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quinta-feira, 13 de maio de 2021

OS CORSÁRIOS PORTUGUESES




Portugal utilizava a guerra no mar desde que era nação. 

O mais antigo corsário português de que há memória foi D. Fuas Roupinho, o Almirante, cavaleiro Templário e alcaide de Porto de Mós. A sua actividade como comandante naval desenvolveu-se durante o reinado de D. Afonso Henriques, combatendo os piratas Norte Africanos e fazendo incursões no Algarve e Andaluzia, chegando mesmo a atacar Ceuta. Contava com uma frota de 40 navios. É inegável que Portugal tinha já nos séculos XIII e XIV

uma indústria de construção naval forte, como provam as inúmeras referências a taracenas de construção e reparação de navios. Enquanto o pirata é um fora da lei, que atacava e saqueava para seu benefício próprio, o corsário cumpre um objectivo político, actuando como uma espécie de guerrilheiro do mar, que apesar de obter lucros com a actividade que desenvolve, assume um papel importante no âmbito da política externa do país que serve, superando as próprias carências que as marinhas de guerra da época apresentavam, se podemos mesmo dizer que existissem. Abrigava-se num porto que lhe era autorizado e a sua acção era reconhecida pelos governantes, através da concessão de uma carta de corso, repartindo com eles o produto do seu saque. Normalmente o produto do corso era dividido em três partes, cabendo 10% para a autoridade da cidade, 45% para o armador do navio e 45% para a tripulação. 

O corso não se resume ao acto de pirataria em si, seja de abordagem de navios ou de raids terrestres, mas encontra-se frequentemente ligado a cidades agindo por conta própria, se bem que legitimadas por um poder nacional, originando uma economia local próspera com base nos mercados de escravos e entrepostos comerciais, e toda a logística e actividades paralelas que originam. 

Os navios utilizados pelos corsários eram pequenos e rápidos, normalmente xavecos (do árabe chabak ou rede, por ser um barco de pesca adaptado) ou galés, mas também fustas, galeotas, patachos, bergantins, cáravos, caravelas, fragatas ou outros, tanto movidos a remos como à vela, e equipados com peças de artilharia. 


Um xaveco, por exemplo, combinava três mastros e vela latina com remos, tinha geralmente entre 200 e 300 toneladas, uma tripulação de cerca de 200 homens e até 20 peças em bateria. 

Os corsários utilizavam a violência nas suas abordagens de forma inteligente, preferindo sempre a rendição das suas presas a um confronto directo, que podia provocar feridos desnecessários e que colocava em risco o valor da própria mercadoria a apresar. Para isso procuravam uma aproximação astuta, içando bandeiras dos países das suas presas, e forçavam a rendição dos navios que atacavam, através de uma encenação que passava por gritos e pela própria imagem que davam de si, com as cabeças rapadas e grandes cimitarras. Na abordagem tentavam acalmar as suas vítimas com frases em

Língua Franca, como por exemplo non paura! non paura! ou não tenham medo! “À gloriosa incerteza do combate, preferiam vítimas desarmadas e pacíficas” (CASTRIES, 1920, obra citada). As aproximações a terra eram cuidadosamente preparadas. Muitas vezes de madrugada, misturando-se com as embarcações de pesca que regressavam do trabalho. Em terra cortavam as cordas dos sinos das igrejas para evitar que o alarme fosse dado, já que o objectivo era capturar pessoas de preferência ainda nas suas camas, incapazes de fugir ou de se defenderem. Os sinos das igrejas eram normalmente roubados, pelo valor que o bronze tinha, e porque era preciso calá-los, fosse pelo facto de serem o elemento utilizado para o alarme, fosse pelo simbolismo religioso do replicar do sino. 

Zurara conta que em Ceuta foram encontrados dois sinos levados de Lagos, dizendo que “começou a repicar um sino, que ali estava de dois, que ali foram achados, que os Mouros em outro tempo levaram de Lagos”. As embarcações que se encontravam nos portos eram queimadas para evitar perseguições e diminuir a frota inimiga (DAVIS, [2003] 2006, p. 79-83). No que se refere ao rapto de populações, o objectivo dos corsários era primordialmente o de conseguir a sua troca por somas de dinheiro, procurando vender os prisioneiros no próprio local de captura, evitando assim o transporte da mercadoria, com todos os custos e riscos que comportava. 

