Matos Serra in facebook
Quando eu tinha os meus nove anos… já então tinha ouvido falar no Manta Branca, uma lenda viva… e ao qual eu prestava um certo culto… Era um poeta popular de grande nomeada, mas, não era só pela qualidade do seu estro que tinha ganho o seu merecido protagonismo – era porque além de ser teso para a pancadaria, quando lhe acirravam os selenóides…tinha o espírito livre do maltês, era rebelde e insubmisso e era um anti-salazarista dos quatro costados. Às vezes trabalhava como operário agrícola mas, preferia o trabalho das jornas durante pequenas fegas, (era assim, que, naquele tempo se dizia de um determinado período de trabalho) para arranjar algum dinheiro para investir no contrabando. Tinha muitos amigos em Assumar, terra dos meus ancestrais, pela via paterna, e, um dia, tinha eu então nove anos, quando à tarde, depois da escola, fui, para o valado da linha, guardar a burra parda… estava ele, junto de uma fogueira, com alguns amigos e duas espanholas que o franquismo tinha obrigado a exercer a mais velha profissão do mundo… um deles, o Zé Cutão, que mais tarde, por motivos de uma blenorragia incurável, haveria de aparecer pendurado de um frondosa oliveira, chamou-me para me apresentar ao Manta Branca que , para mim, como já disse… era um ídolo. Foram estas as palavras de Zé Cutão, dirigidas ao Manta Branca: -“Este gaiato também sabe fazer versos…” e isso foi o bastante… para, na ordem de valores do bardo rebelde, eu passar de imediato, ali naquela pequena assembleia, a ser o ídolo. Mais tarde, quando eu tinha dezasseis anos, sendo já então um lenhador a aprender as agruras do mundo… voltamos a encontrar-nos e a ser, durante três alegres e marcantes semanas, camaradas no trabalho, na poesia e na assunção da vida… foi portanto a poesia, de que eu era ainda um sapateiro, que me fez cruzar com este vate que, ao aperceber-se de que eu fazia parte dessa malta de jorna, quis que eu fosse seu camarada a arrancar azinheiras e sobreiros, na Herdade da Torre, próxima da Estação de Portalegre… ele teria, já nessa altura, mais de cinquenta anos, era valente como as armas, mas nada disso obstou a que quisesse fazer parelha com um rapazola de dezasseis… Foram só três semanas porque, findo esse lapso na vida de contrabandista, o meu amigo Jaime, era este o seu nome de tratamento, entre amigos… voltou à sua profissão preferida e apareceu lá, uma semana depois, com uma grande mochilada de navalhas, de ponto e mola, que vendeu a toda a malta dos seus amigos lenhadores, onde eu tinha, no seu conceito, um lugar de destaque, por motivo dos versos, dele e meus. Depois foi-se para o seu destino de maltês, rebelde e insubmisso e, eu, não mais o vi…
Só mais tarde, quando eu já tinha seguido a carreira das armas, soube que ele havia falecido dois anos depois deste nosso fraterno e profissional convívio… mas, até hoje, ele tem um lugar especial no meu coração de poeta… e o poema tradicional que aqui vos deixo, com mote seu, é em sua saudosa memória.
MOTE DO MANTA BRANCA POETA POPULAR ANALFABETO MAS DE FINO ESTRO
O meu poema, à guisa do Manta Branca, é uma invectiva dirigida, sobretudo, contra os mediadores de opinião que com o seu verbo pernicioso, incisivo e alienante… concorrem para instilar, nas mentes, a confusão e o espírito de submissão.
Não vejo senão canalha
De banquete p’ra banquete
Quem produz e quem trabalha
Come açordas sem “azete”
A tirania ergue lanças
E o povo dobra a cerviz…
Lá se vão, no meu país,
Perspetivas e esp’ranças…
Feito de falinhas mansas
Anda um discurso de gralha,
Que confunde e que baralha
Apesar de não ser novo
Porque, a enganar o povo…
Não vemos senão canalha.
Ligam-se os televisores
Vê-se um painel perfeito
Que foi ‘scolhido a preceito
Dos melhores comentadores…
Que, com cachés sedutores
Merecem um galhardete…
E, fazem um brilharete,
Em sessões e mais sessões…
P’ra verem os seus patrões
De banquete p’ra banquete.
Se formos, de banca em banca,
A procurar nos jornais…
Vemos prosas geniais
Com que a verdade se estanca…
Àh! Jaime da Manta Branca…
Já não estás nesta batalha
A lutar contra a ‘scumalha…
Mas… o teu verbo perdura
P’ró usar como armadura
Quem produz e quem trabalha.
Tu… que viveste em conflito
Com a ‘scumalha fascista…
Que à clique salazarista
Sempre fizeste um manguito…
Que te mostraste um perito
A puxar pelo topete…
O teu verbo é um cacete,
Um varapau excelente…
Porque o povo… novamente…
Come açordas sem “azete”
Matos Serra in Poesia Tradicional e de Cariz Social
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