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Texto João Nunes da Silva Fotografia João Nunes da Silva e Pedro Sarmento
Ainda não são 10 horas da manhã. Chego com alguma antecedência face à hora combinada e, antes de me aproximar da porta lateral, já dezenas de turistas fazem fila à espera de conhecer um dos maiores ícones da cidade do Porto, a Torre dos Clérigos, à data da sua construção, o edifício mais alto de Portugal.
Ao mesmo tempo que muitos visitantes subirão os 240 degraus da escada em espiral até chegar ao cimo da torre para contemplar a cidade, por baixo dos seus pés decorre uma importante operação. Uma equipa de antropologia forense, acompanhada de um arqueólogo e outros técnicos, prepara-se para iniciar um trabalho meticulosamente preparado e aguardado com ansiedade pelo punhado de especialistas que conhecem o que está em jogo.
Na verdade, como em muitas campanhas arqueológicas, tudo começou com um acaso. No final das obras de restauro da Igreja dos Clérigos em 2014, foi descoberta uma cripta por baixo do soalho de madeira junto do altar-mor, vedada por uma barreira de tijolos e pedra. Uma escadaria tosca entaipada dava acesso afinal a um espaço exíguo de quatro metros por cinco, no qual dificilmente o arqueólogo Artur Fontinha conseguia manter-se de pé sem tocar com a cabeça no tecto. Era uma cápsula fechada no tempo. Mal os olhos se habituaram à escuridão, verificou-se a existência de vários caixões e respectivos restos mortais. De quem seriam?
Desde a descoberta do Outono passado que se especula se, entre os restos mortais, poderia ali estar sepultado Nicolau Nasoni, arquitecto toscano dos Clérigos, autor de vasta obra no Norte do país e que encontrou, nesta encomenda da Irmandade dos Clérigos em 1732, a primeira oportunidade de aplicar em grande escala os ventos do barroco que varriam a arte europeia. Sabe-se que Nasoni morreu em 1773, aos 82 anos, na cidade do Porto. Poderia a equipa forense comprovar se os seus restos mortais se encontram entre os restantes ali sepultados?
Trata-se de uma investigação importante para a cidade do Porto. Nicolau Nasoni confundiu-se com a história da própria cidade durante as décadas centrais do século XVIII. É-lhe atribuída boa parte das obras barrocas na cidade, embora a distinção entre os projectos que efectivamente assinou e aqueles que foram executados por discípulos ainda exija mais investigação. Seja como for, Nasoni tornou-se portuense, adoptado como ícone, símbolo da atracção que o Porto exerce sobre os estrangeiros, como um vício, um íman que, uma vez magnetizado, nunca mais tolera a fuga. Talvez por isso e porque a cidade sentiu que este projecto poderia assumir uma importância simbólica, diversos recursos foram postos à disposição da equipa.
Nicolau Nasoni foi pintor e arquitecto. Nasceu em 1691 em San Giovanni Valdarno di Sopra, na Toscana, e grande parte da sua formação artística teve lugar em Siena. Passou por Roma, trabalhou em Malta, antes de se estabelecer de vez na Cidade Invicta, aproximadamente em 1725, a convite do então deão da Sé do Porto, Dom Jerónimo Távora e Noronha.
A vasta obra deste arquitecto inclui, por exemplo, o chafariz e a escadaria do Santuário de Nossa Senhora dos Remédios em Lamego, a fachada da Igreja do Bom Jesus em Matosinhos ou o restauro da Igreja Paroquial de Santa Marinha em Vila Nova de Gaia. No entanto, foi na cidade do Porto que deixou o seu cunho, começando por este invulgar projecto dos Clérigos que, à data da sua conclusão, provocou estranheza na cidade, por força da altura da torre e da linguagem arquitectónica invulgar. Foi aqui que moldou o seu legado, nesta torre singular (que deveria ter tido uma gémea, de acordo com o projecto original) e que o historiador e jornalista Germano Silva garante, em “Porto-Viagem ao Passado” (2013), ter servido de orientação para os navegadores na entrada da barra do Douro e de aviso para os comerciantes para a chegada do vapor da mala real.
Há décadas que, erradamente, este retrato é referido como sendo Nicolau Nasoni, sem que exista qualquer prova disso.
