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segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

A 2 DE FEVEREIRO DE 1954 O ALGARVE COBRIU-SE DE NEVE


O mês de fevereiro tem sido, ao longo das últimas décadas, fértil em acontecimentos singulares. A 15 de fevereiro de 1941, o país foi atingido por um violento ciclone e, em 1969, a 28 do mesmo mês, foi sacudido pelo maior sismo registado, no século XX, em Portugal continental. Escassos quinze anos antes, a 2 de fevereiro de 1954, um outro prodígio aconteceu – um grande nevão cobriu o país de norte a sul.
Apesar de se sentir um frio intensíssimo, não só em Portugal, como no resto da Europa, nada fazia prever o insólito acontecimento. Os algarvios, habituados a temperaturas amenas, desesperaram perante o frio que os invadira e, apesar dos prenúncios da primavera com a chegada das andorinhas, viveram dias de um inverno glacial que culminou com a queda de um forte nevão.

Figueiral coberto de neve no Algarve






Fenómeno invulgar mas não inédito no sul do país, ele substituiu por algumas horas a peculiar neve algarvia – a flor das amendoeiras.

Pela sua singularidade, o nevão ficou registado na memória de todos os que o presenciaram e foi amplamente difundido pelos periódicos da época, como o “Diário de Notícias” (DN), “O Século” e “A Voz”. Volvidos 60 anos, é através destes jornais que revisitaremos a região por aqueles dias ímpares.


Neve em Portimão, junto à Casa Inglesa







Logo no dia 1 de fevereiro, o DN registou a queda de neve em Aljezur e Odiáxere, causando grande perplexidade entre os populares. Também em Portimão, foram vistos alguns flocos ainda a 31 de janeiro, mas foi a 2 de fevereiro que a neve atingiu, ali e em toda a região, o seu auge: “Na tarde de hoje [2 de fevereiro] das 16 às 19 horas, caiu com maior intensidade, pelo que a cidade ficou toda coberta de branco. Nas ruas a neve atingiu entre 10 e 20 centímetros de altura. Não há memória entre a gente idosa da terra de nada semelhante ao que agora se presenciou e o assunto é comentado como estranho fenómeno nestas paragens.” A temperatura desceu bastante atingindo, em Portimão, segundo “A Voz”, 1ºC.

A neve em Portimão, junto à Casa Inglesa










Em Bensafrim, nevou mais de uma hora, alterando a paisagem: “Os telhados, os caminhos, e os campos tomaram encantador aspecto, com a sua imaculada brancura, espectáculo nunca visto nestes sítios. A camada de neve atingiu alguns centímetros de espessura e serviu de divertimento à petizada”.

Mais a norte, em Aljezur, esta caiu “sob um frio glacial”, juntamente com chuva miudinha. Em Odeceixe, o fenómeno prolongou-se por três horas, atingindo o nevão, em alguns sítios, mais de 8 centímetros de espessura, deixando os campos “completamente brancos”, numa visão inédita.
Também em Lagos nevou com abundância, constituindo um “espectáculo maravilhoso nunca observado nesta cidade.” O mesmo sucedeu em Porches, enquanto, na vizinha Armação de Pêra, apenas nas amendoeiras a neve não causou admiração: “Com um céu de tonalidade uniforme de chumbo e ausência de vento, caiu neve de manhã, sobre esta localidade. Os telhados e os campos ficaram completamente brancos e o espectáculo, pela primeira vez aqui observado, impressionou vivamente a população”.

Neve no Castelo de Silves









Sobre Alcantarilha, foi publicado: “O frio tem sido muito intenso. De manhã caiu um nevão, o que admirou muita gente, pois, na verdade não há memória de tão grande quantidade de neve. Os flocos levíssimos, pareciam pétalas de flores de amendoeira”. No entroncamento ferroviário de Tunes, a aldeia “acordou sob um espesso manto de neve. Não há memória de um nevão assim no Algarve.”

Na velha Silves, “caiu neve sobre esta cidade e arredores durante toda a tarde de ontem, proporcionando um espectáculo de rara beleza”. Também em Algoz se registou idêntico fenómeno: “Ninguém se recorda de tão baixa temperatura, nem tanta neve”, como noticiou “A Voz”, referindo ainda: “Hoje, devido ao grande nevão que caiu durante a noite, os campos, telhados, arvoredo e ruas estavam cobertos de grande camada de neve, cujo aspecto era encantador, pois, nalguns pontos a camada branca atingia 40 centímetros de altura. Toda a população acorreu aos lugares mais altos, a presenciar tão lindo aspecto que se conservou, até que o Sol tudo desfez”.
O mesmo sucedeu em São Bartolomeu de Messines: “Nevou ontem com tanta intensidade que passadas pouco mais de duas horas a neve atingia em alguns pontos, mais de 30 cm de espessura. Era encantadora a visão das grandes extensões alvinitentes”.
Um palmo de neve na capital do distrito








Na capital de distrito, Faro, uma notícia datada de dia 3 referia: “Durante parte do dia de ontem e da noite passada caiu sobre esta cidade forte nevão, facto que se regista aqui pela primeira vez e despertou a mais viva curiosidade, pois a maior parte da população nunca vira neve. Esta atingiu nalguns pontos mais de um palmo de altura e conservou-se durante quase todo o dia de hoje, que esteve muito frio”.

