“O escritor pode, apenas, processar o real através do seu corpo e dar-lhe a forma de ficção, ou pensamento, poema ou crónica, para o entregar, como quem estende a mão”, afirma Hélia Correia, Prémio Camões (2015), Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores (2019) e que a semana passada foi distinguida com mais um prémio literário, desta vez com o nome de Guerra Junqueiro. A sua escrita, intensa e prolixa, passa pelo romance, o conto, a poesia e a literatura infanto-juvenil.
Nesta entrevista, que abre um ciclo de conversas de sinalAberto com grandes escritores de língua portuguesa feitas pelo poeta João Rasteiro — que veio reforçar a equipa do Jornal — Hélia Correia vai dizer mais adiante que “hoje já não se morre de civilização”, e que não há maior pobreza” quando “o sonho de uma vida é tomar um cocktail dentro de uma piscina”.
O pensamento livre da escritora distende-se a cada pergunta, como se às tantas estivesse a pensar para si, em voz alta, permitindo, assim, que a oiçamos seja quando fala de literatura, da vida, da pandemia, da língua portuguesa, de nós…E nós retribuímos escolhendo e inserindo ao longo do diálogo poemas dela, tornando ainda mais polifónica uma entrevista que não segue os padrões habituais.
sinalAberto — O mundo de hoje, soberbo pela ilusão da tecnologia e pela confusão do ruído, ainda tem lugar para o indizível compasso da literatura? Porquê?
Hélia Correia — Há lugar para tudo. Isso a que chamam comunicação tecnológica não passa de um avanço na massificação dos media de registo das linguagens. Quando apareceu o livro tal como o conhecemos, os alfabetizados retiraram-se da roda da lareira onde alguém transmitia as histórias orais, curvaram-se, calados, sobre as páginas e o ambiente emudeceu bastante.
Agora todos leem, e escrevem, e encurtam as palavras, coisa que já fazíamos na linguagem oral.
É uma nova imprensa, acessível ao vulgo, com as duas direções verbais escancaradas: a da produção e a da receção. Ocupam muito espaço, mas, como não existe a fisicalidade, são bolas de sabão que se desfazem à pressão do botão de desligar. Pois é ainda o humano quem detém o último poder. Ninguém se queixe. A literatura não tem nada a ver com isto.
O rumor que ela faz é subaquático, é preciso correr um risco para o ouvir.
sA — Quanto ao lugar do escritor no centro do espaço público, como é ele encarado pela Hélia, tendo em conta não só a sua obra ficcional em geral, mas sobretudo alguns dos últimos livros, como “A terceira miséria” (Poesia, 2012), “Um bailarino na batalha” (Romance, 2018) e o recente “Acidentes” (Poesia, 2020), onde a voz da “mulher” emerge destemida por entre a voz dos homens que tragicamente “conduzem” esta Europa, este mundo, onde cada vez mais parecemos uma multidão de zombies?
HC — Não sei bem o que é um escritor, não sei bem o que é uma mulher, e não sei o que é o centro do espaço público. Sei o que são seres vivos e, por isso, mortais. Uns escrevem, outros vão para o matadouro. Algumas fêmeas engravidam, algumas são ovíparas, outras têm estranhas formas de reprodução. Há uma fêmea na mulher, mas não é isso o que a torna heroína, atleta ou cientista. Ou escritora.
A voz é do humano, e é também o berro do animal. A da erva a crescer.
Nós, o que temos de diferente?
A palavra. A linguagem falada diverge segundo o género ou o sexo? Não.
Pôr o escritor num pedestal de Hyde Park a dar lições ao mundo, isso, repugna-me.
Faz-me muita impressão quando alguém se reclama de um superior estatuto e começa a pregar como se lhe assistisse um direito moral. O escritor pode, apenas, processar o real através do seu corpo e dar-lhe a forma de ficção, ou pensamento, poema ou crónica, para o entregar, como quem estende a mão.
sA — Como foi o seu processo de despertar para a criação literária? Quando é que começou a ter a noção de que isso se iria tornar algo absolutamente inevitável e vital?
