Umas semanas mais tarde, continuo boquiaberta com este verso da Nenny: “Safoda a porta, vou pela window”. Diz tanta coisa.
Umas semanas antes, um pedaço antes, eu não conhecia a Nenny. Estava à procura de uma pessoa nascida já nos anos 2000 para os 25 Filhos da Madrugada, alguém que pudesse trazer as coisas que vieram nestes anos e que são específicas desta geração.
Nenny nasceu já depois da queda das Torres Gémeas, aquele tempo em que o mundo mudou de lugar. Nasceu num bairro apelidado de problemático, o Vialonga, nos arredores de Lisboa, e emigrou com a mãe em 2014, primeiro para França, depois para o Luxemburgo. Continua a viver entre o Vialonga e o Luxemburgo, apesar dos milhões de visualizações no YouTube. Na sua fala incorpora o crioulo, o calão, o inglês, o português, encarna uma nova Lisboa, grande Lisboa, mixada, que celebra a negritude. As suas letras têm um lado áspero e bruto da paisagem urbana.
Traduzem desigualdade social, exprimem ansiedade. É de origem cabo-verdiana, tem 18 anos, é a mais jovem destes 25. Algures, esta rapper que não é só rapper, porque dizer rapper não chega, esta artista compreendeu que tinha de se safar. Safoda a porta, vou pela window.
O meu primeiro desafio era encontrar pessoas que entram pela porta e aquelas que inventam uma window. Um Portugal heterogéneo ou, como resumiu a Nenny quando lhe expliquei o conceito do programa, 25 portugais.
Foi a esta escolha que dediquei boa parte do tempo de preparação. Procurava a diversidade, a complementaridade, pessoas de diferentes áreas de trabalho, proveniências sociais, faixas etárias, sensibilidades políticas, geografias, conhecidos e desconhecidos, que não representassem ninguém a não ser a si próprios, e que ainda assim ilustrassem o país que fomos sendo nos anos da democracia, que explicassem como é que, ainda que de um modo remoto, a sua vida foi tocada, alterada, perturbada pela revolução. Todos nasceram em liberdade, excepto Domingos Folque Guimarães, o mais velho, que precede a Nenny, a mais nova. Domingos nasceu duas semanas antes do 25 de Abril, e por isso a mãe diz que este seu primeiro filho foi o arauto da revolução.
Domingos é afilhado de Domingos Abrantes e Conceição Matos. Politizado até à medula. Outros convidados, nem tanto, ou muito pouco. Em qualquer caso, há um antes e um depois que ainda se inscreve nas suas biografias. Mais não seja porque os seus pais cresceram em ditadura. E essa mancha não desaparece na alegria de uma madrugada.
Sendo feminista e defensora das quotas, a paridade de género era inquestionável para mim. A verdade é que mesmo que a motivação não fosse essa, não havia como fugir à alteração do estatuto da mulher nos últimos 47 anos e plasmar isso no programa. Uma das diferenças mais gritantes tem justamente que ver com a saída da mulher da esfera da domesticidade e a sua vinda para a ágora social; o que não quer dizer que tenha igual acesso a cargos de poder ou igualdade salarial. Conclusão: são 10 homens e 16 mulheres (um programa tem duas entrevistadas, as gémeas Mortágua).
Reconstituindo um pouco, talvez fantasiando um pouco, penso que este projecto resulta de uma sedimentação lenta. A auscultação do país democrático começa numa outra auscultação: na série (Quase) Toda uma Vida feita para o CCB, na qual entrevistei pessoas de diferentes áreas com mais de 75 anos. Com Frei Bento Domingues falei da marca do salazarismo, com Maria Belo do mutismo difícil de romper (o medo e a inibição de dizer o que se pensa), com Jorge Sampaio das lutas académicas, com Borges Coelho do país paupérrimo em que uma mulher rilha uma pedra para enganar a fome, com a fadista Celeste Rodrigues daquela primeira vez em que ela e a irmã, Amália, andaram de carro e foram à Suíça lanchar, já adultas. Com Conceição Matos e Domingos Abrantes ouvi a luta contra o fascismo.
De diferentes maneiras, todos tinham essa presença esmagadora, constitutiva de quem eram: ter crescido em ditadura.
O país mudou muitíssimo. Alguns dados e alguns casos para uns saudosistas que se atrevem a dizer que antigamente é que era bom.
O avô de Carmen Garcia teve uma casa de banho pela primeira vez aos 70 anos. Não era em casa, era no fundo do quintal. Mas era uma casa de banho sua, da qual tinha orgulho.
A enfermeira nasceu em 86. O seu pai esteve na guerra, da qual não falou durante largos anos.
No ano em que Djaimilia Pereira de Almeida nasceu, em 1982, havia 130 doutorados em Portugal; destes, 95 eram homens e 35 mulheres. No ano do seu doutoramento, em 2012, havia 2232 doutorados, dos quais 1023 homens e 1209 mulheres. Em 1974, estavam inscritos no ensino superior 50 mil alunos. Em 1994, o número subiu para 270 mil. (Fonte: A Situação Social em Portugal, 1960-95, organização de António Barreto) Em 2000, eram 350 mil inscritos.
Em 2019, eram 386 mil.
Vítor Cardoso é um dos maiores físicos do mundo. Aos 45 anos, é professor catedrático do Técnico. O seu pai era trolha, a mãe tricotava camisolas e trabalhava no campo.
