Sou tão imigrante hoje quanto era na minha infância. Quando somos crianças e carregamos a responsabilidade de servir de ponte entre duas culturas, não estamos tão cientes desse duplo papel, limitamo-nos a manobrar por entre os obstáculos da melhor forma que conseguimos. Apercebemo-nos, desde muito cedo, de que há coisas a separar-nos de tudo o resto: o nome, a língua, a cultura e temos de aprender a lidar com essa diferença. Às vezes crescemos a odiá-la, às vezes resignamo-nos a ela.    

É difícil encontrar as palavras certas para transmitir aquilo que é a experiência do imigrante, a experiência emocional de crescer numa cidade que sabemos que não nos pertence originalmente, mas que adotámos como nossa. Estranhos numa terra estranha a habitarem num cruzamento cultural, com todos os choques de civilizações que possam daí advir.

As minhas memórias mais antigas começam em Lisboa. Não posso dizer que tenha tido uma infância infeliz, mas também não me sinto capaz de a definir como feliz, face a uma vivência de constante fratura que marca para sempre a personalidade de qualquer criança e a molda de forma irrevogável. Uma criança é adulta antes do tempo porque, de súbito, viu cair nos seus ombros as responsabilidades dos adultos.  

Arroios foi o lugar onde escolhemos viver. É hoje considerada uma das freguesias mais multiculturais de Lisboa e com uma grande diversidade étnica, mas nas décadas de 1980 e 90 estava ainda longe de mostrar essas características. Conheço aquelas ruas como a palma das minhas mãos, em particular a omnipresente Avenida Almirante Reis na sua interseção com a rua Pascoal de Melo. Uma criança aprendia de forma instintiva a conhecer o território que poderia trilhar com segurança. A minha escola do ensino básico fazia fronteira com a zona mais problemática, a zona de Anjos e Intendente, fustigada pelo peso da pobreza, prostituição e toxicodependência. A tristeza e sujidade daquelas ruas eram opressivas.

Poucos anos depois de nos termos instalado em Arroios, os meus pais arrendaram à Igreja um estabelecimento comercial nas traseiras da Igreja da Madalena, virado para a Igreja do Santo António, nas proximidades da Sé de Lisboa. Não somos católicos, mas foram muitos os anos de proximidade à religião, aprendendo a viver de acordo com os seus ritmos e rituais, que culminavam no feriado do Santo António. Nessa zona entre Alfama, Costa do Castelo e a baixa lisboeta fiz, de certa forma, um outro tipo de escola mais desafiante.

Ainda me recordo das manhãs de sábado em que o meu pai me levava, muito cedo, ao antigo mercado do Chão do Loureiro, onde recolhíamos os legumes e a fruta, e não eram poucas as vezes que as vendedoras da praça nos ofereciam sacos enormes de salsa, os únicos em toda a vizinhança a levar salsa em tais quantidades e que se destinavam ao prato nacional do Líbano, o tabbouleh, que a minha mãe confecionava para a família quase todos os dias.

Mais tarde, no verão, passava os dias na companhia dos meus pais no seu estabelecimento enquanto os clientes iam e vinham. Todas as semanas, o meu pai dava-me dinheiro suficiente para comprar um livro de banda desenhada da Disney na tabacaria ao lado, e então sentava-me em cima da arca dos gelados e mergulhava de alma e coração nas aventuras do Tio Patinhas, Pato Donald e restante trupe.

Houve um verão em que devo ter lido tantas vezes aqueles livros que quando regressei à escola, já sabia ler e escrever português de forma correta, sem qualquer atraso em relação aos meus colegas. Ainda me lembro do choque da minha professora da quarta classe que ficou tão surpreendida que chamou a minha mãe à escola para tentar compreender como é que eu, numa casa onde não se falava português, dera um salto tão grande na leitura e compreensão da língua portuguesa.

Muito tenho eu a agradecer a Carl Barks. Gostaria de me ter mantido fiel à banda desenhada, mas um cliente do meu pai, ao aperceber-se do meu amor pela leitura, começou a emprestar-me a sua coleção particular de clássicos portugueses. Olho para trás e penso como a minha curiosidade insaciável me impelia a aprender tudo o que podia, a descodificar sozinha o mundo com a minha própria investigação. Só podia contar comigo própria.

Li Aquilino Ribeiro, Eça de Queiroz, Ramalho de Ortigão, Júlio Dinis e tantos outros. Não eram só livros emprestados, cedo comecei a fazer a minha própria coleção. Dirigia-me à antiga livraria Citação na rua dos Fanqueiros onde passava algum tempo a escolher cuidadosamente o livro que iria levar naquele dia. Jamais os meus pais impediram a minha dedicação à leitura, mesmo quando não me conseguiam acompanhar em pleno. Aprendiam comigo e eu aprendia com eles as histórias do Monte Líbano, onde tinham nascido, crescido e casado, junto de um enorme clã que foram forçados a deixar para trás com o eclodir da guerra civil.   

Essas histórias permaneceram comigo sobre um Líbano de outrora que já não existe. O Líbano do tempo dos otomanos, do mandato francês, das lutas do socialismo e pan-arabismo, num grande e complexo mosaico político e religioso cujas origens são muito remotas no tempo.

Essas histórias vieram todo o caminho connosco desde a baía levantina do Mediterrâneo até ao estuário do Tejo, a implorar para serem partilhadas, de uma forma ou outra, pois são histórias de resiliência de um país que viu muitos dos seus filhos e filhas dispersos pelos quatro cantos do mundo, numa diáspora sempre em expansão. Uma diáspora que nos quebra, inevitavelmente, o coração em dois.


SAFAA DIB

Enquanto luso-libanesa, vive entre duas culturas desde que se lembra, mas Lisboa é onde assentou o coração. Desde muito cedo ingressou no mundo da edição de livros e divulgação literária. Nunca pessoa de se restringir a uma área só, é proprietária de um estabelecimento de cozinha libanesa em Lisboa e, nos últimos anos, ingressou na atividade política, sendo dirigente do LIVRE.


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