HC — Isto já me parece pessoal. Mas posso responder que foi aos quatro anos e foi definitivo.
sA — Fale-nos um pouco das suas motivações criativas. O que a impele e como colidem ou coabitam os diferentes géneros, nomeadamente o Narrativo (Romance, conto) e a Poesia, mas também o dramático, no seu processo criativo?
HC — Não tenho motivações criativas. Tenho frases que surgem. Algumas vezes, sigo-as. Elas sabem da minha preguiça estrutural, por isso trazem tudo pronto já: género, tamanho, sobretudo música. São uns duendes que me saltam ao caminho.
sA — Fale-nos também dessa sua já várias vezes referida necessidade de uma quase umbilical ligação à terra, à natureza. Para mais, como também já referiu, como se essa ligação fosse “como que uma perversão do que deve ser a natureza humana”…
HC — O que é estranho é que tanto nos tenhamos separado da terra e continuemos dependentes dela. Se já tivéssemos migrado para Marte ou para outras galáxias, tudo bem. Mas não: aqui continuamos a comer, a beber, a consumir petróleo, a correr de uma estância turística para outra, cheios de pressa e, no entanto, ainda obrigados a apoiar as solas dos sapatos — já não os pés — no chão, e a alimentar-nos do que dele nasceu. Tratamos de cobri-la de alcatrão e de cimento, isto é, de a sufocar. Dizem agora alguns iluminados que ela está a vingar-se. Não, não está. Ela não age, não tem querer, não tem maldade. Nem bondade. É um ser sem dó nem culpa.
Mas eu mantenho a imaginação cheia das festas e rituais da terra e gosto, ah, como gosto de ver os movimentos de rua que a defendem, gosto de ouvir a frase: «Respeita a tua mãe». Quer dizer que se dança. Ainda se dança.
Otherwise
«Tanzt, tanzt sonst sind wir verloren»
(Dance, dance, otherwise we’re lost)
– Pina Bausch –
I
Se a dança nos salvasse, mesmo assim
dançaríamos mal e deus algum
receberia o nosso movimento.
Pois nem se a terra nos prendesse pelas mãos
como se prende um filho, de maneira
a fazê-lo voar em rotação,
com um pouco de perigo, o que subtrai
ainda mais o corpo à gravidade,
confiávamos nela.
Já perdemos
a ligação?
Podia algum de nós,
os politicamente corrigidos,
tornar-se outra vez fera,
estar na fera,
cravar na jugular da fera os dentes
em corpo a corpo, ventas contra ventas,
cheiro dentro de cheiro, exactamente
como na fúria da reprodução, apenas
indo mais longe nela,
devorando?
A dança:
o pé batia contra o solo
e, de algum modo, enraizava ali
e, de algum outro modo, se elevava
no ar sonoro, tendo de comum
isso com as aves,
como dizem que Nijinsky
tinha delas a arcada plantar.
A pele dos animais esventrados, isso
que, de sensíveis, não podemos
conceber,
colava-se nos ombros
das mulheres, colava-se a poder
de sangue seco,
parecendo, com elas, respirar.
Sacudindo a cabeça para trás,
sacudindo a cabeça, estranha coisa,
perdendo as bailarinas
o equilíbrio
que fazia o orgulho das donzelas.
Perdendo o equilíbrio indesejável.
II
«Tudo o que a dança grega nos ensina
é a nudez
nas posições terrenas,
é quebrarmos
pelo plexo solar
onde o vigor
de toda a criatura
permanece».
Isadora não disse tudo isto
mas disse parte.
Eu vejo-a a subir
com Raymond, o irmão, pelo monte Himeto,
a carregarem água e instrumentos
para a construção da casa,
que eles queriam
semelhante ao palácio de Micenas.
Raymond e Isadora, tão esmagados
pela subida, o calor e até mesmo
pelo canto das cigarras
que era dança o que deles saía
e os outros confundiam com suor.
