Um rebanho de ovelhas - e uma cabra - fazem parte da primeira fase do Life Lungs no parque da Bela Vista. A polémica das últimas semanas sobre o projeto originou ofertas de munícipes para que pastoreiem os seus rebanhos.
Quando João Segura diz que é pastor em Lisboa provoca estranheza. A primeira imagem que vem à cabeça é ele a pregar aos fiéis num templo da IURD. É difícil imaginá-lo a pastorear ovelhas pela capital portuguesa. No entanto, é justamente isto que faz o jovem pastor João, 23 anos, no ovil concebido pela Câmara de Lisboa, no Parque da Bela Vista.
João é um dos quatro pastores responsáveis por conduzir um rebanho com cerca de 20 ovelhas através de um parque urbano, uma experiência não-mecânica e o mais natural possível que mantém a vegetação do lugar no tamanho certo e do modo aparentemente – e naturalmente – mais correto.
O ovil urbano é o principal prisma do projeto Life Lungs, cofinanciado pela União Europeia e parte das ações da Câmara durante o estatuto de Lisboa como capital verde da Europa, em 2019. Uma experiência iniciada naquele ano e que se encerra em junho e pode trazer mais pastores como o João para os parques lisboetas.
“Há algumas juntas de freguesia da cidade que já nos procuraram, interessadas em replicar o modelo, além de outros concelhos limítrofes do distrito de Lisboa”, conta Duarte da Mata, responsável pela candidatura lisboeta aos fundos destinados pela União Europeia para ações de mitigação do aquecimento global.
“Há algumas juntas de freguesia da cidade que já nos procuraram interessadas em replicar o modelo”
Duarte da Mata.
“Entretanto, ainda é cedo para conjeturas. Antes, é preciso avaliar esse período experimental e tirar algumas conclusões”, complementa Duarte. A avaliação decorre a partir de julho e a expetativa é de que até o fim do ano seja possível traçar os rumos da segunda fase da iniciativa.
A polémica do #Ovelhagate
Uma alternativa, até agora não prevista, seria criar um conceito semelhante ao das hortas urbanas, partilhando a cogestão de ovis com utentes interessados em ter o próprio rebanho a pastar pelos parques lisboetas. Um viés que curiosamente surgiu como efeito colateral à recente polémica que envolveu política, ovelhas e redes sociais.
Em maio, a consultora de comunicação Sofia Afonso Ferreira, candidata à Câmara de Lisboa pelo Nós Cidadãos! (assim, mesmo, com exclamação no fim), dedicou posts no Instagram e Facebook ao que chamou #Ovelhagate, a “denúncia” de que a CML havia gasto € 115 mil – fora o IVA – com a atividade de pastoreio no parque da Bela Vista.
O valor seria referente à construção do ovil (€ 74.890), do semeio e do uso do rebanho (€ 19.933,40) e dos “vigias” do ovil (€ 19.271). A CML reconhece os valores, mas não o teor de “denúncia” dos posts da candidata. Duarte ressalta que o início de todo projeto tem um valor elevado, pois geralmente é preciso criar estruturas do zero para que o mesmo funcione.
Assim, diz, o natural é que o valor inicial se dilua à medida que o projeto seja executado. “É importante, entretanto, lembrar que o Life Lungs é um cofinanciamento com a UE cujos números envolvidos são públicos e que as fases de execução obedecem a um rigoroso caderno de encargos”, ressalva.
A CML esclareceu ainda que o ovil foi construído no edifício de uma vacaria que outrora funcionou no parque e se encontrava sem utilidade. “A antiga vacaria foi transformada num equipamento urbano e não apenas como ovil”, conta Duarte, avançando que brevemente serão dados workshops no local.
O gestor não teme que o #Ovelhagate ponha em causa o futuro da iniciativa. “Os próximos passos do projeto não se baseiam em variáveis políticas, mas técnicas. Haverá rigor na análise dos dados recolhidos durante estes dois anos e a partir daí chegaremos a algumas conclusões”, aponta.
O curioso é que o buzz criado pelos posts da candidata e o berro das ovelhas pode indicar um dos caminhos. “Com a polémica, o projeto ganhou amplitude e fomos contactados por utentes que possuem rebanhos, interessados em pô-los a pastar nos espaços verdes da cidade”, revela Duarte.
A alternativa está posta em cima da mesa.
Pastorear no parque requer cuidados
Entretanto, enquanto não ganha a companhia de outros pastores, João Segura segue na rotina diária que começa por volta das oito da manhã e, agora com os dias mais longos, pode estender-se até às oito da tarde. O que a candidata classificou de “vigia de ovelhas”, na verdade é um ofício realizado por profissionais qualificados.
O próprio João é engenheiro zootécnico, mestrando do Instituto Superior de Agronomia. “Quando digo aos colegas que ando a pastorear no meio de Lisboa, não acreditam”, diverte-se o pastor urbano. Mas podem acreditar. Todos os dias, João pastoreia o rebanho numa área limitada, para a segurança dos animais e dos munícipes.
Gestora do projeto Life Lungs, Inês Freire salienta que a peculiaridade de o ovil funcionar num parque público é uma variável que torna o trabalho do pastor fundamental. “Não é só o contacto com as pessoas, mas com os cães que passeiam com os seus donos, que podem reagir de forma imprevisível à presença das ovelhas”, explica.
Para evitar esse melindroso contacto, uma cerca elétrica móvel é diariamente montada e desmontada pelos pastores, numa área inicial de 200 metros quadrados, mas que pode estender-se até ao dobro, dependendo das condições climatéricas e do apetite das ovelhas. Cada animal consome em média 10 metros quadrados de pasto por dia.
Durante a reportagem, o rebanho recebeu a visita dos alunos de uma escola pública, que cuidadosamente foram guiados pelo pastor até o interior do cercado para alimentar os animais. O rebanho urbano também costuma chamar a atenção de quem circula pelo parque e as ovelhas parecem habituadas a serem cenário de fundo de selfies.
Inês diz que os animais são dóceis, pois nesta fase experimental o projeto utiliza o rebanho da Quinta Pedagógica da Câmara, trazido para pernoitar e pastar no ovil da Bela Vista. “A ideia é justamente perceber quais os recursos financeiros e humanos necessários e, a partir daí, concluir se este modelo faz sentido”, revela.
A cabra infiltrada no rebanho
As ovelhas compõem um espectro mais amplo do projeto Life Lungs, que contempla ainda o semeio de dois hectares e meio do parque com leguminosas. O chamado prado biodiverso segue o ciclo natural imposto pelas estações do ano, não requer rega e tem a poda sob inteira responsabilidades das ovelhas… e de uma cabra.
“A cabra foi rejeitada pelas demais da Quinta Pedagógica, mas convive em harmonia com as ovelhas”, conta Inês. Este traço do temperamento caprino ilustra a escolha dos ovinos para o projeto. “São geralmente mais pacatas e com um paladar mais seletivo”, resume a gestora. “As cabras, não, comem de tudo.”
João sabe bem disso e às vezes tem que “lembrar” à cabra camuflada por entre as ovelhas que não deve trepar às árvores ou trocar a rigorosa dieta à base de leguminosas pelo tentador colorido das flores do parque. Ossos de um ofício ancestral e que aos poucos regressa, a ecoar na moderna Lisboa os sons e as cores de um bucólico passado.
ÁLVARO FILHO
Jornalista e escritor brasileiro, 48 anos, há cinco em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
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