Para isso mantinham-se nos locais de aprisionamento durante alguns dias, promovendo o pagamento dos resgates por familiares. No século XIV, D. Dinis contrata o genovês Micer Manuel Pessanha (Emanuel Pessagno) para organizar a armada portuguesa e operar nas costas do Algarve e Alentejo. Pessanha introduz as galés na guerra do corso, navios movidos a remos e à vela, de grande versatilidade. Como recompensa pelos seus serviços foi-lhe concedido o título de Almirante e doada a Vila de Odemira.



O Algarve era o centro da actividade marítima portuguesa ligada à guerra do corso e à exploração dos mares, e uma zona privilegiada no relacionamento com o Norte de África. Essa predisposição tem a ver com o facto de que, após a sua conquista pelos portugueses, não ter existido um movimento significativo de populações para o Magrebe, ficando muitos mouros na região, que mantinham contactos e trocas comerciais com Marrocos. 

O Algarve era um mundo à parte no contexto de Portugal, isolado pela serra algarvia, mantendo as suas tradições e cultura intactas. “Basta referir que em 1320, no reinado de D. Dinis, não havia ainda, ao que se supõe, nenhuma igreja cristã em Lagos, o mesmo acontecendo aliás em Lagoa, Portimão, Monchique, Olhão ou Vila do Bispo” (LOUREIRO, 2008, p. 17). O aumento da presença dos portugueses no Algarve e sobretudo o desenvolvimento do comércio na região, que se torna um importante entreposto de produtos entre o Mediterrâneo e o Norte da Europa, tem como consequência o incremento dos ataques dos corsários mouros, que frequentemente faziam pilhagens nas próprias cidades. 

O Mar das Éguas ou dos Algarves era permanentemente percorrido por navios corsários, portugueses e mouros, em busca de vítimas para os seus ataques. “Embora os contactos comerciais pacíficos nunca tenham sido interrompidos, assistiu-se então ao recrudescimento da pirataria. 

De parte a parte, tornam-se cada vez mais frequentes os ataques de piratas a embarcações comerciais ou as incursões a povoações costeiras” (LOUREIRO, 2008, p. 21). Vemos, assim, que no final do século XIV a actividade corsária generaliza-se em Portugal. Os corsários portugueses actuavam preferencialmente no chamado Mar dos Algarves ou Mar das Éguas, quer fosse ao serviço do Rei de Portugal ou de nobres nacionais, quer fosse por conta própria, quer fosse inclusivamente ao serviço de potências estrangeiras. 

A casa real não se limitava a apoiar o corso, como detinha os seus próprios navios corsários, que saqueavam e atacavam navios, e promoviam expedições de busca de novas terras, para a expansão da sua actividade, pilhagem dos seus recursos e sobretudo rapto e escravidão dos seus habitantes. O corso era uma forma de enriquecimento e de ascensão social, já que muitos escudeiros eram nomeados cavaleiros após passarem algum tempo nos navios corsários, beneficiando também de reduções e isenções de impostos. Durante o século XV os portugueses já eram tidos como os maiores corsários da cristandade, actividade considerada nobre e honrada. 

O corso cumpria um papel determinante na defesa da costa Sul de Portugal e da navegação, sem encargos para o estado, que recebia parte dos lucros arrecadados. Lagos tinha uma posição estratégica para o controlo da navegação, pela curta distância a que se encontra do Cabo de S. Vicente. 

Era a vila do Infante D. Henrique, sua principal base e um verdadeiro ninho de corsários e piratas. 

O governador do Reino do Algarve escreveria alguns anos mais tarde sobre Lagos, em carta enviada ao Rei D. José, que “este lugar era a chave do reino, por ser situado na costa do mar, com uma baía onde podiam dar fundo mais de duzentas naus de guerra e que junto tinha uma praia de mais de légua onde em poucas horas se podia fazer um desembarque de grande exército” (LOPES, [1841] 1988, obra citada). 

