roubar cereais ao senhor das terras e encarcerado. A mulher de António também acabou por ser presa quando procurava o seu homem e suicidou-se na cela. Mais tarde, o trabalhador foi assassinado pela GNR depois de ter atacado a tiro a família de Coelho, que foi morto junto com o seu filho.

Diário de Notícias chamou-lhe na altura «a tragédia de Beja». António foi levado ao desespero e nunca mais saiu desse estado. O seu crime e o seu assassinato pertencem a uma cadeia sequencial de violência que mais parece um círculo vicioso. Como explicou Manuel da Fonseca num programa de televisão de 31 de Março de 1975, junto à casa da família pobre: «As metralhadoras funcionaram sobre esta família de camponeses. […] Vieram aqui em volta do monte desalojar um homem na sua casa para levá-lo a continuar a escravatura anterior a ele e que depois dele devia continuar.» Havia um palheiro debaixo do telhado que os guardas incendiaram — e as balas e o fogo deitaram um homem revoltado ao chão, ferindo-o até à morte.

Capa do folhetim informativo do Diário de Notícias sobre o caso

Para o realizador, «[o] livro é um grito de indignação face à injustiça social no Alentejo, onde ser dono das grandes propriedades significava também ter mão no poder político, na guarda, na igreja e ser dono dos homens.» Seara de Vento retrata com rigor e expressividade, em forma romanceada, a realidade social do Alentejo que pouco se tinha alterado nos anos que mediaram entre os acontecimentos históricos e a escrita literária. Era a mesma pobreza das famílias de trabalhadores. Era a mesma riqueza das famílias dos proprietários agrários. Era a mesma planície de pequenos montes e pouca sombra. 

Era como se o tempo tivesse parado e o mundo não tivesse volta. Todavia, é falso que assim seja. A paisagem muda ciclicamente, mesmo que não pareça, e é moldada pela habitação humana. A força e acção humanas vão transformando o mundo, mesmo que só um aglomerado de gente torne essa transformação mais visível e efectiva.

Tréfaut desenvolveu a ideia do projecto depois de ter realizado o documentário Alentejo, Alentejo (2013) sobre o cante, expressão polifónica antiga com raízes na região alentejana e no seu povo, com espaço para a improvisação de modas sobre o tempo presente. Nasceu no trabalho dos campos e no convívio das tabernas e foi transmitido de geração em geração, como quem guarda e desenvolve uma identidade a partir da memória e da observação colectivas, até em comunidades na diáspora. O realizador leu Seara de Vento quando estava a preparar este filme documental. Numa entrevista a uma publicação brasileira em 2017, Tréfaut comentou como chegou ao livro e como o leu:

o romance era tido como a obra mais emblemática dos conflitos ancestrais dessa região. […] Durante a leitura, percebi depressa que seria um filme forte, simultaneamente local e universal. As tensões do Alentejo são as mesmas que existem há milhares de anos em toda a bacia do Mediterrâneo e em grande parte da América Latina.

Fica a pergunta: que tensões tão permanentes são essas? O cineasta ofereceu uma resposta: «Neste filme, que retrata os anos 1950, o grande proprietário rural é a única pessoa ou entidade que oferece trabalho e que tem dinheiro na região. Os camponeses dependem totalmente dele. […] As pessoas praticamente lhe pertencem e é ele quem dita a justiça. Esse paradigma do poder e do seu abuso permanece de forma camuflada até os dias de hoje.»

Raiva é dedicado à memória do pai do cineasta, Miguel Urbano Rodrigues (1925-2017), jornalista e escritor, militante comunista tal como Manuel da Fonseca. Miguel nasceu na cidade de Moura e viveu exilado no Brasil durante a ditadura fascista, entre 1957 e 1974, período durante o qual Tréfaut nasceu. Esta história pessoal e familiar foi investigada pelo realizador no documentário Fleurette, com um foco na sua mãe francesa cujo nome dá título ao filme. Quanto a Raiva, de alguma maneira permitiu prolongar a redescoberta e o reencontro com as raízes alentejanas presentes na sua família depois de Alentejo, Alentejo. Tal como o tio Urbano Tavares Rodrigues, o seu pai Miguel rompeu com a classe social da sua família de grandes proprietários agrícolas no Alentejo.

Fotograma do filme Raiva (2018), do realizador Sérgio Tréfaut Créditos

A leitura atenta do livro permitiu a Tréfaut retirar algumas conclusões, já a pensar no futuro filme. O seu propósito foi, desde o princípio, respeitar a força narrativa da obra literária, mesmo tendo em vista que o tom e as características estéticas da obra cinematográfica seriam diferentes:

Seara de Vento tem algo de western, com tiroteios, paisagens desertas e um herói soturno. Mas também tem algo de épico. É um romance militante, marcado por um certo romantismo político. Viria logo a ser proibido e retirado das livrarias. A frase final do romance «um homem só não vale nada», atirada em forma de grito desesperado por uma velha que representa a própria terra, significa talvez «unidos podemos mudar o mundo». A esperança na revolta e no ideal socialista está no horizonte.