Entro na Igreja e sou conduzido para uma área, atrás do altar, que se encontra isolada. Passei literalmente para o lado de lá da cortina, enquanto o restante espaço continua serenamente repleto de turistas. Uma espécie de tenda branca foi montada sobre a cripta, unidade que tanto serve de desinfecção como de protecção da envolvência da igreja face a estes inesperados agentes que andam para a frente e para trás, atarefados, totalmente vestidos de branco e que entram e saem através de uma pequena porta de madeira que, com humor, já foi designada como o vórtice do tempo.
Afinal, a partir dali, regressa-se a um espaço do século XVIII.
No corredor de acesso, a antropóloga Eugénia Cunha não tem mãos a medir face à complexidade dos trabalhos. “Tem máscara e luvas?”, pergunta de chofre. “O ambiente lá em baixo tem bactérias e não convém estar desprotegido”, acrescenta. Mentalmente já preparado, ainda acrescentei uns “pés” para forrar o meu calçado antes de entrar. Durante alguns dias, esta tem sido a minha rotina: chegar, vestir-me e acompanhar os trabalhos, juntamente com os técnicos envolvidos na investigação.
O ambiente na cripta, reaberta há pouco tempo, ainda mantém o ar rarefeito e um odor estranho que não identifico. Projectores dispostos organizadamente iluminam o espaço que de outra forma permaneceria na penumbra, como um estúdio fotográfico macabro. Caixões parcialmente desfeitos amontoam-se ao fundo, enquanto alguns investigadores com fatos brancos, máscaras e luvas inspeccionam meticulosamente cada urna, assim como os despojos do interior.
Os crânios sobreviventes foram digitalizados em 3D para permitir posteriores reconstituições faciais.
Cada achado relevante, cada artefacto, cada hipótese de interpretação são anotados com a descontracção de quem conduz estes processos há alguns anos.
Aquilo que parece ser um anel, um crânio com vestígios de cabelo, nitidamente feminino, dada a dimensão e o penteado, a mitra de um membro do clero, que veio a saber-se mais tarde ser de um bispo de Aveiro ali sepultado, são meticulosamente referenciados, como se de uma investigação criminal se tratasse.
Como corpo estranho, vou-me posicionando entre urnas, saltitando entre peças e seres humanos neste estranho bailado que tem lugar numa pista de dança apertada. Num dos cantos da cripta, distingue-se um amontoado de areia e detritos, onde se percebe que há também ossadas à mistura. Todo este material é transferido para o exterior da Igreja dos Clérigos num espaço adaptado para o efeito e passado a pente fino – literalmente, a pente fino.
Há igualmente registo de seis crianças e um adolescente. Destes restos mortais só quatro indivíduos do sexo masculino serão compatíveis com a hipótese de identificação de Nicolau Nasoni e seguirão para a etapa seguinte da investigação. As restantes ossadas são arrumadas em pequenas urnas, construídas propositadamente para o efeito e devolvidas à cripta, entretanto limpa.
Desde o século XIX que se aponta com firmeza para a probabilidade de o corpo de Nicolau Nasoni estar ali, na Igreja dos Clérigos, em sector incerto, descansando entre os alicerces da sua obra mais cativante. Por um lado, não se lhe conhece outro túmulo; por outro, o assento de óbito registou a data da sua morte e ali foi anotado o sepultamento na Igreja dos Clérigos. “Pelos registos encontrados, sabemos que Nasoni, nos últimos anos da sua vida, adoeceu”, explica o padre Américo Aguiar, presidente da Irmandade dos Clérigos, formada em 1707, após fusão de três confrarias.
“Foi acolhido e tratado pela Irmandade, pois na altura funcionava aqui um hospital. Morreu em 1773, escassos dez anos depois da conclusão da sua torre.”
Muitos dos restantes indivíduos sepultados na cripta – o espaço nobre para as sepulturas – seriam os membros mais insignes da Irmandade dos Clérigos, grandes beneméritos e familiares directos. Mas como se tira a limpo a identidade de um ser humano falecido há mais de dois séculos?