Em 1444, Lançarote de Freitas, almoxarife da Vila de Lagos, funda a Parceria de Lagos, uma “sociedade de exploração e comércio organizada para resgate e descobrimentos da costa da Guiné” (PAULA, 1992, p. 357), que irá congregar os principais corsários de Lagos, como Soeiro da Costa, Gil Eanes, Vicente Dias e Estêvão Afonso, entre outros, promovendo expedições à costa Ocidental de África para captura de escravos. A primeira expedição parte nesse mesmo ano de 1444 e é constituída por 6 navios, comandados por Lançarote de Freitas, Gil Eanes, Estêvão Afonso, Rodrigo Alvares e João

Dias, capturando 235 berberes e negros nos bancos de Arguim, na costa da

Mauritânia. A sua venda num terreiro junto às Portas da Vila em Lagos foi descrita por Gomes Eanes de Zurara na sua Crónica da Guiné: “Uns tinham as caras baixas, e os rostos lavados com lágrimas, olhando uns contra os outros; outros estavam gemendo muito dolorosamente, esguardando a altura dos céus, firmando os olhos neles, bradando altamente, como se pedissem socorro ao pai da natureza; outros feriam seu rosto com suas palmas, lançando-se estendidos no meio do chão; outros faziam suas lamentações em maneira de canto, segundo o costume de sua terra, nas quais posto que as palavras da linguajem aos nossos não pudesse ser entendida, bem correspondia ao grau de sua tristeza (…) as mães apertavam os outros filhos nos braços, e lançavam-se com eles de bruços, recebendo feridas, com pouca piedade de suas carnes, para lhe não serem tirados! (…) O Infante estava ali em cima de um poderoso cavalo, acompanhado de suas gentes, repartindo suas mercês, como homem que de sua parte queria fazer pequeno tesouro” (ZURARA, [1448] 1841, p. 133-135). Nos dois anos que se seguiram partiram mais expedições de Lagos com destino a Arguim, trazendo escravos. O volume do tráfico negreiro era tal, estimado em 700 a 800 escravos traficados por ano, que foi fundada uma feitoria em Arguim, onde se trocavam trigo, tecidos e cavalos por escravos e ouro, e que originou a criação em Lagos da Casa de Arguim e da Casa da Guiné para gerir o negócio. 


O rei tinha os seus próprios corsários, os corsários d’el-rei. Os infantes D. Henrique, D. Fernando, D. Pedro e D. Duarte tinham todos corsários ao seu serviço, mas o Infante D. Henrique era de longe o maior promotor dos corsários de Portugal. Era D. Henrique que promovia e autorizava as expedições para o tráfico de escravos, e sobretudo que lucrava pessoalmente com o negócio, já que era detentor do seu monopólio. As condições dos contratos celebrados entre o Infante e os particulares impunham que “se o particular armasse uma caravela à sua custa, e a carregasse de mercadoria, teria de pagar ao Infante

um quarto da carga importada de Africa”, mas “se o Infante armasse a caravela e o particular a abastecesse de mercadoria, o Infante receberia metade da carga de retorno” (LOUREIRO, 2008, p. 61). Para além da casa

real, a nobreza também promovia o corso como um investimento lucrativo e uma forma de afirmar o seu poder e influências. Nobres como Álvaro de

Castro, conde de Monsanto, ou Sancho de Noronha, Conde de Odemira, eram proprietários de navios corsários, pagando o correspondente tributo à casa real. O próprio clero participava neste negócio, como atesta o facto de

D. Álvaro Afonso, bispo de Silves e Évora, chanceler-mor do infante D. Pedro, ter navios no corso. 

De entre a extensa lista de corsários portugueses destacam-se figuras como Bartolomeu Dias, João Gonçalves Zarco, Tristão Vaz Teixeira, Vasco Anes de Corte Real, Álvaro Fernandes Palenço, Álvaro Mendes de Cerveira ou Pedro Vaz de Castelo Branco. As Ordens Militares de Cristo, Santiago e Avis também estiveram envolvidas na guerra do corso. Não foi estranho a esta situação o facto do Infante D. Henrique ter sido administrador da Ordem de Cristo até 1460 e D. Fernando da Ordem de Santiago. 

A Ordem de Avis foi particularmente activa no Mediterrâneo, onde se destacaram os corsários Soeiro da Costa, alcaide de Lagos, Rodrigo Sampaio, Diogo de Azambuja e Pedro de Ataíde o inferno, o mais famoso de todos os corsários portugueses, que ficou na história pelo terror que incutia nos mares por onde navegava. Com a conquista de Ceuta, Portugal afirma-se perante Castela como a grande potência naval da região. Este facto, aliado à necessidade de proteger os cada vez mais numerosos comboios de navios mercantes dos assaltos dos corsários Norte Africanos, origina um incremento do corso português, que esteve na génese dos próprios Descobrimentos. 