«Raiva»: Ninguém Transforma o Mundo Sozinho (II)





A violência irrompe logo no início. António Palma, conhecido como Palma, mata o latifundiário e um dos seus filhos e depois refugia-se em casa, onde é morto pela GNR.


Fotograma do filme <em>Raiva</em> (2018), do realizador Sérgio Tréfaut
Fotograma do filme Raiva (2018), do realizador Sérgio TréfautCréditos/ Faux

Ofilme começa com uma cena interior e familiar. O fogo da lareira ilumina uma tosca mesa de madeira, com um pão e uma tigela onde é deitada água. Nela está sentada Amanda Carrusca que passou toda a sua longa vida rodeada por estas tarefas quotidianas. A água era escassa nesta região seca. A açorda alentejana, feita quase apenas com estes ingredientes, com praticamente nada, é um prato que resulta da situação de pobreza em que o povo vivia na região do Alentejo. O cante alentejano utilizado no filme, por exemplo na sequência de contrabando, também expressa a mesma realidade. Isto é, a comida não pode ser desligada da história social. Aqui trata-se também da comida que não há, do pão que faltaRaiva, que não por acaso esteve para se chamar O Pão, trabalha a partir dessa noção de escassez que estende a todos os elementos fílmicos. Basta reparar no laconismo verbal.

No mesmo sentido, a fotografia a preto e branco merece destaque pela sua clareza minimalista. Acácio de Almeida é um nome sobejamente conhecido. Dirigiu a fotografia de O Cerco (1970) de António da Cunha Telles, Trás-os-Montes (1976) de António Reis e Margarida Cordeiro, A Ilha dos Amores (1982) de Paulo Rocha, Um Adeus Português (1986) de João Botelho, entre outros filmes fundamentais do cinema português. Ou seja, trabalhou com os nossos realizadores mais relevantes. Como explicou Tréfaut: «O preto e branco é, para mim, a forma de melhor respeitar o espírito da história e do livro. Cheguei a fazer testes de imagem a cores, no Alentejo, mas tudo soava a falso.» É também pela fotografia que passa a evocação de uma série de referências cinematográficas, ambientes, imagens, composições, que o filme vai utilizando e integrando — de A Palavra (Ordet, 1955) de Carl T. Dreyer a A Terra (Zemlya, 1930) de Aleksandr Dovzhenko, passando por Vidas Secas (1963) de Nelson Pereira dos Santos e Um Cão Andaluz (Un chien andalou, 1928) de Luís Buñuel.

A violência irrompe logo no início. António Palma, conhecido como Palma, mata o latifundiário e um dos seus filhos e depois refugia-se em casa, onde é morto pela GNR. Tal como o livro, o filme retrata a vida difícil da família Palma, que habita numa pequena vila onde a força das famílias ricas oprime terrivelmente os camponeses. Acusado injustamente de roubo pelo dono das terras onde trabalhava, António tinha ficado desempregado e decidiu enveredar pelo contrabando entre Espanha e Portugal, apesar dos protestos da filha. Mas o grande proprietário tenta impedir que até o contrabando esteja acessível ao homem que ousou desafiá-lo. A sua mulher, Júlia, enganada num interrogatório policial, acaba por denunciar o marido de uma forma quase casual e suicida-se mais tarde na cela. Raiva vai-se tornando cada vez mais lúgubre e nocturno depois do funeral de Júlia. Sob o peso de todos estes acontecimentos, Palma sai armado de casa para ajustar contas.

A reorganização da ordem do enredo que o filme opera — mostrar o fim da narrativa e depois voltar atrás para desvendar o que o propiciou — contrasta com a estrutura linear do romance que corre como o vento numa seara. Interessa ao filme fixar primeiro a raiva de António para lançar a pergunta: como chegou Palma a este sentimento furioso? Se no livro há um crescendo, no filme há um esvaziamento que rima com a referida escassez.

A densidade das personagens é construída a partir da sua relação distinta com o contexto agitado e conflituoso, mesmo que os conflitos sejam encobertos ou abafados. Mais uma vez, o discurso do realizador é muito elucidativo: «Reduzi os diálogos ao mínimo, procurando que o filme funcionasse como uma fábula, sem explicações, sem falas. Procurei caras e corpos que dissessem tudo e fossem extremamente expressivas.» Tréfaut chegou a pensar em Javier Bardem para o protagonista, mas seria demasiado caro contratá-lo. Teve de considerar alguém português e acabou por escolher um actor não-profissional: Hugo Bentes, técnico municipal que trabalha nas áreas da produção e do som, membro de grupos corais alentejanos. Conheceu-o quando filmava Alentejo, Alentejo.