Era essa dança de deixar bater
o joelho no chão,
de resvalar
nos torrões ressequidos, no tomilho
que feria e perfumava.
Raymond Duncan,
cunhado de Angelos Sikelianos,
por sua vez marido de Eva Palmer,
gente de consequência todos eles,
gente capaz de recriar, em Delfos,
não apenas os ritos teatrais
mas inclusivamente a confecção
do vestuário duro e vegetal
que usavam sem pudor.
Eva, Penélope,
mulheres com um tal excesso de beleza
que isso as tornava intransigentes e as punha
a salvo de ternuras comezinhas,
atacando o trabalho de tear
não por fidelidade, como a outra,
mas numa guerra à Belle Époque e ao século
que estava a começar.
Um pouco menos de dinheiro na família
e tê-los-iam internado a todos.
III
Eu, que amei Pina Bausch muito antes
do português comum,
e ouvi depois
os novos-ricos a gritarem «bravo»
contra o seu rosto onde passava tudo
o que eles não entendiam,
gostava de pedir em alemão
«Tanzt», como ela pediu.
Estive uma vez
com uma rapariga da Holanda
que fez uma audição em Wuppertal.
«Make me laugh», eis o que Pina disse.
A rapariga,
é claro,
não entrou.
Mas não falava disso com despeito.
Brilhava, tarde fora, e não devido
à chuva que caía em Amsterdão.
Brilhava e eu não sei se, como os outros,
se esqueceu, entretanto,
de dançar.
in, revista Telhados de Vidro nº 18, Maio de 2013
sA — Como é que a Hélia está a lidar individualmente com este momento dramático que estamos a viver? E como sente que todos vamos sair, esperemos, que até ao final de 2021 seja possível isso ocorrer, quer sejamos os povos, quer sejam os estados, quando o fio que separa estados ditos democráticos de estados ditatoriais, com esta pandemia, é cada vez mais apenas um frágil fio de Ariadne, uma mínima linha de valores que tão difíceis foram de conquistar ao longo de séculos por milhões ou biliões de seres humanos?
HC — Então: apareceu uma pandemia. Isto é muito ofensivo para um ocidental. Parecia que tudo ficaria contido nessas terras esquisitas das quais não percebemos nem a língua, nem a política, nem a escolhas das fontes alimentares proteicas.
E afinal chegou cá, como chegava antigamente. Veio mais depressa porque apanhou, é claro, os aviões.
Pode isto acontecer? Claro que não pode. Vamos morrer?
É claro que não vamos. Já não se morre em civilização. Houve aqui um engano. Felizmente, uma insignificância a que se chama «ciência», uma insignificância que não tem a mais pequena semelhança com o divino, e que, enquanto não põe no mercado os produtos, mantém um belo comunitarismo, saiu no seu cavalo a combater.
E pronto, isto está quase a acabar. Os heróis vão para dentro, voltaremos a ver os trabalhadores da saúde a sofrerem insultos dos utentes e dos governadores. Aposto que haverá quem agradeça a um deus a cura que devemos à ciência. Pode muito a ficção.
sA — O que é que nunca aprendemos de verdade, ou pelo contrário, aprendemos demasiado bem, no que concerne aos valores da Pólis? Com essa predestinação dos Gregos e da cultura helénica, com a qual tem mantido, mais do que um diálogo íntimo e continuado, um autêntico enamoramento?
HC — A grande perda com o fim da Grécia foi essa perda da diversidade de onde provinham o horror e a alegria, a dança e o flagelo, a liberdade e a superstição, a arrogância e o controlo da arrogância, a música e a fala, o espaço inteiro cheio de narrativas num constante devir. Perdeu-se, está perdido. E, no entanto, ainda amo essa Grécia, sem luto e sem distância. Ainda a tenho como Conselheira e Mestre. Vou lá todos os dias tal como os emigrantes voltam, no Verão, a casa.
sA — E por isso e, relembrando essa magnífica obra “A Terceira Miséria”, que parte justamente da célebre e arrasadora interrogação de Hölderlin: «Para que servem os poetas em tempo de indigência?», para que servem eles realmente hoje?