A actividade dos corsários portugueses teve um tal incremento no século XV, que não só atacavam os navios sarracenos, como os próprios navios de Portugal e Castela, motivando frequentes queixas ao rei. Era comum os navios corsários portugueses posicionarem-se na foz do Guadalquivir para atacar os navios mercantes espanhóis assim que estes se faziam ao mar. 

Os principais ninhos de corsários portugueses eram Lagos, Tavira, Odemira, Lisboa, Buarcos e Leça da Palmeira, mas Ceuta suplantaria todos eles na sua importância após a sua conquista em 1415. “O arranque do processo expansionista, marcado pela conquista de Ceuta em 1415, foi, aliás, em parte, moldado em função dos interesses ligados ao corso, visto que o domínio da praça permitiu a automática substituição dos assaltantes muçulmanos, que costumavam operar a partir daquele ponto, por outros portugueses.

Os infantes D. Pedro e D. Henrique aproveitaram o ensejo para usar Ceuta como base operacional das esquadras corsárias por si patrocinadas, o mesmo sucedendo com D. Pedro de Meneses, primeiro capitão nomeado (…) 

O estímulo sentido por tais personalidades era de dupla natureza. Por um lado, contribuíam para o combate aos ‘infiéis’, no âmbito de uma guerra que era tida como justa e honrosa pela generalidade do mundo cristão. Por outro lado, contabilizavam avultados ganhos materiais, que lhes advinham tanto da condição de armadores como do privilégio de arrecadarem o quinto das presas, de que a Coroa abdicou a seu favor “(PELÚCIA, 2010, p. 35-36). 

Ceuta transforma-se rapidamente na maior base de corsários portugueses, suplantando a importância de Lagos. 

A conquista de Ceuta alarga o âmbito das acções de Portugal, que passa a controlar a navegação no Estreito de Gibraltar e a sabotar o comércio entre Marrocos e o reino de Granada. “A necessidade obrigava-a a transformar-se numa poderosa base naval. Tinha de limpar o estreito da pirataria moura e cristã e engordar ferindo as ligações entre o Magrebe e o Reino de Granada. 

Desde as primeiras horas os seus corsários flagelaram as rotas que ligavam Granada a Tunes e aos portos atlânticos de Tânger, Arzila, Larache, Anafé” (COELHO, 2011, p. 24). D. Pedro de Menezes é nomeado capitão da Praça e responsável pela sua defesa. Pedro de Menezes compreende rapidamente que a defesa de Ceuta não se faz só por detrás dos seus muros, mas principalmente no mar. Inicialmente só tinha ao seu dispor duas galés deixadas por D. João I à guarda de Micer Tom, “irmão do Almirante Micer Lançarote” (ZURARA, [1463] 2015, p. [309] 105), comandante da armada de Portugal, que se mostraram embarcações pouco adequadas para combater os corsários muçulmanos. 

“Na altura do regresso a Portugal, após a conquista de Ceuta, João I deixou em Ceuta duas galés para guardar o Estreito e defender a praça, recém-ocupada. 

O tempo demonstrou, no entanto, que para reprimir a pirataria muçulmana, era conveniente usar-se um tipo de barco, rápido e ligeiro, capaz de perseguir e se aproximar do inimigo e, naturalmente, apresá-lo. 

Ocorreu, assim, a necessidade de se construírem embarcações menores e mais velozes, a fim de se adaptarem às águas da bacia do Mediterrâneo e do ‘Mar das Éguas’. Também se verificou o recurso a lenhos capturados pelos corsários, que iam engrossar a marinha de guerra portuguesa. A coroa e, em particular, Ceuta assimilaram esta experiência funcional, ao optarem pelo fabrico de naves de baixa tonelagem, adaptadas à singularidade de navegação no Estreito. Ao menor porte, exigia-se que fossem céleres. 

Ora, uma pequena vela actuava em qualquer praia, ancoradouro, enseada, o que não acontecia com outras de maiores dimensões, que exigiam lugares mais apropriados.” (CRUZ, 2003, p. 54). Muitos nobres mantinham frotas de corso em Ceuta, cujas embarcações circulavam entre a cidade e Lagos. Zurara refere-se às “Fustas do Conde, das quais era o principal Capitão Álvaro Fernandes Palenço, homem por certo nobre, e que grandes, e muito notáveis coisas fez no mar” (ZURARA, [1463] 2015, p. [534-535] 330-331). 