Para o realizador, foi importante o facto de Bentes ter crescido nas zonas rurais alentejanas e de representar «de certa forma, a herança desse orgulho que resistiu à ditadura nos campos do Alentejo.» Além disso, tinha qualidades físicas para o papel: era encorpado por ter sido jogador profissional de futebol, estava à vontade com o manuseamento de armas, e tinha experiência como segurança. O Palma de Raiva tem um porte que carrega consigo o conflito entre a necessidade do contrabando perante a sua família e o seu desejo de ganhar a vida de forma honesta. A contrabandista Mira (Lia Gama) não nega a força que ele tem, mas diz-lhe que ele fala demais.

Fotograma do filme Raiva (2018), do realizador Sérgio Tréfaut Créditos

Em relação a quem interpreta as outras personagens, Tréfaut comenta que a escolha foi igualmente intuitiva: «Vieram do cinema português, do teatro, da televisão, da rua.» A única actriz previamente escolhida foi Isabel Ruth como Amanda. Júlia (Leonor Silveira), a esposa de Palma, é uma presença quase invisível, passiva, tendencialmente ausente, resignada ao destino que julga que Deus lhe guardou. Amanda, a mãe de Júlia, é uma figura que vem de um passado de dentes cerrados e parece perceber melhor a ira de Palma do que as outras pessoas que vivem com ele — o que torna patente o dilema do protagonista, entre a reprodução dos gestos do passado e as acções que o presente exige.

Mariana (Rita Cabaço), filha do casal, é a personagem mais serena e paciente, com um entendimento daquilo que os tempos reclamam e uma acção consequente na luta organizada dos trabalhadores camponeses. É ela que diz a Palma quando ele afirma que as coisas vão mudar: «Está a cavar o seu próprio túmulo, pai. Não vai conseguir isso sozinho.» Ela é das poucas que tem consciência de que ninguém transforma o mundo sozinho. Bento (Kaio César) é o irmão mais novo de Mariana, com deficiência física e mental e sem o apoio de que necessita para ter uma vida que seja o mais confortável e saudável possível.

A encenação cinematográfica insiste nos motivos naturais, procurando incluir a paisagem e os seus habitantes num conjunto de acontecimentos mais alargado. Os animais vão pontuando o filme e reflectindo o seu desenvolvimento narrativo. Vemos um abutre a comer um coelho depois da visita de João (Adriano Luz) para dar os pêsames pelo suicídio do pai de Palma. É um homem debilitado pela servidão que não queria ser despedido como aconteceu a Palma e envergonhado por ser cúmplice das atrocidades cometidas pela classe dominante. Depois da detenção de Palma e antes do suicídio de Júlia, surge uma aranha a tecer uma teia como se estivesse a ligar as várias pontas da história. Finalmente, aparece uma águia que é associada à repressão da GNR e à influência da família Sobral. Elias Sobral (Diogo Dória), oponente de Palma, é um homem arrogante e implacável. Tem acesso directo ao poder e à autoridade das forças de segurança e coloca-as ao seu serviço sempre que considera necessário.

Fotograma do filme Raiva (2018), do realizador Sérgio Tréfaut Créditos

Depois do confronto entre Elias e Palma com o pretexto do contrabando, a mulher de Elias, Clara (Marília Villaverde Cabral), diz-lhe: «Chegaram tão tarde, até pensei que se tinham esquecido da Missa.» Esta observação é uma indicação do afastamento (pelo que é dito), mas também da proximidade (por quem o diz) entre o catolicismo e a opressão. Na cena da Missa, Lina Sobral (Catarina Wallenstein), canta com uma velha camponesa no altar da igreja e essa imagem condensa o modo como, em nome de uma igualdade abstracta, as celebrações religiosas se podem tornar um branqueamento da desigualdade. 

Na homília, o padre interpretado por Herman José, com uma apurada afectação, fala sobre o Reino dos Céus, mas recusa-se a falar sobre o inferno na terra:

Irmãos, as escrituras dizem que aquele que descer aos infernos, aos céus já não voltará a subir. Se nos mancharmos, se não vivermos imaculados não teremos entrada na Casa do Senhor. Temos sempre de escolher entre o céu e o inferno.

Raiva triunfou nos prémios Sophia, atribuídos pela Academia Portuguesa de Cinema. Na edição de 2019, venceu os galardões de Melhor Filme, Melhor Actriz Principal (Isabel Ruth), Melhor Actor Principal (Hugo Bentes), Melhor Actor Secundário (Adriano Luz), Melhor Argumento Adaptado (Tréfaut e Fátima Ribeiro), e Melhor Direcção de Fotografia. Em 2018, ganhou ainda o Prémio do Júri Internacional da Federação de Cineclubes da Rússia «Keen Eyes» e o Prémio da Imprensa Independente – Jornal Kommersant no Festival Internacional de Cinema de Moscovo em 2018 e o Prémio Tejo Internacional – Prémio do Público no festival Periferias, que decorre em Marvão (Portugal) e Valência de Alcântara (Espanha). Foi mostrado em festivais de cinema na Alemanha, na Bélgica, no Brasil, em Espanha, e em Itália. Teve honras de encerramento do IndieLisboa 2018.



www.abrilabril.pt

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