[Infografia de Anyforms Design e Comunicação]
Noutra sala da Igreja dos Clérigos, enquanto alguns técnicos vão terminando os trabalhos de reposição das urnas na cripta, David Navega, estudante de doutoramento, opera o scanner e digitaliza em 3D os únicos dois crânios sobreviventes entre os quatro possíveis candidatos à correspondência com o arquitecto. Esta operação é importante porque permitirá posteriormente coordenar a reconstrução facial, num esforço de verificação das semelhanças entre o retrato-robot e as gravuras ou pinturas do arquitecto italiano. Nos filmes, a operação demora segundos, mas, na ciência a sério, não há atalhos nem soluções instantâneas.
Segundo Eugénia Cunha, este é um processo complexo até à obtenção de elementos decisivos que permitam identificar, ou não, o corpo de Nicolau Nasoni. “A identificação é um processo comparativo, temos de obter algum tipo de dados sobre a pessoa em questão para efeitos de comparação com os nossos resultados. Sem essa confrontação ante mortem (os dados da pessoa) e post mortem (aquilo que faremos nos próximos meses através do exame da perícia nos restos esqueletizados), não é possível.”
Além disso, a análise genética demora bastante mais tempo do que uma análise antropológica, pois depende de exames complementares. Num estudo deste género, para além dos ossos e dentes, todo o contexto é fundamental para a identificação. Ainda segundo a antropóloga forense, há outras tarefas em curso. Como numa vítima moderna, a equipa tentará recolher o historial clínico do arquitecto, procurando descobrir “se Nasoni padeceu de alguma patologia que pudesse deixar vestígios no esqueleto”, tentando avaliar a sua dentição através de pinturas e procurando mais imagens de época para fazer sobreposição fotográfica do crânio com a imagem.
“Procuramos obter compatibilidades e consistência nas nossas conclusões, sem nos deixarmos absorver pela hipótese que obviamente gostaríamos que se verificasse”, diz. Como complemento desta investigação, já foi efectuada a datação por radiocarbono das ossadas dos possíveis candidatos e os resultados não excluíram a possibilidade de correspondência com o “suspeito” dos Clérigos.
Depois, há ainda a via genética. Um dos processos complementares de identificação é a comparação entre descendentes e ascendentes de Nicolau Nasoni e o DNA dos indivíduos encontrados na cripta. A compatibilidade genética seria naturalmente a prova dos nove e já se encontram em curso trabalhos em Itália desenvolvidos pelo historiador Giovanni Tedescu, tendo em vista a procura de sepulturas de familiares de Nasoni com os quais seja possível fazer a necessária comparação genética.
E se for de facto Nasoni?
E se não for comprovadamente o arquitecto? As hipóteses estão em cima da mesa desde o início e todos os envolvidos aceitam o jogo de probabilidades. Depois de terminada a investigação, em 2016, caso se consiga identificar Nicolau Nasoni, a Irmandade dos Clérigos planeia dignificar os seus restos mortais, criando no interior da Igreja dos Clérigos um espaço dedicado ao famoso arquitecto da Invicta.
Soam ao longe as batidas do meio-dia. Recordo uma velha história sobre a construção, no topo da torre, da meridiana, um instrumento que assinalava o meio-dia solar (através de um rebentamento de pólvora), de modo a que os habitantes do Porto pudessem acertar com precisão os seus relógios. Sorrio.
O descanso anónimo a que Nicolau Nasoni foi votado, nos últimos 242 anos, pode estar quase a terminar. Estou certo de que a cidade saberá assinalar devidamente o seu reconhecimento ao italiano que chegou ao Porto e nunca mais partiu.
Ainda não são 10 horas da manhã. Chego com alguma antecedência face à hora combinada e, antes de me aproximar da porta lateral, já dezenas de turistas fazem fila à espera de conhecer um dos maiores ícones da cidade do Porto, a Torre dos Clérigos, à data da sua construção, o edifício mais alto de Portugal.
Ao mesmo tempo que muitos visitantes subirão os 240 degraus da escada em espiral até chegar ao cimo da torre para contemplar a cidade, por baixo dos seus pés decorre uma importante operação. Uma equipa de antropologia forense, acompanhada de um arqueólogo e outros técnicos, prepara-se para iniciar um trabalho meticulosamente preparado e aguardado com ansiedade pelo punhado de especialistas que conhecem o que está em jogo.
