CASA DO REMECHIDO
O Remechido, glória e morte de um mito.
por José Carlos Vilhena Mesquita*
A questão que mais tem preocupado os estudiosos do guerrilheirismo português ou da mítica história dos nossos rebeldes primitivos, tem sido a hipotética tese dos heróis populares que se não tivessem sido vencidos pelos seus opositores ter-se-iam transformado em indígetes nacionais, com o seu nome gravado a ouro na história pátria.
Não é fácil contrariar essa asserção, embora duvide muito que os chamados heróis populares, de modestas origens sociais e baixo nível de instrução, pudessem alcandorar-se às cadeiras do poder, mesmo que por actos de incontestável heroísmo o país lhes ficasse a dever uma vitória militar, ou até mesmo a independência nacional. Existem alguns míticos heróis populares na nossa história, mas nenhum passou disso… uma lenda, uma lição, um modelo de patriotismo, que se recorda e agita, quando ao poder central interessa aguçar os sentimentos nacionalistas do nosso povo. Foi assim com o antigo regime, quando ao "Estado Novo" convinha divulgar urbi et orbi que Portugal já fora grande no mundo, e qual antiga Grécia também era uma honrosa pátria de heróis.
O fenómeno histórico-lendário do Remechido vem nessa esteira. Um homem do povo que sustenta uma causa, empunha uma bandeira e morre de pé, fiel às suas convicções e ao seu idealismo político.
Para os vencedores não passou de um rebelde miguelista que não aceitando a amnistia política publicada após a Convenção de Évora-Monte, se havia transformado por sua livre vontade num bandoleiro, num assaltante de estradas, sanguinário e facínora, um perigoso guerrilheiro, sustentáculo de uma causa que punha em perigo a segurança dos habitantes do Algarve e a própria integridade nacional, já que o seu exemplo servia os interesses das guerrilhas carlistas espanholas, desejosas de concentrarem poderosas forças militares no Algarve e Andaluzia, para investirem contra o ateísmo liberal que se havia apoderado da Península Ibérica.
Foi contra a perversidade dos interesses políticos e das provocações perpetradas pelo governo, preferencialmente infligidas sobre a Igreja - de que resultou o pauperismo das massas camponesas - que se reanimaram as guerrilhas e se reacendeu a contra-revolução miguelista. Não podendo contar com as chefias militares que no tempo da guerra-civil conferiram ao exército miguelista a necessária organização e disciplina, estas limitaram-se a levantar um grito de revolta contra a rapacidade dos novos senhores da terra, clamando por melhor justiça e maior proteção às classes desprotegidas. Embora irmanadas no espírito político da ressurreição da causa realista, o certo é que as diversas guerrilhas que por todo o país pegaram em armas fizeram-no em nome de D.Miguel e da moralidade das leis. Combateram ao lado de um ideal, mas tiveram como móbil imediato a necessidade de saciarem a fome, que impiedosamente grassava nas aldeias do interior, esquecidas por um governo demasiado centralizado e por um regime de vorazes clientelas políticas. Depois de quase dois anos de silêncio, de aparente letargia e conformismo, eis que ressurgem das cinzas da guerra e das brumas sebastiânicas, as justiceiras guerrilhas camponesas. À testa desses grupos armados, a que uns chamam bandoleiros e outros simplesmente ladrões de estradas, (re)surgem míticos heróis populares como o Remechido. O verão de 1836 ficou assinalado na história contemporânea pelo escaldante reacendimento do movimento guerrilheiro.
Reparar injustiças, vingar assassinatos e saciar a fome nos campos era a motivação mais plausível daqueles que acamaradaram com as guerrilhas. Voltava a agitar-se o altruístico lema de roubar aos ricos para dar aos pobres. Todavia, agora, era simples e objectivamente um acto de rebeldia e, pior do que isso, um atentado à propriedade. Faltava-lhes a justificação política dos tempos de outrora. Sem uma organização política objectivamente credível, sem um governo acreditado internacionalmente e sem um exército armado, dificilmente as guerrilhas poderiam ser entendidas de outro modo que não as de ladrões e bandidos armados. Desprovidos de conceito e sem fundamento político palpável, faltou-lhes coesão e apoio internacional. Os hipotéticos apoios carlistas não passaram de escaramuças fronteiriças. O Remechido era um pequeno David sem qualquer hipótese de vencer o Golias personificado nas tropas regulares do governo.