Outros estabeleceram-se em Ceuta e aí geriam os seus negócios, como Micer João de Salla-Nova, Diogo Vasques ou Fernão Guterres. Muitos estrangeiros também utilizavam Ceuta como sua base, principalmente genoveses e aragoneses, como Pêro Palau ou Benito Fernandez. D. Pedro de Meneses empregava nos seus navios corsários portugueses e estrangeiros, como o genovês Pedro Palhão ou o castelhano João Riquelme, construindo em poucos anos um autêntico império económico. O aumento do número de corsários e dos recursos navais expandiu a actividade do corso sediado em Ceuta para o Mar de Alborán, a Leste, até ao Cabo Gata e para a costa Atlântica de Marrocos até Anafé. 

A esta expansão da actividade do corso correspondeu também o aparecimento das incursões em terra, muitas vezes de forma concertada com a marinha de guerra e a tropa regular, saqueando aduares com o objectivo de fazer cativos e pilhar gado, colheitas e outros bens. “Como nos faz crer Zurara, era difícil a Ceuta manter-se sossegada: ora se faziam entradas território adentro, ora incursões marítimas” (CRUZ, 2003, p. 50). O corso não se combatia com uma marinha de guerra tradicional, como demonstraria mais tarde o pouco sucesso que teve a Esquadra do Estreito criada por D. Manuel em 1520, já que os navios para serem eficazes tinham que ser rápidos e facilmente manobráveis. As tonelagens das embarcações de guerra são assim reduzidas em benefício da sua versatilidade. As próprias embarcações que os portugueses utilizavam inicialmente nas viagens dos Descobrimentos Página durante o século XV eram pequenas, normalmente caravelas de entre 50 e 200 toneladas e equipagens de meia centena de homens. 

A barca com que Gil Eanes dobrou o Cabo Bojador era uma embarcação ligeira, de 25 a 30 toneladas (VELOSO, 2006, p. 39). As naus que Vasco da Gama utilizou na descoberta do caminho marítimo para a India eram também de pequena tonelagem, tendo em conta a dimensão do percurso: a S. Gabriel e S. Rafael tinham 180 toneladas, enquanto a Bérrio tinha apenas 50. A caravela henriquina tinha cerca de 65 toneladas, e foi o navio de excelência deste período, tanto utilizada nas viagens de exploração, como no corso. 

Era muito versátil e o facto de dispor de uma vela latina permitia-lhe velejar à bolina, ou seja, contra o vento, assegurando as viagens de regresso no Atlântico, onde dominam os ventos do Norte. 

A caravela seria uma embarcação já existente no Algarve, concretamente na comunidade de pescadores de Lagos, onde o infante D. Henrique se estabelece, que seria posteriormente adaptada, passando dos dois mastros com velas triangulares latinas para três mastros e castelo na popa, mais tarde quatro mastros e finalmente “o bastardo da vela do traquete foi substituído por uma vela redonda dando aso ao aparecimento da chamada caravela armada” (VELOSO, 2006, p. 66-69). No século XVI, o intenso tráfego que a Carreira das Índias originava e consequente necessidade de espaço para armazenamento de mercadorias e de rentabilização das viagens obriga à construção de navios de carga de grande porte, naus e galeões, que eram normalmente escoltados por comboios de embarcações de combate durante a fase inicial do percurso, para fazer face aos ataques corsários no Mar dos Algarves. 

Para além de ataques da iniciativa dos capitães das praças, a Coroa Portuguesa também organizou operações de destruição de grande envergadura, como foi ou o ataque a Anafé no ano de 1468, a Expedição dos Aduares no ano de 1487 e o ataque a Targa em 1490. No ano de 1468 ou 1469, a data varia conforme os autores, uma armada portuguesa aportava em Anafé para uma missão punitiva. Anafé, actual Casablanca, era uma base de corsários particularmente activos. 

Damião de Góis escreveu que ataque foi meticulosamente preparado, com o envio prévio de um fidalgo espião, Estevão da Gama, “que foi lá com um navio carregado de figo passado do Algarve a modo de mercador, e para melhor conhecer o sítio da Vila, ele mesmo em vestidos de marinheiro, andava com as peças de figos, e passas às costas, vendendo-as pela Vila, para notar o que nela havia, e a Fortaleza que tinha, e a gente que era necessária para a tomarem” (GOIS, [1567] 1724, p. 82), que recolheu preciosas informações sobre a cidade. 