Na verdade, como em muitas campanhas arqueológicas, tudo começou com um acaso. No final das obras de restauro da Igreja dos Clérigos em 2014, foi descoberta uma cripta por baixo do soalho de madeira junto do altar-mor, vedada por uma barreira de tijolos e pedra. Uma escadaria tosca entaipada dava acesso afinal a um espaço exíguo de quatro metros por cinco, no qual dificilmente o arqueólogo Artur Fontinha conseguia manter-se de pé sem tocar com a cabeça no tecto. Era uma cápsula fechada no tempo. Mal os olhos se habituaram à escuridão, verificou-se a existência de vários caixões e respectivos restos mortais. De quem seriam?
Sabe-se que Nasoni morreu em 1773, aos 82 anos, na cidade do Porto. Poderia a equipa forense comprovar se os seus restos mortais se encontram entre os restantes ali sepultados?Imediatamente selada poucos dias após a descoberta, a cripta só foi reaberta em Junho deste ano, após diligências formais da Irmandade dos Clérigos com a Direcção-Geral do Património. Entrou então em cena a equipa coordenada pela antropóloga forense Eugénia Cunha, da Universidade de Coimbra, autoridade reconhecida na investigação de enigmas desta natureza e que, em 2006, já estivera ligada à tentativa de abertura do túmulo de Dom Afonso Henriques em Coimbra, então vetada por motivos mais políticos do que científicos.
Desde a descoberta do Outono passado que se especula se, entre os restos mortais, poderia ali estar sepultado Nicolau Nasoni, arquitecto toscano dos Clérigos, autor de vasta obra no Norte do país e que encontrou, nesta encomenda da Irmandade dos Clérigos em 1732, a primeira oportunidade de aplicar em grande escala os ventos do barroco que varriam a arte europeia. Sabe-se que Nasoni morreu em 1773, aos 82 anos, na cidade do Porto. Poderia a equipa forense comprovar se os seus restos mortais se encontram entre os restantes ali sepultados?
Trata-se de uma investigação importante para a cidade do Porto. Nicolau Nasoni confundiu-se com a história da própria cidade durante as décadas centrais do século XVIII. É-lhe atribuída boa parte das obras barrocas na cidade, embora a distinção entre os projectos que efectivamente assinou e aqueles que foram executados por discípulos ainda exija mais investigação. Seja como for, Nasoni tornou-se portuense, adoptado como ícone, símbolo da atracção que o Porto exerce sobre os estrangeiros, como um vício, um íman que, uma vez magnetizado, nunca mais tolera a fuga. Talvez por isso e porque a cidade sentiu que este projecto poderia assumir uma importância simbólica, diversos recursos foram postos à disposição da equipa.
Nicolau Nasoni foi pintor e arquitecto. Nasceu em 1691 em San Giovanni Valdarno di Sopra, na Toscana, e grande parte da sua formação artística teve lugar em Siena. Passou por Roma, trabalhou em Malta, antes de se estabelecer de vez na Cidade Invicta, aproximadamente em 1725, a convite do então deão da Sé do Porto, Dom Jerónimo Távora e Noronha.
A vasta obra deste arquitecto inclui, por exemplo, o chafariz e a escadaria do Santuário de Nossa Senhora dos Remédios em Lamego, a fachada da Igreja do Bom Jesus em Matosinhos ou o restauro da Igreja Paroquial de Santa Marinha em Vila Nova de Gaia. No entanto, foi na cidade do Porto que deixou o seu cunho, começando por este invulgar projecto dos Clérigos que, à data da sua conclusão, provocou estranheza na cidade, por força da altura da torre e da linguagem arquitectónica invulgar. Foi aqui que moldou o seu legado, nesta torre singular (que deveria ter tido uma gémea, de acordo com o projecto original) e que o historiador e jornalista Germano Silva garante, em “Porto-Viagem ao Passado” (2013), ter servido de orientação para os navegadores na entrada da barra do Douro e de aviso para os comerciantes para a chegada do vapor da mala real.
Há décadas que, erradamente, este retrato é referido como sendo Nicolau Nasoni, sem que exista qualquer prova disso.