Após a Convenção de Évora-Monte e apesar da lei da amnistia política, sucediam-se as vinganças pessoais, com acusações infundadas de roubos e atrabiliárias detenções dos defensores do "trono e do altar", epíteto com que se designavam os fiéis seguidores da causa miguelista. A espoliação dos bens da Igreja e a apropriação do património dos vencidos, suscitou enorme contestação e grande alvoroço nas hostes absolutistas, que encaravam as guerrilhas dispersas pelos recônditos das serranias como uma plausível alternativa de resistência política e sobretudo como uma última esperança de justiça e de retorno à antiga ordem social.
A pacificação da «família portuguesa» tornara-se numa miragem. Quem poderia esquecer ou perdoar os abomináveis actos de violência cometidos sobre homens que acreditaram na paz e no indulto da lei ? O assassinato do general Tomás Cabreira, na cadeia de Faro, a 21-11-1834, juntamente com o pároco do Alvor, tornara-se paradigmático. A essa consentida chacina se devem acrescentar as de muitas outras figuras gradas da usurpação, como Sebastião Martins Mestre (governador de V. R. St.º António), Ludovico José da Rosa (governador de Tavira), Sebastião José Teixeira (capitão-mor de Alcoutim), João Evangelista Machado (juiz dos órfãos de Tavira), Theodoro da Silva Antunes (capitão de voluntários de Lagos), Pedro José Taveira (capitão de ordenanças de Faro), etc, etc. O rol torna-se enfadonho se exaustivamente citado. A hora era de vingança e a justiça dos vencedores. Etiquetar alguém de miguelista era uma condenação que fazia dele inimigo público, destituído dos mais elementares direitos cívicos. Era a causa e a consequência de todas as desgraças.
Por conseguinte, a insegurança instalara-se desde cedo por todo o Baixo Alentejo e serra do Algarve, aonde se acoitavam antigos soldados do exército realista conchavados com camponeses, presbíteros e outros deserdados miguelistas. O ambiente era totalmente desfavorável aos miguelistas, que viam com receio a hipótese de regressarem aos seus lares. Ficaram como que encurralados em plena serra, à espera duma acalmia que tardou até ao desespero. Após seis meses as hostilidades recomeçaram no termo de Silves, mais precisamente nas imediações de S. Bartolomeu de Messines, porque o comandante da Guarda Nacional, pretendendo capturar o Remechido, fizera uma sortida contra «os guerrilhas matadores que se refugiarão nas Serras», acabando por ser assassinado. Estava criado o casus belli com que as autoridades instituídas pretextaram a necessidade de impiedoso extermínio dos malvados ladrões que empestavam a serra. E se os actos de vingança até aí partiam exclusivamente dos vencedores contra os vencidos, passaram, a partir de então, a ter uma reciprocidade mais equilibrada, embora com a agravante de se dirimirem, novamente, no campo militar.
Depressa se formaram bandos de salteadores em nome do "injustiçado Rei D. Miguel", que amedrontavam as populações do interior, forçando-as a abandonar os seus lares e a procurar refúgio nas cidades e vilas do litoral. Para combater o banditismo que assolava a serra constituíram-se colunas móveis que embrenhando-se pelas escarpas dos montes deram destemida caça aos salteadores, capturando mais de cinquenta desertores. Todavia, entre os Batalhões Móveis, os Corpos de Voluntários e a Guarda Nacional não se respirava um ambiente de ordem e fraternidade, mas antes uma permanente rivalidade com frequentes desentendimentos e até pequenos desacatos. Constava que no seio dos dois primeiros existiam muitos "legitimistas" camuflados, por vezes até antigos guerrilhas. Enquanto que nas «Guardas Nacionais - dizia Oliveira Martins - só se admitiam os fiéis a D. Maria, inimigos sabidos de D. Miguel». Por isso as populações sentiam-se mais protegidas quando a seu lado aquartelava a Guarda Nacional.