O mesmo aconteceu em Estoi, onde o termómetro registou 0º C. Também em São Brás de Alportel as temperaturas desceram sobremaneira, o termómetro marcava às 14 horas, do dia 2, “dois graus negativos, que baixaram para quatro, às 19 horas, temperaturas que só há 23 anos se registaram”, noticiava “A Voz”. A neve caiu em São Brás ininterruptamente durante 10 horas, atingindo nas ruas “30 centímetros de altura e, nalguns sítios, 1 metro”.
Por sua vez, em Olhão, nevou abundantemente durante a tarde, até cerca das 21 horas, atingindo o manto branco 15 cm de altura. Na rua Eng. Duarte Pacheco, as portas ficaram mesmo entaipadas. Na manhã seguinte, “a vila apareceu envolta num imenso manto branco de neve e de gelo, dando aos olhanenses o ensejo de presenciar um espectáculo inédito. Durante o dia, a população despejou para a rua, a neve acumulada nas açoteias das residências, o que deu origem a grossos blocos que, apesar do sol, senão derretem. Nos arredores, as flores de amendoeira confundindo-se com os flocos de neve, ofereciam um espectáculo grandioso”.

Neve na avenida da República, em Olhão






Na Fuzeta, escreveram os jornais da época, “não há memória de espectáculo tão deslumbrante como o que se verificou nesta povoação, cujas ruas e açoteias ficaram cobertas de neve”. Na verdade, junto ao mar e em todo o litoral, centenas de embarcações e os próprios areais ficaram cobertos de neve.

Em Tavira, nevou abundantemente entre as 18 e as 23 horas, acumulando-se cerca de 40 cm no largo dos Mártires da República. Quanto aos campos, referia o DN, “todas as árvores parecem amendoeiras em flor.”
Na freguesia de Cachopo, a neve atingiu cerca de 60 centímetros, caindo também com intensidade em Santa Catarina. A esta última localidade foram mesmo chamados os bombeiros de Tavira para desobstruírem telhados e varandas, pois temia-se que abatessem.
Espetáculo bonito, mas com prejuízos












Na verdade, todo o cenário idílico e encantador causado pelo nevão foi também acompanhado por enormes prejuízos, que a imprensa não deixou de elencar: “no Algarve, onde a raridade do espectáculo da brancura da neve emprestou maior importância ao nevão (…), a outra face da medalha é, porém, a desolação dos lavradores em presença das culturas devastadas. Muitas árvores partidas, as colheitas de amêndoa perdidas, prejuízos incalculáveis nas sementeiras são o triste balanço deste espectáculo”, lembrava o DN.

Já “O Século” enumerava-os em Silves: “o teatro desmontável da companhia Rafael de Oliveira, que está instalado no Largo da Senhora dos Mártires, abateu com o peso da neve e os bombeiros voluntários nada puderam fazer. Um dos bombeiros foi arrastado pelo desabamento, indo cair na plateia. No sítio do Falacho, um grande eucalipto abateu com o peso da neve, sucedendo o mesmo com oliveiras, e alfarrobeiras noutros sítios. As escolas primárias ficaram bloqueadas pela neve, tornando-se penoso o acesso dos alunos e professores. Nas estradas registaram-se acidentes de viação, vendo-se na ladeira de São Pedro alguns veículos voltados nas valetas, por terem derrapado na neve (…). As carreiras de camionetas para Armação de Pêra foram interrompidas durante quatro horas e as fábricas da indústria corticeira não funcionaram em consequência do intenso frio que se fazia sentir. As sementeiras recentes que ainda não germinaram não sofrerão prejuízos com a neve, mas as ervilhas e as favas ficaram queimadas, o que acarreta uma grande perda para a região”.







Estes prejuízos repetiram-se por todo o Algarve. Em Estoi, os favais ficaram ocultos sob meio metro de neve, o que sucedeu também em Armação, Guia, etc.. Houve ainda telhados que abateram, como em Moncarapacho ou Olhão, postes e fios quebrados, quer de energia elétrica quer de telefone e com eles interrompidos os respetivos serviços.

Em Faro, por exemplo, informava o DN, “estiveram durante toda a noite passada e parte do dia de hoje interrompidos o fornecimento de energia eléctrica à cidade e desde as 16 horas de ontem até às 11 de hoje as ligações telefónicas com Lisboa e o resto do país”.
O mesmo sucedeu em Olhão, onde até as operárias conserveiras tiveram de ser socorridas, paralisando os trabalhos. As estradas ficaram intransitáveis, com carros e autocarros bloqueados.



Neve vista da ponte sobre a Ribeira de Marim







Em Tavira, as carreiras foram suspensas, enquanto em Alcoutim só a carreira de Vila Real de Santo António para Martinlongo se realizou, porém em difíceis condições.

As ligações ferroviárias foram também afectadas, circulando os comboios com atrasos. Houve pelas ruas quedas incontáveis e com elas muitos braços e pernas partidas. O frio daqueles dias matou ainda muitas aves e as andorinhas que tinham chegado na véspera, assoladas pelo frio, entravam pelas casas em busca de refúgio.
Todavia e apesar de todas estas contrariedades e prejuízos, o nevão ficou marcado na memória de todos aqueles que o presenciaram, pela surpresa e espetacularidade que criou, causando ainda hoje encanto e admiração.


A EN125, junto a Olhão, coberta de neve






Se nos últimos anos, por diversas vezes, pequenos flocos de neve têm brindado a região, nunca até hoje se repetiu um nevão de dimensão idêntica ao ocorrido em fevereiro de 1954.

Autor: Aurélio Nuno Cabrita é engenheiro de ambiente e investigador de História Local e Regional



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