AVISO

OS COMENTÁRIOS, E AS PUBLICAÇÕES DE OUTROS
NÃO REFLETEM NECESSARIAMENTE A OPINIÃO DO ADMINISTRADOR DO "COMO UM CLARIM DO CÉU"

Este blogue está aberto à participação de todos.


Não haverá censura aos textos mas carecerá
obviamente, da minha aprovação que depende
da actualidade do artigo, do tema abordado, da minha disponibilidade, e desde que não
contrarie a matriz do blogue.

Os comentários são inseridos automaticamente
com a excepção dos que o sistema considere como
SPAM, sem moderação e sem censura.

Serão excluídos os comentários que façam
a apologia do racismo, xenofobia, homofobia
ou do fascismo/nazismo.

sábado, 20 de novembro de 2021

Bosque dos Hortinhas, um oásis de vida na serra ardida


 barlavento.sapo.pt 


O Bosque dos Hortinhas começou por ser um projeto ambiental na fronteira serrana entre Tavira e Vila Real de Santo António, com a recuperação de um pinhal e criação de um bosque autóctone algarvio, de sobreiros, azinheiras, carvalhos e choupos.

O incêndio de agosto interrompeu um trabalho de cinco anos. Mentor Rui Horta não desiste e lança agora campanha: não plante uma árvore, semeie uma bolota, segundo explica em entrevista ao barlavento.

barlavento: Fale-nos um pouco sobre o projeto do Bosque dos Hortinhas.
Rui Horta: São oito hectares de terreno da mais típica serra algarvia entre dois cerros, onde não falta o leito de uma pequena ribeira e um barranco. Há cerca de cinco anos apercebi-me que estava à venda. Negociei com o dono, um senhor da serra cujos filhos não estavam interessados em pegar no terreno e comprei-o. Foi um antigo projeto apoiado por fundos comunitários, com pinheiros mansos numa densidade muito forte. Na altura, pensei em tornar o pinhal num bosque algarvio, português. Retirámos alguns arbustos e muitas estevas altas e canas, desbastámos alguns pinheiros e fizemos a poda a muitos outros. Depois, começámos a plantar diversos tipos de carvalhos, sobreiros, azinheiras, carvalho português, carvalho de Cerquinho, choupos, ciprestes, toda a flora com espécies autóctones. Abrimos um furo e criámos pequenas charcas, pontos de água que não existiam, porque a serra algarvia é seca e muito quente no verão. A verdade é que têm atraído muitas espécies de mamíferos, anfíbios e de aves.

Não é, então, um projeto com fins lucrativos?
Não é um projeto económico. É um projeto sobretudo ambiental que quero deixar à família e a todas as pessoas que o quiserem aproveitar. É um testemunho de como pode e deve ser a natureza do Algarve. Infelizmente, a pandemia impediu algum progresso, pois nos últimos três anos realizaram-se muitas visitas de estudo, e tínhamos mais marcadas, de várias escolas da região.

Ao longo de novembro e dezembro decorre uma iniciativa aberta a quem quiser participar, certo?
Sim, estamos a lançar a campanha não plante uma árvore, semeie uma bolota. Contamos reunir cerca de 6000 bolotas e já temos voluntários. Quem quiser, pode participar. É um trabalho muito fácil porque não requer a logística de cavar com maquinaria. No entanto, temos de as semear num contexto de chuva porque senão a bolota terá dificuldade em germinar.

Plantar pinheiros nesta região do Algarve não foi, seguramente, boa ideia…
Não foi boa ideia em todos os sentidos, embora melhor que nada. O pinheiro é uma árvore resistente, forte, produtora de solo. A par da esteva, outra lutadora, é a primeira árvore que pode, de facto, lidar com a aridez da serra algarvia. Depois de os pinheiros partirem o solo, já se consegue produzir outras espécies na sua sombra. Aqui tínhamos também o problema da processionária, a lagarta do pinheiro que causa irritações na pele e que pode ser venenosa nalgumas circunstâncias. Para lutar contra isso, introduzimos meia centena de caixotes-ninho, cuja maioria tem sido ocupada por aves insetívoras, sobretudo chapins, predadores dessa praga. E há ainda outro aspeto. Uma coisa é os pinheiros estarem vivos, outra é terem viabilidade para o futuro. Muitos, com a extensão queimada que sofreram no último incêndio, vão atrofiar e serão árvores deficientes durante muitos anos.