Apesar da amnistia e dos esforços do governo para pacificar o país, o certo é que os sicários do novo regime instigavam a plebe contra os antigos soldados de D. Miguel e seus adeptos políticos. Entre os homens a abater figuravam os nomes do Remechido, no Algarve, e do Padre Marçal José Espada, no Alentejo. Se antes eram adversários políticos, passaram, agora, a foras-da-lei, salteadores, bandoleiros, bandidos armados, etc. Porém, houve um momento em que José Joaquim de Sousa Reis, vulgo Remechido, pensou apresentar-se às autoridades ao abrigo da amnistia. Para isso mandou o seu filho, Manuel da Graça Reis, a S.Bartolomeu de Messines averiguar se podia regressar sem receio nem ofensa dos seus antigos inimigos. Contrariamente ao exarado na competente lei, foi detido e enviado ao presídio de Silves, de onde, aliás, viria a evadir-se pouco depois. A essas intenções e a este triste episódio referiu-se o próprio Remechido no Conselho de Guerra que o haveria de condenar à morte, em termos que não resistimos à tentação de extractar:
(...) eu obedeci, e principiei a crêr obedecer ao actual Governo da Senhora D.Maria II; porque recebendo a declaração da cessação das hostilidades eu dissolvi a força que comandava, e querendo eu obedecer nem de facto, nem de direito me deixaram obedecer, de direito porque consistia em assignar um Auto que não assignei, de facto porque logo que a força se dissolveu me perseguiram; (...) e para prova de que eu quiz obedecer, é que no dia 30 de Maio de 1834, fiz marchar meu filho, dizendo-lhe tu és uma criança, ninguem te poderá criminar de crime algum, nem de morte, nem de roubos, se tu fôres bem tratado, eu então tambem vou; (...) porém não aconteceu assim porque a perseguição continuou, até que foi preso, e sería morto, se não fosse o Sr.Tenente Coronel de Nº4 (...) outros guerrilhas se apresentaram e foram mortos, vendo eu isto, não tive outro remedio senão esconder-me (...) não tinha tenção de pegar em armas, e a prova é que 27 mezes me conservei oculto fazendo vida de Lobo.
O Remechido, que se encontrava escondido nas imediações da aldeia, perdeu todas as ilusões e assim como ele todos os que o acompanhavam.
E a sua desilusão agravou-se ainda mais quando, numa altura em que o filho gemia a ferros, lhe aprisionaram também a esposa, Maria Clara, acusando-a de à semelhança do marido ter cometido certas atrocidades contra os cidadãos liberais e de ter divulgado «noticias altamente subversivas contra o Governo Legitimo de S.M. a Rainha». Parece que a mulher do Remechido propalara o boato de estar prestes a chegar uma esquadra da Rússia para auxiliar a causa absolutista a recuperar o trono, animando com isso os serrenhos a reunirem-se ao marido.
Muito provavelmente, terão sido estes dois episódios a causa próxima do restabelecimento da guerrilha do Remechido - embora existissem desde os finais de 1834 vários bandos de antigos soldados realistas na serra algarvia. A ofensa foi inaudita, pois sujeitaram a esposa do rebelde ao aviltante espectáculo público da rapagem do cabelo e do suplício das palmatoadas em pleno adro da igreja de Messines. Diz-se que o povo, ainda não satisfeito com o bárbaro castigo, pilhou e incendiou a casa do célebre guerrilheiro.
A afronta excedeu todos os limites. Contudo, o Remechido não reagiu de pronto, receando o poder de fogo da Guarda Nacional ali estacionada. Esperou melhor justificação para chamar a si os homens que andavam pela serra em pequenas pilhagens sem qualquer significado político que não fosse o de, simplesmente, matarem a fome. E o momento chegou quando D. Miguel publicou a 21-3-1836 uma «Proclamação aos Portugueses» chamando-os a retornar à causa da Pátria e da Santa Religião.
Era o momento tão contidamente esperado. Decorridos mais de dois anos após a «Convenção» o Remechido voltava à luta armada, sob a bandeira realista. Reunindo um grupo de 45 homens atacou, a 19 de Julho de 1836, a vila de Ourique, de cujo presídio libertou onze dos seus sequazes, perante a estupefacção dos pacíficos habitantes, obrigados a ovacionar D. Miguel, sob pena de maior derramamento de sangue. Quatro dias depois atacou a aldeia de S. Bartolomeu de Messines, vingando-se das afrontas infligidas à sua família. Dessa acção de retaliação resultaram onze soldados mortos da Guarda Nacional, cujo quartel foi reduzido a escombros. A partir daqui a guerrilha do Remechido não mais parou de importunar as autoridades e as povoações menos acauteladas, contando por sucessos todas as intervenções que levou a cabo até final desse ano. Os ataques mais notáveis efectuaram-se contra as aldeias de Sabóia, Santa Clara-a-Velha, Salir, Benafim, Santana da Serra, Boliqueime, e S. Martinho das Amoreiras.
Para recompensar o famoso guerrilheiro e dar novo alento à reabilitação da causa absolutista, o exilado D. Miguel nomeava para Governador do Reino do Algarve e Comandante Interino das Operações do Sul, o seu fiel servidor José Joaquim de Sousa Reis, vulgo o Remechido, com a urgente incumbência de reorganizar os antigos regimentos de milícias e de proceder ao recrutamento de voluntários.