Foi organizada uma esquadra de 50 navios e 10.000 soldados, comandada por D. Fernando, irmão do Rei D. Afonso V, como refere Marmol y Carvajal: “Afonso, Rei de Portugal, enviou o seu irmão D. Fernando com dez mil soldados, que a queimaram e a demoliram, sem nenhum obstáculos, pois os seus habitantes não descobriram a tempo a armada real e abandonaram a cidade sem nunca mais voltar” (MARMOL y CARVAJAL, [1573], 1667, p. 140). Anafé foi totalmente arrasada. 

Rui de Pina refere que os mouros quando viram o poder da força portuguesa desampararam a cidade, “que foi logo entrada e roubada; e porque era de grande cerca, cuja defesa seria muito difícil (…) e porque na frota não ia gente e mantimentos que pudessem deixar e suprir à defesa da cidade, acordaram de em muitas partes a desportilhar e derrubar” (PINA, [15–] 1902, Vol. III, p. 53-54). Leão O Africano visitou Anafé após o ataque e escreveu o seguinte: “Vendo o que vi quando lá fui, não pude reter um a lágrima súbita que corria do meu olho, testemunhando a grande pena de que do meu coração se apoderou, oferecendo-se à minha vista um tal espectáculo, porque a estrutura do lugar fora bastante agradável e magnífica, tendo em conta os templos sumptuosos, as belas lojas e os soberbos edifícios que estão ainda de pé”. 

E concluiu que não há qualquer “esperança que ela possa voltar a ser habitada” (LÉON AFRICAIN, [1530] 1897, Vol. II, p. 9-13). Os resultados da intervenção portuguesa foram devastadores para a cidade, que foi arrasada e assim permaneceu por mais de três séculos. A gravura de Gravura de Anafé 1572 da obra Civitates Orbis Terrarum de Braun e Hogenberg é elucidativa da sua situação catastrófica no século XVI. Mostra uma cidade destruída, com as suas muralhas parcialmente derrubadas, os minaretes com os coroamentos arrasados, a área intramuros com as poucas casas existentes em situação de ruína. 

A Expedição dos Aduares foi uma iniciativa de D. João II que organizou uma força de “trinta navios, e taforeas, em que foram cento e cinquenta de cavalo (…) e com eles mil homens de pé entre espingardeiros, besteiros, e lanceiros, de que deu por Capitão Mor D. Diogo Fernandes de Almeida (…) e com ele ia D. João de Ataíde”. O cronista Rui de Pina conta que o objectivo inicial da expedição, “se desacertou”, e então os portugueses atacaram diversas aldeias ou aduares nos arredores de Anafé, onde “morreram novecentos inimigos (…) e cativaram deles entre homens e mulheres quatrocentos que a este Reino foram trazidos com outro muito despojo e muitos cavalos” (PINA, [15–] 1792, p.76-77). 

O ataque a Targa foi confiado a D. Fernando de Meneses que partiu com 50 velas do Algarve “providas de muita, e boa gente, que levavam muitos cavalos”, fazendo escala em Gibraltar, onde se juntaram alguns navios castelhanos e de Ceuta. Contas feitas, seriam uns 2.000 homens, entre os quais 130 cavaleiros. A vila foi tomada facilmente porque os mouros fugiram para a serra. “E, porém, alguns foram mortos, e cativos, e a Vila toda roubada, e queimada, e derrubada pelo chão”. 

Encontraram 25 navios que aprisionaram, bombardas, pólvora e outras armas, e muitas ferramentas. Levaram consigo 30 cristãos que encontraram cativos (PINA, [15–] 1792, p.103-104). De Targa seguiram para Ceuta e daí para Alcácer Ceguer, onde organizaram um ataque ao interior do território, ao lugar de Çamice, (Al-Zamij ?), onde foram mortos 400 mouros, feitos cativos 100 e pilhadas várias aldeias, com muito gado roubado, roupas e outras coisas (PINA, [15–] 1792, p.105-106). A descrição destes dois ataques por Garcia de Resende é em tudo igual à de Rui de Pina. Resende refere que no ataque a Camice morreram 70 portugueses (RESENDE, [1545] 1973, p. 148).

Adaptado do livro “Histórias de Portugal em Marrocos” de Frederico Mendes Paula

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