No passado dia 3 de Maio, aproveitando o facto da União Europeia realizar a dita Cimeira Social, em que participaram vários chefes de Estado e de governo, mais de duas dezenas de estruturas que representam o sector privado da saúde em Portugal, juntaram-se no Porto para aprovarem uma declaração Sistemas de Saúde Focados nas Pessoas e nos Resultados, cujo conteúdo, por mais dissimulado que esteja, não consegue esconder os verdadeiros objectivos: estamos perante uma verdadeira declaração de guerra ao Serviço Nacional de Saúde.
Esta iniciativa, cujas propostas são dirigidas à Comissão e Parlamento europeus, mas a pensar sobretudo em Portugal, onde juntaram pela primeira vez em muitos anos todas as estruturas representativas do sector privado, que têm em comum a defesa do negócio da doença, é o culminar de um ano marcado por uma ofensiva sem precedentes contra o SNS, em que procuraram, aproveitando algumas insuficiências do serviço público na resposta aos doentes com outras patologias que não a COVID-19, aparecer como os salvadores da pátria, insistindo na tese de que a solução de futuro passa sobretudo pela iniciativa privada.
Ao longo dos anos, particularmente neste último, este conglomerado de interesses instalados na saúde procurou impedir a articulação e exploração das integrais potencialidades do SNS, sitiando-o e utilizando-o como instrumento da transferência de recursos públicos para a acumulação privada.
Não estamos perante mais uma iniciativa integrada na campanha contra o SNS. Este é um passo muito significativo na ofensiva cujo objectivo é, desde há muito, a criação de um «sistema nacional de saúde» como uma pretensa solução de futuro. Dizem os promotores da iniciativa que são portadores de uma solução eficiente e sustentável, considerando o sector da saúde um importante contributo para transição climática e transformação digital, onde todas as suas componentes – privado, social e público – comuniquem entre si, criando desta forma as condições para que os doentes circulem no sistema.
Uma circulação que se faz num sentido, o dos privados, financiados com dinheiros públicos e com uma prestação de cuidados centrada nos seguros de saúde, deixando como alternativa aos dois milhões de pobres um serviço público minimalista, desvalorizado, com garantia de serviços mínimos.
Estamos perante uma proposta de estratégia que se insere numa lógica de desnatar o sector público com recursos financeiros públicos por via da dissociação do processo financiador/prestador e de aprofundamento das desigualdades no quadro do sistema a duas velocidades que decorre da opção utilizador/pagador.
Ao longo do texto utilizam expressões como «uma articulação inteligente e transparente entre sectores» e «assumir as pessoas no centro do sistema», com que procuram esconder a lógica de funcionamento dos grupos privados: o negócio da doença.
Procurando posicionar-se onde está o dinheiro fácil, apontam, como elemento central para as escolhas dos países da UE, o facto dos «agentes privados terem uma expressão significativa não só no sector da saúde como na economia europeia». Sempre a saúde misturada com o negócio.
Se dúvidas pudessem existir sobre o que os portugueses podem esperar das orientações defendidas na declaração do Porto, basta fixarmo-nos no que aconteceu no último ano, quando o País foi confrontado com o agravamento da situação epidémica, situação em que os grupos privados, ou se esconderam ou fecharam unidades, disponibilizando algumas camas, não para o combate à COVID-19, mas para a recuperação de cirurgias - o que dá lucro.
Ao longo das nove páginas do texto não fazem uma única referência ao Serviço Nacional de Saúde, ignorando por completo a existência de um preceito constitucional que atribui ao SNS o papel principal na garantia do acesso à saúde, bem como à existência de uma nova Lei de Bases da Saúde que aponta no mesmo sentido.
Perante mais este passo na ofensiva contra o SNS, cabe ao Estado responder da única maneira possível – reforçar o Serviço Público de Saúde, dotando-o das condições necessárias para assumir as responsabilidades constitucionais que lhe estão atribuídas, no sentido de garantir o acesso dos portugueses aos cuidados de saúde, independentemente das suas condições sociais e económicas.
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