A situação tornara-se de extrema insegurança, sobretudo nas povoações do interior, que viam as suas Guardas Nacionais praticamente inermes e sem instrução militar, provocando a debandada para a cidade dos moradores mais abonados. O caso da vila de Sabóia era paradigmático. Consideravam que sem medidas enérgicas e de excepção o Remechido seria invencível, não só porque rapidamente transformava os humildes camponeses em perigosos guerrilheiros, como ainda de «Bibilia na mão lhes anda fasendo acreditar constar della que D.Miguel hade tornar a subir ao Throno, e que elle Remexido he guardado pelos Anjos, que o fazem invesivel quando passa pelos Liberais».
Por outro lado, em Lisboa o sossego e a estabilidade política também nunca foram de molde a permitir que o governo pudesse interessar-se pela situação que se vivia nas províncias alentejana e algarvia. Daí as guerrilhas conseguirem manter-se com relativo desafogo, trazendo em sobressalto os habitantes do interior serrenho. No fundo, o único receio do governo era o de que os rebeldes Carlistas se aproximassem da fronteira e penetrassem no nosso território, fazendo a junção ibérica das forças contra-revolucionárias. Por isso, o tenente-coronel José Pedro Celestino Soares (que a 16 de Setembro substituíra Bernardo Zagalo no comando da 8ª Divisão Militar) optou por estabelecer uma espécie de cintura militar na junção da serra alentejana, entre Messines, Monchique e Loulé, com vista a impedir um ataque concertado e em força contra Faro.
Todavia, as forças Carlistas do general Miguel Gomez, que haviam ameaçado a Andaluzia, retiraram-se em Outubro de 1836, permitindo a transferência de efectivos da fronteira alentejana para os quartéis de São Bartolomeu de Messines e de Odemira, reforçando as defesas da zona leste algarvia, até então a mais afectada pelos guerrilhas. Um dos concelhos mais sacrificados foi o de Silves, cuja edilidade vendo a forma fácil e desimpedida como os rebeldes se movimentavam, solicitou à Rainha que se tomassem enérgicas e radicais medidas para exterminar aquela «perigosa cabilda».
Por um lado, sugere ao Soberano Congresso que «declare a serra em estado de sítio», suspendendo todas as garantias e transferindo os habitantes fiéis para a cidade. Por outro, alvitra soluções radicais, nomeadamente «queimar parte da serra, estabelecer nela colunas volantes, guarnecer os povos que habitam as faldas, recolher os habitantes a povoações para que voluntários ou constrangidos não forneçam alimentos aos guerrilheiros, retirar os gados, e formar uma guerrilha constitucional para perseguição daquela».
Nem todas estas propostas eram exequíveis, nomeadamente a incineração da serra, cujos matos, apesar de acoitarem os rebeldes, provocariam um desastre ecológico, para não falar já na perda dos montados que arrastaria para a miséria muitos proprietários. No entanto, as populações dos concelhos que se estendiam do litoral à serra estavam decididas a fazer justiça por mãos próprias se acaso o governo não tomasse medidas. Os habitantes da vila de Portimão diziam mesmo que não se podia transitar com os gados sem escolta nem visitar as propriedades dos subúrbios, sob pena de serem roubados e assassinados. E como estavam fartos da ineficiência da tropa e de obedecer cegamente às abúlicas autoridades, exigiam do Parlamento rápidas medidas de combate àquele flagelo, para que não tivessem de tomar em mãos a justiça que não lhes competia.
Respondendo às prementes queixas dos povos e às exigências do Governador da 8ª Divisão Militar, sedeada em Faro, a Rainha mandou um Batalhão para o Algarve, com a exclusiva missão de perseguir e destroçar as forças do Remechido. Referia-se ao Batalhão de Infantaria 4 que se revelaria, com efeito, decisivo no combate às guerrilhas. Porém, não surtiu efeitos mais devastadores e imediatos, porque o Remechido teve prévio conhecimento da sua chegada, através da mala do correio que teve o ensejo de interceptar.
