Istambul tem muitos pontos turísticos fascinantes, de grandes mesquitas a bazares movimentados, mas, desde tempos imemoriais, uma coisa que sempre captou a imaginação dos viajantes estrangeiros que vão à cidade são seus cães de rua. Os próprios turcos vivem em paz com toda a criação: árvores, pássaros ou cães; respeitam tudo o que Deus fez. Estendem sua humanidade aos animais inferiores, que são negligenciados ou perseguidos entre nós. Em todas as ruas existem, a certas distâncias, vasilhas cheias de água para os cães, escreveu Alphonse de Lamartine, em 1833, como a cidade cuidava de sua população canina. |
- "Os cães dormem nas ruas, por toda a cidade. Eles não se levantam nem quando o próprio Sultão passa", escreveu Mark Twain, em 1867, quando ainda era Samuel Clemens, então um jovem jornalista de 31 anos, em uma grande viagem no navio a vapor "Quaker City".
A historiadora e viajante inglesa Julia Pardoe mencionou que viu pequenas casinhas de palha construídas em intervalos ao longo das ruas, para a acomodação e conforto dos cães que de outra forma seriam sem-teto, que lotavam todas as avenidas da cidade:
- "Lá eles deitavam, agachados confortavelmente, muito gelados para nos receber com o coro de latidos que eles costumam conceder aos viajantes. Além deste abrigo, comida é distribuída todos os dias pelos habitantes aos animais errantes, que não tendo donos específicos, para usar a fraseologia aprovada de gentil pedido de esmola, eram totalmente dependentes da caridade para se manter."
Durante os quatro séculos de domínio otomano, desde a conquista de Constantinopla até a era Tanzimat, os cães de Istambul desfrutaram de um período de coexistência pacífica com os humanos. Então veio um período de modernização, em que os cães passaram a ser associados à pobreza e ao desleixo.
Em um esforço para modernizar a cidade, o sultão Mahmud II ordenou que todos os cães de rua fossem exilados para várias ilhas no mar de Mármara. Isso continuou ininterruptamente até a grande "decaninização" de 1910, quando o prefeito com punho de ferro de Istambul, Suphi Bey, ordenou que o município prendesse todos os cães de rua para que fossem exilados para a árida Ilha de Sivriada, onde certamente morreriam de fome e sede. O povo de Istambul se opôs veementemente a essa carnificina, resgataram tantos cães quanto puderam e os esconderam em suas casas.
O Diretor do Instituto Pasteur de Istambul, Dr. Remlinger, chegou a sugerir a criação de campos de extermínio, afirmando que com sua pele, pelos, ossos, gordura, músculos, substâncias geralmente albuminosas e até intestinos, o valor de um cão de rua oscilava entre 3 e 4 francos. Como existiam de 60.000 a 80.000 cães em Istambul, o valor total ascenderia a quase 300.000 francos.
- "Não é possível abrir licitações para eliminar os cães e instalar matadouros fora da cidade para o beneficiamento da pele, da carne e da gordura para fins econômicos?", questionou Remlinger. - "Essas casas de abate podem incluir salas herméticas conectadas a uma câmara de gás e uma sala de corte para preparar compartimentos de manufatura seletiva para pele, gordura, ossos e outros itens, todos para serem extraídos de carcaças caninas."
A ideia do homem era capturar secretamente os animais à noite e transferi-los para lá em carruagens enjauladas (carrocinhas) semelhantes às que existiam na Europa.
- "Se dez matadouros forem estabelecidos, cada um poderá processar cem cães por dia. Em dois meses podemos realizar a "decaninização" ou higienização dos cães, cujos rendimentos podem ser destinados às obras de caridade da cidade", disse Remlinger.
Mas os funcionários do município preferiram capturar os 80.000 cães e enviá-los para Sivriada, para nunca mais voltarem. A ilha era sólida como uma rocha, sem árvores, vegetação, água ou comida. Relatos locais descrevem como o uivo de cães era ouvido por dias e semanas, mantendo os residentes da cidade acordados. Nem um único cão sobreviveu. Alguns se afogaram enquanto tentavam escapar. Alguns foram mortos por outros famintos. Mas a maioria deles morreu de fome.
- "O processo de eliminação dos cães não correu bem; as pessoas sentadas ao meu lado pela manhã disseram que nenhum turco queria empreender essa tarefa humilhante que traria má sorte ao Crescente Otomano; vagabundos (ciganos) foram recrutados para sua execução", escreveu o romancista francês Pierre Loti.
Esses homens capturaram os cães com grandes correntes de ferro; pegavam suas pobres vítimas pelo pescoço, pernas ou rabos, jogando-as umas em cima das outras nos caíques que os levariam a Sivriada.
- "Gritos, discussões acaloradas foram ouvidos em toda Istambul por dias. Os turcos ficaram irados e resistiram à operação. Pobres cães! As pessoas esconderam o máximo que puderam em suas casas", contou Pierre. Mas após o incidente, o prefeito proclamou com orgulho:
- "Após a declaração da Constituição, enviei todos os cães de Istambul para Sivriada. Porém, mais tarde descobri mais 30.000 cães escondidos na cidade. Eu gradualmente os destruí também."
O massacre dos cães de rua da cidade deixou uma cicatriz na psique dos moradores de Istambul. O povo temia que Deus causasse estragos na cidade por sua crueldade. A maioria dos residentes culpou o massacre dos cães pelos tempos turbulentos após 1910, incluindo a derrota do Império Otomano nas Guerras dos Bálcãs e na Primeira Guerra Mundial.
Quase um século depois, ativistas dos direitos dos animais da organização Animal Party erigiram um monumento de pedra onde é possível ler "Em memória das dezenas de milhares de cães que morreram nesta ilha em 1910".
- "Algumas pessoas entre nós perpetraram essa crueldade que não queríamos, que não gostamos e que nunca aceitamos", disse Bünyamin Salman, representante da referida instituição. Decidimos erguer um monumento para expressar nossa vergonha por essa violência em nossa história, para anunciar que a rejeitamos e para garantir que tal massacre não aconteça nunca mais."
No entanto, ele sabe que infelizmente, hoje, alguns municípios turcos recolhem cães e os soltam em áreas de mata, longe da cidade, onde não vão encontrar comida.
- "Acreditamos que isso não é diferente do massacre de Sivriada que foi cometido no passado", conclui Salman.
Hoje, a ilha de Sivriada, localizada a cerca de 16 quilômetros de Istambul, no Mar de Mármara, é apelidada de "Hayırsızada", ou a "ilha pouco auspiciosa" ou "ilha infeliz".
Fotos 1908-1910 via Instituto de Pesquisa de Istambul.
www.mdig.com.br
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