Diego Armando Maradona tem histórias-mil em vida e uma
delas passou-se em Acerra, bairro paupérrimo perto de Nápoles, onde
um dia jogou num campo enlameado, mais parecido com um batatal, com
a camisola do clube mas desobedecendo-lhe.
O argentino aceitou participar num jogo de solidariedade contra a equipa
local para financiar a cirurgia a uma criança. Maradona aqueceu no parque
de estacionamento, marcou dois golos, ignorou o presidente do Nápoles e
pagaria, do próprio bolso, quase a totalidade da operação
Pietro Puzone é um italiano incógnito, futebolizou levemente a sua história e calhou estar no Nápoles em 1984; olhando cruamente para o seu percurso é essa a coincidência que dá uma breve saliência à pegada que deixou no futebol. Pietro presenciou grandiosidade a desenrolar-se à sua frente quando o mais humano e errante dos jogadores chegou a Itália, tão falível a viver fora do campo como perfeito era lá dentro com uma bola. A vida é feita de equilíbrios e o de Diego Armando Maradona sempre baloiçou numa corda bamba.
Pietro foi à bola com ele e o argentino com o italiano, unidos pela bola que respondia a um deles como a mais ninguém, mas que não fazia Maradona esquecer de onde viera. Relatos contam que é eufemístico descrever Villa Fiorito como lugar pobre, mísero e desfavorecido; há até uma história contada por Diego de um dia, a perseguir uma bola, ter caído dentro de uma vala de esgoto e ficado "com merda até ao pescoço", às tantas resgatado por um tio enquanto se enterrava mais cada vez que tentava alcançar o bem que tiraria daquele contexto de vida.
Da história em Nápoles os relatos divergem e são escassos, mas terá havido dia em que Pietro Puzone, confiante no bom trato que tinham, contou a Maradona sobre a aflição de uma criança necessitada de uma cirurgia urgente, nascida em família paupérrima e sem meios para a providenciar. Terá chegado o momento em que Pietro explicou a Diego o sítio onde essa criança estava.
Acerra fica a uns 20 quilómetros de Nápoles, uma espécie de parente pobre e indesejado, chegou a ser descrito como uma favela gigante com 50 mil almas a fazerem pela vida durante os anos 80, isto antes de nos 90 e 2000 uma crise de lixo ter agravado a precariedade de quem lá vivia. Acerra não rima com aterro mas era isso que terá chegado a parecer devido às descargas sem critério que a Camorra distribuía pelas ruas. É este sítio que terá feito Maradona recordar-se de onde veio.
E quanto Puzone lhe falou da criança, do seu estado e da ideia de recorrer ao futebol para a ajudar, o argentino com apenas meses de estadia em Itália disse que sim, por muito que Corrado Ferlaino, o então presidente do Nápoles, insistisse no não e o tentasse proibir de participar num jogo de beneficência contra o clube de Acerra. Contou o jornal "Olé" que tal se devia ao medo de perder o argentino para uma entrada a matar como tantas havia na época para tentarem aniquilar as proezas de Maradona em campo.
Mas ele não quis saber, marcou-se o dia e lá apareceu, vestido à Nápoles numa equipa que não era o Nápoles mas ali estava como se fosse, porque o tinha e tê-lo (mais Puzone) atraiu mais de 10 mil pessoas em redor de um campo castanho, enlameado e quase sem relva. Maradona e todos os outros jogadores aqueceram no parque de estacionamento, carros estacionados ao seu lado, o argentino com ar compenetrado no vídeo que gravou os gestos de um homem gentil como esta história o guarda.
Nas imagens não se veem patadas dos comuns jogadores do Acerrano, os que de mais perto testemunharam a humanidade que levara Maradona a perseguir a bola até àquela lama e a sujar o celeste do equipamento, o menos comum dos futebolistas a vulgarizar-se nas condições e até nessas ser Maradona - está filmado que recebeu a bola, fintou vários adversários com a facilidade só entendida pelo argentino e deixou nesse lugar necessitado uma proeza das que fez, fazia e faria nos campos requintados onde havia câmaras de televisão para espalharem as suas graças.
Maradona desceu à terra lamacenta de Acerra nesse dia, tinha 24 anos e marcou dois golos, abraçou os locais, pousou para fotografias e diz-se que daria do seu bolso 15 milhões de liras italianas dos 20 que eram precisos para pagar a cirurgia da criança.
Quando uma pessoa morre recordam-se histórias sobre ela por já não estar cá para as contar, mais ainda quando tanta gente se lembra do que fez e foi em vida. Diego Armando Maradona morreu há dois dias e suas histórias seguirão durante muito tempo.
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