Receando o confronto aberto com as experimentadas tropas do governo, mais numerosas e melhor armadas, o Remechido optou pela estratégia da camuflagem, mandando dispersar os seus homens pelas terras e lugarejos de onde provinham, vestindo a pele de camponeses, trabalhadores rurais ou de pobres agricultores. Enquanto não recebessem ordens do seu chefe deveriam manter-se ordeiramente nos seus casais da serra, substituindo as armas pelas alfaias agrícolas. No entanto, a pressão exercida sobre os serrenhos deu como fruto a delação dos principais esconderijos e locais de reunião das guerrilhas que, apesar de escaparem sucessivamente ao apertado cerco das tropas, acabariam por sofrer significativas baixas. Essas acções de combate só não foram mais numerosas nem mais devastadoras porque a «Conspiração das Marnotas», ocorrida em Loures, e a «Revolta dos Marechais», no Verão de 1837, concentraram as forças governamentais junto da capital em lutas partidárias que degeneraram em sangrentos confrontos militares. No quadro da instabilidade política e da consequente transferência das forças militares do Algarve para o eixo dos conflitos, assistiu-se a um novo recrudescimento das guerrilhas miguelistas, não só nesta região como muito especialmente na Beira e no Minho. Praticamente até ao final de 1837 não tiveram as autoridades, nem as tropas governamentais, descanso no combate às insurreições populares que, aqui e ali, davam vivas a D. Miguel. Formando pequenos grupos armados, espalhavam a desordem nos campos e nas pacatas aldeias do interior. «A multiplicação das sublevações miguelistas permitiu que o bando do Remechido continuasse a operar com relativa tranquilidade, assaltando dez povoações de Novembro a Dezembro de 1837. Os ataques efectuados nesta fase revelam uma certa deslocação do eixo de operações para as proximidades do litoral ocidental do Algarve e Alentejo, onde acometeram localidades pouco guarnecidas como Aljezur, Alvalade, Porto Covo e Odeceixe.» Curiosamente, e depois de um arrojado ataque à vila de Grândola, o fulcro da guerrilha mudou de orientação, passando a actuar no nordeste algarvio, nas proximidades do Guadiana. Nesse final de 1837 atacaram as aldeias de Martim Longo e Santa Catarina, deixando a nítida sensação de apenas pretenderem aterrorizar as populações e de estenderem o seu domínio a toda a serra algarvia, cujos habitantes se viam compelidos a abastecê-los e até a pagar-lhes uma espécie de tributo de submissão.
Às constantes queixas das populações acresciam ainda os protestos dos deputados algarvios, como Júdice Samora que não entendia porque é que as tropas do governo, bem equipadas e armadas, se confinavam aos quartéis de Beja, Faro e Lagos, cujas populações não corriam quaisquer perigos, em vez de ocuparem posições estratégicas na serra para aniquilarem as guerrilhas. E se no tempo da usurpação causara espanto o facto de 7.500 bravos soldados terem batido um exército de 80 mil homens, como é que se justificava agora que «2.800 homens colocados em dous Distritos Administrativos não possam aniquilar uma guerrilha que só tem cento e tantos». Para lhe dar resposta e sossegar os povos da serra algarvia (cujas contribuições fiscais não satisfaziam por não poderem ali amanhar as suas terras nem pastar seus gados) o governo nomeou, em 15-12-1837, para o comando da 8ª Divisão Militar o coronel José Joaquim Gomes Fontoura, dando-lhe plenos poderes para o extermínio das forças miguelistas que infestavam a serra algarvia.
Um dos discricionários poderes de que vinha investido era precisamente o que lhe conferia a Carta de Lei de 19-12-1834, que lhe permitia condenar a degredo para África ou até a fuzilar, após o competente julgamento, todo e qualquer individuo suspeito que fosse apanhado com armas na mão. Manda a verdade, porém, acrescentar que o visconde de Sá da Bandeira, conhecedor experimentado da realidade algarvia, já tinha, em 16 de Maio, ordenado a todas as Divisões Militares que pusessem em prática as medidas de excepção contidas na supra citada lei. Não obstante, o Parlamento após discutir o fenómeno das guerrilhas, de se aperceber da sua extensão nacional e da ameaça que representava para a segurança do Estado continuar a alhear-se duma solução definitiva, revogou essa lei em favor de uma outra muito mais simples, mas também mais drástica, que ficaria conhecida pela lei de 4 de Março, que as autoridades publicaram em folha volante, espalhando-a por todas as aldeias e montes da serra algarvia.
Em todo o caso, a Câmara de Portimão achava que a publicação desta lei só por si não bastava, havia que tomar medidas mais concretas e acções mais eficientes para livrar o Algarve daquela cáfila de ladrões e assassinos que empestavam a serra, flagelando as suas gentes e impedindo o desenvolvimento da agricultura, da pastorícia e até do trato comercial, mercê da insegurança que grassava nas estradas.