HC — Não sei para que servem os poetas. Sei que os poemas, esses, não deverão servir. Deverão existir na plenitude que os torna deslumbrantes, reveladores, e inúteis para qualquer uso prático.
A frase de Hölderlin precisa do contexto e do conhecimento de todo o Hölderlin. Precisa do olhar de um louco sobre o rio. Não pede uma resposta operativa. É a frase do grande abandono que ficou depois de os deuses gregos nos deixarem, nos virarem a cara, desgostosos.
O que faz o poeta? Mostra aquilo que o olho nu não vê.
Seja a beleza, seja a crueldade, ou seja a crueldade da beleza.
O resto, ainda que venha do poeta, é do domínio da cidadania.
sA — A Hélia afirmou numa entrevista: “Estamos doentes de abundância”. Refere-se à Europa pós-Auschwitz e ao mundo Ocidental em geral? E estamos doentes, porque na verdade essa abundância é de certa forma oca ou falsa faz algumas décadas?
HC — A abundância é isso mesmo: o excesso. O furor de adquirir e deitar fora, o vício dos objetos, a compulsão do gasto, a ânsia das viagens em que não se conhece senão hotéis e lojas, tudo é doença do insaciável, tudo é dependência e entorpecimento. Quem pára? Poucos param.
O sonho de uma vida é tomar um cocktail dentro de uma piscina. Não há maior pobreza.
sA — Com que outros artistas – desde escritores, pintores, músicos, dançarinos, escultores, cineastas, etc. – eventualmente tem procurado dialogar nas suas obras, quais são as suas grandes referências, culturais?
HC — Não se responde a uma pergunta destas. Ou então escreve-se um livro a tal respeito. A resposta seria tão extensa quanto uma autobiografia.
ESMOLA
I
Lançai me
uma palavra, como alguns
atiram côdea aos cães.
Uma palavra
que, embrulhada nesse cuspo
que vos escorre pelos queixos,
brilha
e desconcerta a própria
repugnância.
Sacudi a
de vós, tal como alguém
sacode a lama seca do sapato
sem perceber sequer que lama é
porque não tira os pés
do alcatrão.
Essa palavra abandonada à porta,
eu a recolherei, como se houvesse
nela um pedido,
a súplica de um órfão,
de uma cria deixada para
morrer.
Eu pegarei nessa palavra ao colo
e, não sabendo onde encontrar abrigo
nem alimento,
dormirei com ela,
ouvindo a
murmurar,
enquanto os bosques
vão crepitando e a cinza
nos recobre.
II
Mas entregai uma qualquer palavra,
dessas que tanto desprezais,
ao meu cuidado.
Uma palavra, por exemplo,
sobre a qual
ninguém se incline já
porque a confunde
com uma pedra do caminho
ou um excremento,
tão insignificante
se tornou.
Oh, que estranho é pensar que elas tiveram,
até, reis como servos, as palavras.
Pensar que elas passavam pelos séculos
com o seu corpo musical, tão frágil
e tão convocador de tempestades.
Essas pequenas criaturas transparentes,
sem peso, com alguma vocação
para a malignidade, pois não têm
nem sombra nem reflexo,
e dos seus dedos
desce a grande beleza do terrível
e a grande redenção
que há no poema.
III
Pequenas, misteriosas criaturas
que não nascem do mundo natural,
que são obra dos homens,
sendo os homens a obra delas,
vejo as
hoje mais do que escorraçadas:
submetidas.
Elas que eram solenes e risonhas,
tanto mais necessárias quanto inúteis,
e tanto mais inúteis quanto pura
exaltação do texto, essas palavras
rolam humildemente pelo chão.
Deixai, deixai cair uma palavra,
e outra, e outra,
os ossos do banquete,
para que me roje e as apanhe com a boca,
sendo eu menos
do que mendiga,
menos do que cadela,
sendo eu menos do que um bicho
com fome:
sendo a fome.
in, Acidentes, Relógio d’Água, 2020
sA — O seu último livro é “Acidentes”, editado pela Relógio D’Água. O que gostaria de partilhar e confidenciar connosco sobre ele? As palavras, a palavra poética, a linguagem, neste indigente mundo em que sobrevivemos, estão gastas, são realmente uma esmola?
