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Querida avó,
Como está a correr a tua temporada fora de Lisboa.
Conhecendo o tempo da Ericeira, e o facto de não te expores ao sol, deves continuar branca que nem uma lula.
Gostas mais de andar caídas pelos bares e a fazer palavras cruzadas protegida do sol.
Mas olha que a vitamina D também te faz falta. E não me venhas com a desculpa que tomas diariamente suplementos de vitaminas.
Bom, por muito que goste de ti, hoje apetece-me falar de duas pessoas que fazem parte das nossas memórias.
Uma vez disseram-me: “O seu projeto cheira a naftalina.” Pois, antes cheirar a naftalina do que as pessoas “não terem ontem”, como tantas vezes ouvi dizer o Varela Silva.
Faz hoje 17 anos que morreu Maria de Lourdes Pintasilgo.
Claro que os mais novos (e quando digo “mais novos” não estou a falar de crianças) não sabem quem foi esta mulher. Mas aqui está um belo tema para ser abordado em família.
Maria de Lourdes Pintasilgo foi a primeira mulher (e única até agora), a desempenhar a função de primeiro-ministro em Portugal, embora apenas tenha ocupando o cargo durante cerca de seis meses. Lembro-me perfeitamente de a ver na televisão. Estávamos em 79 convite e o convite para o cargo foi feito pelo então Presidente da República Ramalho Eanes.
Sempre foi uma mulher à frente do seu tempo.
Apenas com 23 anos (enquanto muitas da idade dela já eram casadas, com filhos, dedicadas à família…), formou-se em engenharia químico-industrial, um caso raro na época, quando apenas três mulheres a acompanharam numa turma de 250 alunos.
Assumiu, desde muito cedo, a liderança de associações e entidades ligadas a movimentos de mulheres ou estudantis.
Até hoje nunca mais tivemos uma mulher a ocupar o cargo de primeiro-ministro. Não é um problema só português!
Infelizmente, as pessoas ainda são vistas pelo sexo com que nasceram e não pelas qualidades que desempenham.
Enfim. Ainda muito há para fazer!
Outras das minhas memórias de infância que quero partilhar contigo hoje tem a ver com “o pai da Pantera Cor de Rosa”.
Se fosse vivo, Vasco Granja teria completado, na terça-feira, 13, 96 anos.
Era bastante carismático. Tratava o público todo de forma infantil, sem se preocupar com a idade de quem assistia. Começava sempre com a frase “Olá, amiguinhos”. Ora, alguém que nos entrava em casa semanalmente a tratar de forma tão afável, conquistava logo todos os telespetadores, independentemente da idade. Vasco Granja era o “avô” das crianças da minha geração. Tal como os nossos avós quando nos davam a mão para ir ao cinema, o “avô” Vasco dizia algo como: ”Os meus amiguinhos têm aqui um filmezinho” …
E assim foi durante 16 anos. O tempo em que teve no ar o programa Cinema de Animação. Vasco Granja dava-nos ainda a perceção da nossa pequenez. Mostrava-nos o Cinema do Mundo. Não apenas o cinema da Europa e da América do Norte.
Recordo, com nostalgia, o Calimero e a Pantera Cor de Rosa.
O Calimero era um meigo, mas infeliz pintinho (o único negro da família de galos amarelos). Ele vestia metade de sua casca de ovo ainda na sua cabeça.
A Pantera Cor-de-rosa era uma Pantera fanática pela cor rosa, pois considera o rosa como sua cor favorita.
Nunca usou a esperteza para enganar, mas para ser feliz. Usou-a apenas para fugir ou esconder-se dos seus adversários ou para não ser incomodado. Às vezes vale a pena aplicar esta atitude!
Agora lembrei-me da célebre frase da saudosa Amália “Já não me lembra”, quando ela não queria abordar certos assuntos.
Querida avó, está na hora de fechar o baú, pois a minha vida não é só isto.
Conheceste o Vasco Granja? Os teus filhos também assistiam às series?
E a Maria de Lourdes Pintasilgo, conheceste?
Sempre gostaste de Mulheres que rasgam com o convencional.
Bom fim-de-semana.
Bjs
Querido neto,
Tive uma grande admiração pela Maria de Lurdes Pintasilgo, mas infelizmente não a conheci pessoalmente. Mas estou sempre a citar uma frase sua: “Só haverá igualdade de género no dia em que uma mulher incompetente ocupar um lugar de chefia.”
E acho que faz muita falta uma mulher na chefia do governo.
Mas vamos lá então ao nosso amigo Vasco Granja.
Para ti—e creio que para a esmagadora maioria dos portugueses—o Vasco Granja é apenas o “pai da Pantera Cor de Rosa” e dos programas de desenhos animados e de banda desenhada da televisão. O que já seria muito bom. Mas o Vasco Granja foi muito mais do que isso.
Foi um grande homem.
Desde muito novo ligado à política, pertencia ao Partido Comunista. Foi preso e torturado nas cadeias do Aljube, Caxias e Peniche.
A PIDE não o largava.
Para além dos seus programas na televisão, também apresentava filmes nos cinemas de Lisboa. E um dia foi preso porque alguém o denunciara dizendo que as receitas dos espectáculos iam ser entregues aos movimentos de resistência antifascistas. Mandaram-no 18 meses para Peniche.
Mas nunca se queixava, sempre com um sorriso na boca e aquela fala mansa de que todos se devem lembrar.
Só com o 25 de Abril conseguiu respirar livremente.
Mas falando de coisas mais alegres, ele foi, para já, um autodidata que teve a sorte de fazer parte das tertúlias do Café Gelo e do Café Nicola, onde conviveu com Aquilino Ribeiro, António Sérgio, Armando Cortesão, Hernâni Cidade, Alves Redol e tantos outros.
E, no tempo em que trabalhou na Editorial Arcádia, secretariava o escritor Fernando Namora.
E foi ele que introduziu no léxico português a expressão “banda desenhada”— para acabar com “histórias aos quadradinhos”— e escreveu para muitos jornais. Começou a escrever para A Nossa Terra, de Cascais, a que se seguiram Diário de Lisboa, Jornal do Fundão, Notícias da Amadora, Diário Popular, A Capital, Diário, JL, etc.
Já referiste as bandas desenhadas que ele apresentou na RTP—mas, para mim, devo-lhe a descoberta de dois heróis: Corto Maltese e Hugo Pratt.
E claro que os meus filhos—como penso que todas as crianças — não largavam os olhos do écran a partir do momento em que ele aparecia e os chamava: “amiguinhos!”
E nascidos muito pouco tempo antes do 25 de Abril e crianças muito politizadas, a minha filha ainda hoje recorda um desenho animado em que um grupo de pintainhos estava a brincar quando avistaram um outro, sozinho, ao longe. Correram logo para ele e perguntaram-lhe:
“Então, amiguinho, vens da clandestinidade?”
Não me lembro da resposta, mas devia vir, com certeza.
E aí tens o nosso Vasco Granja. Esperemos que em 2025—data em que faria 100 anos—a RTP lhe faça a homenagem que merece.
É esta semana que levas a 2º dose da vacina?
Isto está péssimo.
Fica bem.
O Diário de uma Avó e de um Neto é um projeto do site Retratos Contados
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