Não obstante os poderes de que dispunha e a superioridade numérica das forças ao seu serviço, urgia resolver um problema crucial: o pagamento do pré em atraso a todos soldados. Sem cumprir essa obrigação não havia a mínima possibilidade de motivar a tropa a bater-se corajosamente contra os rebeldes. A este problema acrescia um outro, não menos crítico do que o anterior, que era o do fardamento da tropa, cuja falta de renovação deixara os soldados numa posição quase andrajosa. Para além disso, o cor. Fontoura propunha-se agir rapidamente na fortificação de pontos estratégicos na serra, na organização de depósitos de víveres e no estabelecimento de um hospital de campanha em Loulé, para assistir aos feridos que viessem transferidos da serra. Mas, para que tudo fosse solucionado com a maior urgência faltavam os meios financeiros. E neste caso o cor. Fontoura não teve pejo em lançar mão dos seus poderes despóticos. Exigiu dos algarvios a concessão de um empréstimo forçado no valor de vinte e cinco contos, que obteve mediante a promessa de limpar a serra da perigosa cabilda do Remechido, dos Baioas e do Marçal Espada. O Administrador Geral do Distrito de Faro, resumiu o evoluir das exigências legais e das faculdades administrativas ao seu dispor tendentes ao financiamento das tropas, nos seguintes termos:
Em 20 [de Janeiro de 1838] ordenou a mesma Autoridade [com.te Fontoura] aos Contadores de Fazenda dos Distritos de Faro, Beja e Evora que posessem á disposição do Pagador da 8ª Divisão Militar todos os dinheiros existentes nos Cofres das suas respectivas Contadorias, afim de se pagar os prets e Soldos ás Tropas da mesma Divisão que se achavão em grande atrazo; tudo pela Autorização consignada na Portaria do Ministério da Guerra de 13 de Janeiro ultimo.
Em 28 ordenou o mesmo Chefe Superior, que se convocasse hum Conselho das Autoridades e Capitalistas desta Cidade e Distrito para deliberarem sobre o modo de realizar por meio de hum empréstimo, a quantia de 25.000$000 rs. para o pagamento das tropas, cujo resultado tive a honra de comunicar a V.Excª em o meu Oficio nº 53 de 3 de Fevereiro corrente. Eis aqui qual o uso dos poderes extraordinarios conferidos pela citada Lei aos Delegados do Governo de S.M. neste Distrito Administrativo em todo o período acima marcado.
Como o inimigo gozava do apoio dos "serrenhos", o cor. Fontoura mandou publicar em 2-5-1838 um Edital em que ordenava a evacuação de todos os montes da serra algarvia e alentejana, obrigando os seus habitantes a recolherem-se às cidades, vilas e aldeias mais próximas, trazendo consigo os gados e mantimentos necessários à sua sobrevivência, deixando cerradas as suas residências para que delas não se aproveitassem os rebeldes. Para que se protegessem os fiéis à Rainha e se os destrinçassem dos rebeldes miguelistas, mandou emitir um «Passaporte de Seguridade» a todos os maiores de quinze anos, por forma a que sendo apanhados fora das povoações não fossem passados pelas armas. Era o tempo dos atrabiliários interrogatórios de «quem vive e quem manda».
A estratégia, discricionária, violenta e abusiva, acabaria por dar os seus almejados frutos, mercê de uma disciplina férrea e de uma persistência inquebrantável. Nada foi deixado ao acaso. As ordens eram terminantes: a guerrilha não poderia dispor do mais pequeno apoio material ou logístico. A serra onde antes dominavam os sublevados, estava agora sob forte vigilância e controlo de doze divisões militares, fortemente armadas e dispostas a aniquilar toda e qualquer oposição. Tudo foi vasculhado, mandando-se recolher à cidade de Silves todas as alfaias que pudessem ser usadas como armas, nomeadamente as foices, roçadoiras, machados e espetos. Por outro lado, os ferreiros e sobretudo os ferradores foram obrigados a recolher-se às guarnições militares, para que não prestassem qualquer apoio à cavalaria rebelde.