HC — Nunca falo sobre o que escrevo. Se publico um livro, estou a entregá-lo, justamente, a um público, nem que seja a um público de uma ou duas pessoas. O que houver de anterior à publicação, como intenções — que nunca tenho — ou motivações — que nunca reconheço — não vai colado à obra. Falar sobre uma obra é trabalho do crítico ou do académico. Mal anda o livro que precisa do autor para se fazer valer. Nenhum livro de autor morto sobrevivia.
sA — “Deixai, deixai cair uma palavra, / e outra, e outra, / os ossos do banquete, / para que me roje e as apanhe com a boca”. É esta a esmola, a única condição do mais profundo desencanto e desânimo? Ou esta esmola é precisamente ainda a ínfima esperança da palavra no futuro do mundo?
HC — Não falo do poema, mas posso falar do que socialmente me preocupa: a língua portuguesa está ameaçada de morte. Eu pegaria em armas pela sua sobrevivência, como pela sobrevivência de qualquer língua. Vemos a língua prática inglesa (e eu adoro o inglês, leio, falo e até sonho, às vezes, em inglês…) a ocupar as frases portuguesas com 50, 60 ,70 por cento de prevalência. Não há razão para isso. O ser humano tem grande competência em poliglotismo. Pode aprender dez línguas sem ter de eliminar as que já conhece. O domínio das línguas de poder, cultural ou económico, já fez história na nossa literatura, mas nunca ao ponto da exterminação.
Eu gostaria de ver surgir um movimento de resistência, uma defesa ativa, que criasse um orgulho no falar português, uma afirmação de gosto superior, de dignidade, até de resistência, pois que se trata de uma colonização em que os colonizados são dóceis, ignorantes, gananciosos e cheios de preguiça. É uma dádiva civilizacional o facto de dispormos de uma língua franca que nos permite comunicar com os habitantes de todo o planeta. Mas reavivemos essa dádiva cultural que é a multiplicidade e a variedade de línguas neste mesmo planeta.
Há outras ameaças: há a renúncia à linguagem verbal em detrimento da imagem.
As pessoas recorrem à imagem para mostrarem o referente, dispensando-se assim de elaborar uma descrição. E há o recurso ao resmungo e às pequenas expressões automáticas que substituem uma frase, mesmo simples. Isto é, estamos a criar uma economia de comunicação atabalhoada, paupérrima e de onde é excluída a palavra. Haja o progresso tecnológico que houve, sem palavras voltamos para a pré-história.
Mas não nos lastimemos como quem sofre abusos: não é uma invasão. Não somos esmagados pelos bárbaros. Estamos num mero processo de autofagia, como sempre acontece aos decadentes.
sA — Para além de uma certa recorrência de Hölderlin nos seus textos, nomeadamente nos textos poéticos, que formulou a frase que pode espelhar uma das faces de “Acidentes”, quando diz que “quase perdemos a palavra em terra estrangeira”, também é celebrado aquele que para mim é o poeta maior da poesia portuguesa pós-Pessoa, Herberto Helder. A Hélia apenas o admira e celebra, ou ele sempre foi uma leitura obrigatória e até de alguma influência?
HC — Herberto é Herberto é Herberto.
sA — Como escritora que escreve em português, apesar da sua ligação à cultura grega, e de certa forma à cultura e língua inglesa, etc., considera importante manter o diálogo com autores de outros países e regiões de língua portuguesa?
HC — O português de Portugal é velho e rígido, o português de África e do Brasil é jovem, plástico, criativo, fértil, ainda que o Brasil, ultimamente, tenha dado em moderno à sombra americana. O Ocidente, coitado, tem os ossos fracos e os ouvidos gastos, lê-se a si mesmo, fecha-se ao diferente.