Que recorda do incêndio de 16 e 17 de agosto?
Foi uma catástrofe, um desastre. Estive aqui na véspera de tudo acontecer, de manhã cedo, e pensei que o incêndio era em Espanha. Mas não era. Fui-me embora ao meio-dia, voltei ao fim da tarde e parecia que as chamas tinham passado mais para sul, para a parte de baixo da Carrapateira. De repente, surgiu um pequeno foco isolado, mais a norte, que progrediu até à Via do Infante. Ainda tentei alertar os bombeiros, mas o que é certo é que não passou por aqui nenhum, pelo que me apercebi, nas horas em que aqui estive a tentar proteger pequenos redutos. Foi esse fogo que arrasou toda esta zona até à parte baixa de Cacela, até ao Pocinho e atingiu Monte Rei.

Que estragos fez no seu terreno?
Segundo as câmaras de imagem que instalei, só a temperatura queimou muita coisa. Isto não estava estéril porque para termos um ecossistema o mais natural possível é preciso alguma erva, que na altura tinha 20 a 30 centímetros de altura, e alguns arbustos. Estava tudo muito bem limpo, mas ainda assim, alimentou o fogo que, empurrado pelo vento, queimou quilómetros de tubo de rega gota-a-gota, e mais de 2000 pequenas árvores, plantadas e semeadas nos últimos cinco anos, desde jovens sobreiros a azinheiras e medronheiros. Do ponto de vista da plantação nova perdeu-se 70 por cento do que foi feito.

Como se lida com isso?
Com muito desespero, com lágrimas nos olhos, porque conhecia as árvores uma por uma, quase que as podia chamar pelos nomes. Ver tudo a arder e nada podermos fazer é uma sensação de impotência terrível. Nesse dia vim para casa derrotado. Regressei logo na manhã seguinte, muito cedo, e ainda ardia. O cheiro a queimado era insuportável. Comecei a fazer a reinstalação elétrica para poder bombear água do furo e regar as árvores sobreviventes e as que tinham maiores possibilidades de sobreviver.

Critica a ação dos meios no terreno?
Não tenho dados suficientes para dizer se quem decidiu, o fez bem ou mal, ou se com os meios disponíveis era possível fazer mais ou melhor. Agora uma coisa tenho de dizer: a estrada para cá chegar é de alcatrão, muito transitável e em muito bom estado. Não passou aqui nenhum carro de bombeiros. Próximo de onde começou o foco de incêndio que referi, vive um casal de holandeses. O senhor sofre de Alzheimer, e estavam fechados no interior da casa com tudo a arder à sua volta. Tentei lá chegar, mas não consegui. Alguém podia ter falecido. Não sei qual o critério de combate às chamas, mas aqui próximo há um pequeno bosque, mesmo junto à estrada, com meio hectare de azinheiras. A mais nova teria mais de 50 anos. Uma mangueira de jardim teria impedido que ardesse. Bastava isso. Mas não se fez a sua defesa. Fiquei com muita pena. Podia-se ter feito mais? Talvez. Na minha opinião, vi demasiados meios, camiões e homens em espaços de alcatrão sem fazer nada, apenas à espera de ordens, durante horas. Isso vi e é indiscutível. E enquanto contribuinte sinto-me defraudado. Acho que vivemos num país que não tem meios para lutar contra os fogos.

Quanto já investiu no projeto?
Entre a aquisição do terreno, com todos os trabalhos, e abertura de caminhos, cerca de 100 mil euros. Agora estou a refazer todo o sistema de rega, desta vez enterrado, um investimento considerável também. Este incêndio foi uma lição, apesar de muito triste, mas também abriu uma oportunidade de reflexão e de ordenamento do que já existe e a continuação deste projeto. Recordo que no início cheguei a carregar água em garrafões até ao pico onde não havia rega, no calor do verão, para que as jovens árvores não morressem. No entanto, numa questão de minutos, o fogo destruiu tudo.