Perante isto o Remechido decidiu-se, novamente, pela dispersão das suas forças, camuflando-as no seio das populações a que pertenciam, até que as perseguições cessassem. Por isso diminuíram consideravelmente os ataques das guerrilhas, que apenas se fizeram sentir em Vila Nova de Mil Fontes, Moncarapacho e Santiago do Escoural. Os alvos preferenciais dos guerrilhas eram geralmente os clérigos comprometidos com o novo regime, as quintas de lavradores abastados e os estancos do tabaco, cuja fluidez em metal sonante tornava-os bastante cobiçados. Em todo o caso, os rendimentos das pilhagens e os apoios financeiros, obtidos interna ou externamente, eram cada vez mais escassos. Disso resultavam deserções, falta de abastecimentos e condições de manutenção das forças militarizadas, evidenciando-se, assim, um irreversível processo de enfraquecimento das hostes rebeldes.
O pânico instalado junto das populações pela divulgação dos Editais de repressão, emanados pelas autoridades governativas, quebrara os elos de cooperação com os rebeldes, a ponto destes se debaterem com falta de víveres e escassez de meios financeiros para pagamento do pré e aquisição de cartuchame. E só não acabou ali o "império da guerrilha" porque, mais uma vez, as contingências políticas vividas na capital alteraram a marcha dos acontecimentos no Algarve. As lutas pelo poder no seio do partido setembrista, entre os oficiais radicais da Guarda Nacional e os moderados chefiados por Sá da Bandeira, originaram o sangrento «massacre do Rossio» e, consequentemente, a dissolução da Guarda. Esta imprevisível decisão do governo provocaria nas guarnições do Sul uma desmobilização dos efectivos militares avaliada em 1300 homens.
As guerrilhas poderiam ter suspirado de alívio se as contingências do destino, desta vez, não se tivessem virado para o lado do mais forte. Com efeito, no dia 28 de Julho, delataram a presença do Remechido à frente de uma força de 248 homens no sítio da Portela da Corte das Velhas. O Coronel Fontoura ordenou logo que, em marchas forçadas, a 1ª Coluna, comandada pelo Major José Ignacio de Vasconcelos, partisse de Almodôvar em direcção às Cortes Velhas, onde deveria aguardar pela 5.ª Coluna, chefiada pelo Cap. Manuel Maria Cabral, que partira de S. Martinho das Amoreiras; a estas iriam ainda juntar-se as 3ª e 6ª Colunas, conduzidas, respectivamente, pelo Cap. Joaquim Mendes Neutel e Major João Nunes Cardoso, ambas vindas de São Bartolomeu de Messines.
A numerosa força, deste modo reunida, tornava-se imbatível, perante as escassas duas centenas de homens de que dispunham os rebeldes. Ciosos da oportunidade de capturar o mais cobiçado de todos os troféus, marcharam rapidamente até ao sítio do Monte do Grou, nas proximidades de S. Marcos da Serra, onde cercaram o inimigo.
Sentindo-se acossados desfecharam forte descarga de fuzilaria sobre as tropas constitucionais, que iam sendo colhidas de surpresa. Estabeleceu-se então cerrado tiroteio, mas a diferença de efectivos deixava em desvantagem as guerrilhas. Face ao desequilibrado poder de fogo e às dificuldades de furar o cerco, os rebeldes viram cair 56 dos seus homens, após o que iniciaram uma desordenada retirada. Para trás ficou o Remechido a descoberto e à vista da tropa que logo o identificou. Após tenaz perseguição do capitão Cabral foi o comandante da guerrilha desarmado e aprisionado. Levaram-no para Faro, onde foi julgado em Conselho de Guerra, no dia 1 de Agosto, no salão nobre da Misericórdia, que o condenou à pena capital. Para que não restassem dúvidas de que se tratava da execução do celerado guerrilheiro, ordenou o Administrador Geral «que de cada freguezia da serra viessem seis homens com cada Regedor de Paróquia assistir a execução do malvado afim de que por este modo se tome atestamento inegável».
No dia seguinte, pelas dezoito horas no Campo da Trindade (actual Jardim João de Deus, vulgo Jardim da Alameda) foi fuzilado, e de imediato sepultado no cemitério da Misericórdia.
A sua presença de espírito perante o tribunal que o condenou; a forma serena, íntegra e respeitosa como recebeu os últimos sacramentos; as últimas palavras que por escrito dirigiu ao filho no sentido de procurar, no indulto que a lei lhe oferecia, a paz que ele próprio nunca desfrutara, são pormenores que revelam a superior personalidade de um homem honrado, fiel às suas convicções e juramentos. Uma análise minuciosa das declarações proferidas durante o julgamento permitem perceber que o Remechido não era o ferino bandoleiro que o governo propagandeava aos quatro ventos. Bem pelo contrário, era um chefe militar de arreigados princípios políticos e razoável instrução, profundamente crente na superioridade da fé católica, pela qual também se bateu de armas na mão. Carecem de qualquer fundamento as descrições físicas que faziam dele um ímpio assassino, façanhudo e de porte selvagem. Era em tudo um homem normal, com a singular diferença de se mostrar inabalável nas convicções políticas e religiosas, não admitindo, nem mesmo perante os seus algozes, a mais pequena tibieza na sua coerência.