Se Vítor tivesse nascido em 65 em vez de 75, teria começado a trabalhar aos 12 anos, como o pai, para ajudar a família. Mas depois vieram os abonos, as senhazinhas para comer na cantina, andar de autocarro, o apoio da acção escolar. Por outras palavras, começou-se a erguer o Estado Social.
José Reis também é beneficiário da criação do Estado Social. Protagonizou um dos momentos mais comoventes do programa quando prestou tributo aos seus pais e a outros pais que trabalham de madrugada a madrugada.
Foi campeão do mundo de kickboxing, dá alento a miúdos de bairros degradados.
Estes exemplos exprimem de forma contundente o D de desenvolvimento mas também o D de democratizar. Creio que não é possível entender uma democracia plena à margem de indicadores satisfatórios na área da saúde, educação, igualdade de oportunidades, correcção de extremas desigualdades sociais. Democracia não é sinónimo, apenas, de liberdade de expressão, associação, eleições livres.
O outro D, o da descolonização, foi abordado no programa com Assunção Cristas, uma dos cerca de 500 mil retornados (assim chamados, mesmo que, para muitos, como os pais da professora universitária e política, não fosse um retorno, uma vez que nunca tinham estado cá), vindos em 1975. Mas também com Bruno Vieira Amaral, nascido em 78, e oriundo de um bairro ainda por acabar, o Vale da Ameixoeira. O bairro, transmutado nos seus livros no bairro Amélia, foi ocupado por pessoas vindas das ex-colónias e por pessoas vindas de outros bairros pobres e do interior. A família de Bruno é angolana e alentejana.
A narrativa de Constança Freire de Sousa, Leonor Teles e Maria Inês Marques, nascidas na década de 90, é significativamente diferente daqueles que nasceram nos anos 70. Para as três, tirar um curso superior era uma certeza, e viver fora de Portugal um desejo ao seu alcance.
O que mudou? A ideia de que é possível.
A liberdade de poder escolher. Também a angústia, por vezes expressa de forma aguda, em relação ao futuro. Ter uma qualificação superior não garante nada, a precariedade é uma constante, as casas são caras, os empregos rareiam e não são para a vida.
Considerei importante procurar pelo F de Fátima; dito de outra maneira, pela prática religiosa entre as pessoas deste grupo. Convidei um homem que nasceu numa família laica e que se converteu ao catolicismo já adulto (João Taborda da Gama), um pastor evangélico (Tiago Cavaco), Bruno Vieira Amaral cresceu numa família de testemunhas de Jeová, Tatiana Salem Levy é judia, Assunção Cristas é católica praticante.
Tatiana permite abordar o tema da xenofobia. Vulgarmente ouve o insulto: “Se não estás bem, vai pró Brasil, volta para a tua terra”. Sucede que Portugal é a terra dela. Nasceu em Lisboa em 1979, quando a lei da nacionalidade era outra e prevalecia o jus soli.
Tenho aprendido muito na preparação e na escuta destas entrevistas. Porque nasci em 71, já não sou desta madrugada. Mas este é o meu tempo cronológico. O meu pai também esteve na guerra. A minha avó era analfabeta e eu sou doutoranda (quase todos os entrevistados são licenciados e muitos deles doutorados; num país que em 74 tinha uma taxa de analfabetismo de 24% não deixa de ser espantoso). Fiz a migração do interior para os grandes centros urbanos. Tenho a consciência de que vivo num país tremendamente imperfeito e incomparavelmente melhor ao que havia antes. E agora que espreitam os fascismos e rebenta o discurso do ódio, não é tempo de virar costas à política, de pensar que a democracia é inamovível. É preciso estar atento e forte – como na canção do Caetano.
O F de Fado: com a Gisela João, as ganas de Barcelos, uma maneira de falar que não é a da televisão. Nome do seu Instagram: a berdadeira. Sobretudo, um fado capaz de se reinventar, que não é saudosista, que trabalha com os Fado Bicha, usa tatuagens e integra música electrónica.
Não houve espaço para o F de futebol.
Mas falámos de desporto, sim, da importância de ter foco, criar objectivos, perseverar, lidar com derrotas. Com José Reis, e também com a ministra de Estado e da Presidência, Mariana Vieira da Silva. Praticou natação de competição. Vale a pena sublinhar que seria impensável uma mulher ser o braço direito do Primeiro Ministro com apenas 37 anos antes da revolução.
Uma amiga escreveu-me isto: “Tenho-me apercebido, e isto é o mais especial, que o programa é sobre gerações, transmissão, pais e filhos. É importante, neste país envergonhado, que as pessoas falem de onde vieram, de um meio mais pobre, rural. Vamos todos dar ao campo. E que coisa extraordinária os avanços que se deram nas últimas gerações. Por causa do programa, tenho reflectido bastante sobre a minha história, ou melhor, a dos meus pais, e como ela me constitui. Estou cheia de vontade de voltar a estar com os meus pais, para lhes perguntar coisas sobre eles.”
Também eu tenho reflectido sobre quem sou, a partir do quem somos, das nossas portas e windows, a partir desta afirmação da diversidade. Há um protagonista que emerge do programa: o conjunto dos 25, esse um plural, que se ramifica em muitas coisas.
E safoda o fascismo, claro.
Publicado originalmente no Jornal de Letras em Abril de 2021.
https://anabelamotaribeiro.pt/safoda-a-porta-vou-pela-window-267654
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