Chegou a pensar em desistir?
Seguramente que não. Para o ser humano, cinco anos é muito tempo, mas para a natureza não é nada. Agora estamos de novo numa fase quase embrionária, devido aos estragos do fogo. Mas não é a estaca zero. Repare que o sobreiro, por exemplo, se não for muito afetado, tem a capacidade de rebentar e de criar rebentos e árvores novas. De qualquer forma, a ideia não é pegar numa parcela de terra e apresentar um jardim bonito e natural. A ideia é que alguém possa prosseguir o sentimento que tenho em relação a isto e o possa multiplicar, dentro da minha família ou até mesmo outras pessoas que venham de fora. Tínhamos uma série de árvores plantadas por miúdos, com os seus nomes e as datas assinaladas numa placa. Muitos regressaram para as visitar, algum tempo depois. Muito disso ardeu, mas vamos repor e espero que esses e outros miúdos voltem cá para plantar de novo.

Santuário para a vida selvagem

Bosque dos Hortinhas de Rui Horta é uma zona de não caça, no meio de uma reserva de caça imensa. Assim, «temos muitas espécies aqui dentro: raposas, javalis, diferentes aves de rapina que passam ocasionalmente. Os corvos são aves residentes, criaram numa árvore próxima e alimentam-se aqui com frequência. Além disso, temos também outra vertente. Existem vários pontos de alimentação de aves, onde espalhamos, com regularidade, alimento para ajudar as recuperação das espécies selvagens, embora nunca em excesso».

Um projeto aberto e exemplar

Poderia pensar-se que este projeto ambiental parte de um engenheiro ou gestor agroflorestal. Mas o mentor do Bosque dos Hortinhas é advogado em Tavira e, em entrevista ao barlavento, sublinha que, apesar de se tratar de um terreno privado, a iniciativa está aberta à comunidade. Até porque fala quase sempre no plural. «Digo nós porque este é um trabalho impossível de alguém fazer sozinho. Eu, nitidamente, assumo a liderança, mas todos os outros que aqui vêm e que por cá passam, sobretudo a família, a sua presença per si, é muito estimulante. Posso estar a plantar, os miúdos ajudam, vão buscar água, vão buscar uma bolota. Enquanto dura a emoção do momento, participam e fazem coisas» e até podem lembrar-se da continuidade, mais tarde. Também Rui Horta pensa no futuro. «Tenho a consciência de que muitas das árvores que aqui estou a plantar, sou capaz de já não me sentar à sua sombra. Por isso, quando digo nós, é na perspectiva de conseguir transmitir este gosto e esta paixão a alguém individualmente ou a um coletivo de pessoas».

Como manter o fogo à distância?

«Gostava muito de ter essa solução, porque se a tivesse, partilhava-a com o país e com todos os que são afetados por esta praga dos fogos florestais», diz Rui Horta, advogado, mentor do Bosque dos Hortinhas, um projeto ambiental participativo na serra entre Tavira e Vila Real de Santo António.

«O problema dos incêndios não se resolve apenas com meios humanos e materiais. Os fogos são, na prática, a consequência do abandono do interior, porque quando as pessoas viviam no campo, cuidavam mais ativamente de tudo», considera. O terreno que comprou, há cerca de cinco anos, em boa verdade já tinha sido devastado pelas chamas em 2004. «Ardeu praticamente tudo. Restam apenas algumas árvores adultas que não arderam, mas todos os outros pinheiros à volta já são posteriores a essa data. Quando falo com os meus vizinhos, o sentimento é de baixar os braços pois estão cansados. Porque a cada 10 ou 15 anos acontece um grande incêndio. Não serve de nada termos tudo muito bem ordenado e limpo. Se não existir algum ordenamento em todos os terrenos, o fogo pula de uns para os outros. Também temos de ter a consciência e ser francos de que a natureza e o espaço selvagem não se quer limpo nem estéril. O ecossistema não é apenas árvores altas sem nada por baixo. Tudo o que chamamos de ervas daninhas, na verdade, são ervas de temporada. Fazem parte de um ecossistema que alimenta todo o meio ambiente em que vivemos. Estou convencido de que temos de demonstrar que o fogo não pode ser um negócio, nem um divertimento, nem um motivo de orgulho para quem se vê na televisão» depois do rescaldo.

«É uma questão educacional e da mesma forma que se estimula associações de caçadores para a conservação dos recursos, é preciso estimular os proprietários para que de alguma forma se associem e criem pontos de água e corta-fogos. Tentar apagar frentes de chamas com quilómetros, é uma batalha perdida porque o fogo só para quando não restar nada».

Sem comentários:

Enviar um comentário