Qualquer que seja o prisma com que observemos as posições políticas e as atitudes militares sustentadas por este homem, não restam dúvidas que sempre se manteve fiel e igual a si próprio e ao trono que jurou fidelidade.
Apesar de todos os crimes de que foi acusado, soube sempre manter, tanto no passado como no presente, a aura de um mítico lutador que pelos seus débeis meios tentou chegar à altura dos seus adversários. Seja como for, de uma coisa temos a certeza é que o Remechido foi, após a «Convenção», o único rosto credível da contra-revolução e, certamente, o seu mais valoroso chefe político no território português. Por isso é que com o seu fuzilamento morreu também a causa miguelista. As esporádicas escaramuças dos Baioas ou até do seu próprio filho já quase não tinham sentido. Os serrenhos depressa perceberam que sem o seu chefe carismático não havia possibilidades de manterem de pé a bandeira do absolutismo. Tudo se desmoronara naquele pelotão de fuzilamento.
Os que persistiram em honrar a sua memória não lhe sobreviveram por muito tempo. O filho, Manuel da Graça Reis, herdou a difícil tarefa de manter a guerrilha unida e em redobrada actividade, o que, apesar dos ataques que realizou nas freguesias do Cercal, Santa Luzia, Giões, Martim Longo e Azinhal, não foram suficiente para granjear das populações serrenhas a aura de prestígio e respeito ostentada pelo pai. Um ano depois da morte do Remechido, as antigas guerrilhas da serra transformaram-se em pequenos grupos de ladrões, salteadores de estradas e bandoleiros esfaimados, sem bandeiras, sem ideais, apenas com a vida a prazo. O coronel José Joaquim Gomes Fontoura, que impôs uma estratégia de implacável rigor na perseguição aos rebeldes, não deixou, porém, de ser apaziguador e magnânimo para com todos aqueles que depusessem as armas, amnistiando-os dos crimes que lhes eram imputados e mandando-os de regresso aos seus lares. Com esta política capitolacionista enfraqueceu a coesão e ferocidade do inimigo, cujos lideres foram sucessivamente abatidos pelas tropas governamentais em ataques ou emboscadas. Além disso, o desequilíbrio das forças era abissal, pois enquanto as guerrilhas dispunham de apenas 400 homens, as forças liberais compunham-se de 2541 soldados de infantaria, 292 cavaleiros e 1471 homens alistados nos Corpos Nacionais.
Perante esta situação militar o desfecho dos acontecimentos só poderia ser desfavorável aos rebeldes. Manuel da Graça Reis que havia sido ferido no ataque ao Azinhal, foi visto em Vaqueiros, nos montes de Martim Longo e de Almodôvar, a ser transportado pelos seus homens encima de uns sacos de palha, arrastando-se ferido de morte. Essa via sacra terminaria a 10-11-1839, nas imediações da fatídica freguesia do Azinhal, onde, quase moribundo, seria detido e transferido para o Hospital de Faro, acabando por falecer um mês depois. O Padre Marçal José Espada, que se arvorava de ter sido o secretário particular do Remechido e um dos seus mais violentos sicários, foi abatido a tiro, em Dezembro de 1839, na serra do Malhão. E em 1840, junto a Mértola, foram "caçados" os últimos cabecilhas da guerrilhas miguelistas: Alferes Ventura, Silvestre Joaquim Cabrita e Joaquim Nogueira Camacho. Pode-se dizer que a partir desse ano deixou de existir uma oposição armada ao novo regime, sendo considerados literalmente exterminados os bandos de rebeldes que infestavam a serra algarvia.
Não pode a memória dos homens ficar indiferente ao fenómeno da luta de guerrilhas no Algarve, e muito menos poderá deixar de realçar, a carismática figura do Remechido, que foi, sem sombra de dúvidas, a pedra angular da contra-revolução miguelista nas províncias do Sul. E em toda a sua envolvência, popular, feroz, generosa ou sebastiânica, sobressalta a personalidade de um homem de fortes convicções políticas, que se tornou no único mito que ainda hoje povoa o legendário das gentes algarvias.
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