Não quero nem diálogo nem partilha. Quero é deslumbrar-me com a abundância, com a energia, com a liberdade, com a diversidade — lá está… — das culturas, que enchem a mão dos escritores africanos. Não tenho aquilo que eles têm, não os posso imitar. Só posso amá-los, muito.
1.
Para quê, perguntou ele, para que servem
Os poetas em tempo de indigência?
Dois séculos corridos sobre a hora
Em que foi escrita esta meia linha,
Não a hora do anjo, não: a hora
Em que o luar, no monte emudecido,
Fulgurou tão desesperadamente
Que uma antiga substância, essa beleza
Que podia tocar-se num recesso
Da poeirenta estrada, no terror
Das cadelas nocturnas, na contínua
Perturbação, morada da alegria;
7.
Nós, os ateus, nós, os monoteístas,
Nós, os que reduzimos a beleza
A pequenas tarefas, nós, os pobres
Adornados, os pobres confortáveis,
Os que a si mesmos se vigarizavam
Olhando para cima, para as torres,
Supondo que as podiam habitar,
Glória das águias que nem águias tem,
Sofremos, sim, de idêntica indigência,
Da ruína da Grécia.
23.
A terceira miséria é esta, a de hoje.
A de quem já não ouve nem pergunta.
A de quem não recorda. E, ao contrário
Do orgulhoso Péricles, se torna
Num entre os mais, num entre os que se entregam,
Nos que vão misturar-se como um líquido
Num líquido maior, perdida a forma,
Desfeita em pó a estátua.
in, A Terceira Miséria, Relógio d’Água, 2012
sA — Julgo saber que repudia liminarmente as novas tecnologias como o Facebook ou o Twitter. Parece-lhe que elas já começaram a deixar de nos servir e somos nós que já somos tiranizados por elas?
HC — Não repudio as novas tecnologias, que ideia! Sou até bastante dextra em informática, é a mim que recorrem os meus próximos para lhes resolver os problemas. Uso muito a internet, esse Larousse gigantesco, quase infinito, para todo o tipo de investigação. E poder comprar livros nos alfarrabistas de todo o mundo! E poder ler textos que eram inacessíveis e agora estão à nossa disposição! A internet é um alargamento da biblioteca, um alargamento maravilhoso!
Na verdade, passo muito do meu tempo sedentário em buscas no computador.
O que eu não quero é ter pessoas do outro lado. Não quero a casa cheia de gente que nem conheço, de «amigos» que nunca abracei. Não quero saber o que pensam, o que fazem, o que cozinham, o que festejam, o que produzem, o que veem, o que ouvem. Por que razão admitiria eu um tal desequilíbrio nos meus dias?
Estou em crer que o nosso aparelho afetivo não comporta tais centenas de amigos, como os olhos não podem distinguir rostos em multidões, como um beijo só pode dar-se a uma pessoa de cada vez. Nem mesmo a minha verdadeira gente quero contactar por esse modo.
sA — Serão elas de alguma forma os novos Deuses que os humanos encontraram para colmatar os Deuses religiosos que se foram, e que por sua vez já tinham colmatado a ausências dos Deuses clássicos que também se tinham retirado? É uma espécie de Mito de Sísifo o repetitivo ciclo da cegueira dos seres humanos que lhes faz criar sempre mais novos Deuses para de novo os cegar?
HC — Não sejamos tão trágicos. É assim: hoje, no Ocidente, não se obriga ninguém. Quem se embebeda fá-lo porque quer. Quem quer ter audiências maiores do que as de Hyde Park, instala o FB ou semelhante, e aceita as amizades que apareçam. Até funciona para acasalamentos. Tudo isto é, simplesmente, afirmação do ego, com substrato vagamente libidinal, preservação do indivíduo, em primeiro lugar, e da espécie, em segundo, organização de tribos, predomínio do que melhor souber mostrar a cor das penas. É, no fundo, uma coisa inofensiva, que só por exagero trará perigo.
Lembram-se da euforia dos exércitos quando lhes apareceram as espingardas?
O matar à distância, sem contacto, muito longe do alcance das espadas? Assim estamos agora, formidáveis neste novo exercício do poder, vendo os familiares que estão longe, dando a ler os versinhos que fizemos, aliciando para um encontro ou convocando algum ajuntamento.
Há uma coleção de afinidades, porque somos gregários e já não vamos a clubes, sejam populares ou chiques. Tudo isto é um pouco sobre-humano, mas não superámos nós, há muito tempo, a velocidade da corrida pedestre? Não voamos?
Eu cito muita vez Matthew Arnold que, sobre a excitação que o comboio levara às cidades inglesas, comentou: «Não percebo este entusiasmo de sair de um lugar sem graça alguma e apanhar o comboio só para chegar mais depressa a outro lugar sem graça alguma».
sA — A Hélia referiu-se ao surgimento dos poemas no seu ato criativo, com uma das mais belas frases que já ouvi: “Só preciso da primeira frase. Quando aparece a primeira, depois chove.” Fale-nos um pouco mais sobre isso e sobre a sua relação com a chuva?
HC — Bom, é isso, é verdade. Uma frase aparece. Atrás dela, vem outra. Às vezes, sigo-as.
A chuva? Isso não sei. Houve um cientista inglês que acabou com a mitificação quando, num colóquio, explicou aos presentes que eu, sendo muito alérgica, precisava do ar limpo e que tal era um facto modestamente físico. Que eu sou da chuva, sou. E dos montes da Escócia. Não parece que tenha interesse para ninguém.
sA — Que palavra, que verso, que frase gostaria de nos deixar para que depois possa vir a chuva? “Lançai-me uma palavra, como alguns / atiram côdeas aos cães”, sim?
HC — Epea Pteroenta, as palavras aladas cantadas por Homero, continuam a dar-me emoções gratas. Ele, que a lenda tem por cego, via-as sair das bocas como pássaros e lançar-se num voo com o som, com o brilho, com o volume, a cor e a leveza de um pequeno animal canoro e emplumado. Eu tomo muitas vezes as palavras por pássaros e os pássaros por palavras. É tão reconfortante ver como uma invenção recente, o helicóptero, tomou o nome das palavras gregas, hélix, espiral e pteron, asa. E há aqueles que lhe chamam «língua morta»!…
Hélia Correia: o essencial de uma escritora intensa
Nasceu em Lisboa em 1949 e passou a infância e a juventude em Mafra, terra da família materna. Terminou os estudos liceais já em Lisboa, onde frequentou a Faculdade de Letras e se licenciou em Filologia Românica. Foi professora do ensino secundário. Em 2002 tirou o mestrado em Teatro da Antiguidade Clássica. A escrita de Hélia Correia tem-se diversificado pelo romance, o conto, a poesia e a literatura infanto-juvenil. O Prémio Camões foi-lhe atribuído em 2015, reconhecendo a imaginação, o poder de criação de personagens e o invulgar modo de trabalhar a língua portuguesa que Hélia Correia tem revelado. Das suas obras destacam-se os romances “O Separar das Águas”, “Insânia”, “A Casa Eterna”, “Lillias Fraser” e “Adoecer”. Publicou, em 2014, uma recolha de contos intitulada “Vinte Degraus e Outros Contos” com a qual obteve o Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco. No teatro, destacam-se as peças “Perdição- Exercício sobre Antígona”, “O Rancor- Exercício sobre Helena” e “Desmesura – Exercício com Medeia”. Em 2019 foi galardoada com o Grande Prémio de Romance e Novela da APE, com o livro “Um Bailarino na Batalha”. Publicou, entre outros, os livros de poemas “Terceira Miséria”, Prémio das Correntes D’Escritas 2013 e recentemente o livro de poemas “Acidentes”. Em 2017 foi distinguida pela Asociación de Escritoras e Escritores en Lingua Galega como Escritora Galega Universal. Já em 2021 viu ser-lhe atribuído o Prémio Literário Guerra Junqueiro.
www.sinalaberto.pt
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