Entro na Igreja e sou conduzido para uma área, atrás do altar, que se encontra isolada. Passei literalmente para o lado de lá da cortina, enquanto o restante espaço continua serenamente repleto de turistas. Uma espécie de tenda branca foi montada sobre a cripta, unidade que tanto serve de desinfecção como de protecção da envolvência da igreja face a estes inesperados agentes que andam para a frente e para trás, atarefados, totalmente vestidos de branco e que entram e saem através de uma pequena porta de madeira que, com humor, já foi designada como o vórtice do tempo.
Afinal, a partir dali, regressa-se a um espaço do século XVIII.
No corredor de acesso, a antropóloga Eugénia Cunha não tem mãos a medir face à complexidade dos trabalhos. “Tem máscara e luvas?”, pergunta de chofre. “O ambiente lá em baixo tem bactérias e não convém estar desprotegido”, acrescenta. Mentalmente já preparado, ainda acrescentei uns “pés” para forrar o meu calçado antes de entrar. Durante alguns dias, esta tem sido a minha rotina: chegar, vestir-me e acompanhar os trabalhos, juntamente com os técnicos envolvidos na investigação.
O ambiente na cripta, reaberta há pouco tempo, ainda mantém o ar rarefeito e um odor estranho que não identifico. Projectores dispostos organizadamente iluminam o espaço que de outra forma permaneceria na penumbra, como um estúdio fotográfico macabro. Caixões parcialmente desfeitos amontoam-se ao fundo, enquanto alguns investigadores com fatos brancos, máscaras e luvas inspeccionam meticulosamente cada urna, assim como os despojos do interior.
Os crânios sobreviventes foram digitalizados em 3D para permitir posteriores reconstituições faciais.
Cada achado relevante, cada artefacto, cada hipótese de interpretação são anotados com a descontracção de quem conduz estes processos há alguns anos.
Aquilo que parece ser um anel, um crânio com vestígios de cabelo, nitidamente feminino, dada a dimensão e o penteado, a mitra de um membro do clero, que veio a saber-se mais tarde ser de um bispo de Aveiro ali sepultado, são meticulosamente referenciados, como se de uma investigação criminal se tratasse.
Como corpo estranho, vou-me posicionando entre urnas, saltitando entre peças e seres humanos neste estranho bailado que tem lugar numa pista de dança apertada. Num dos cantos da cripta, distingue-se um amontoado de areia e detritos, onde se percebe que há também ossadas à mistura. Todo este material é transferido para o exterior da Igreja dos Clérigos num espaço adaptado para o efeito e passado a pente fino – literalmente, a pente fino.
Desde o século XIX que se aponta com firmeza para a probabilidade de o corpo de Nicolau Nasoni estar ali, na Igreja dos Clérigos, em sector incerto, descansando entre os alicerces da sua obra mais cativante.Pacientemente, os antropólogos vão peneirando a areia com a ajuda de uma pequena espátula, retendo ossos minúsculos. À medida que as ossadas são descobertas e limpas, são numeradas e provisoriamente agrupadas. Após alguns dias de trabalho intenso, há indícios comprovados de 26 indivíduos diferentes, dos quais 12 são comprovadamente homens e seis são mulheres.
Há igualmente registo de seis crianças e um adolescente. Destes restos mortais só quatro indivíduos do sexo masculino serão compatíveis com a hipótese de identificação de Nicolau Nasoni e seguirão para a etapa seguinte da investigação. As restantes ossadas são arrumadas em pequenas urnas, construídas propositadamente para o efeito e devolvidas à cripta, entretanto limpa.
Desde o século XIX que se aponta com firmeza para a probabilidade de o corpo de Nicolau Nasoni estar ali, na Igreja dos Clérigos, em sector incerto, descansando entre os alicerces da sua obra mais cativante. Por um lado, não se lhe conhece outro túmulo; por outro, o assento de óbito registou a data da sua morte e ali foi anotado o sepultamento na Igreja dos Clérigos. “Pelos registos encontrados, sabemos que Nasoni, nos últimos anos da sua vida, adoeceu”, explica o padre Américo Aguiar, presidente da Irmandade dos Clérigos, formada em 1707, após fusão de três confrarias.
“Foi acolhido e tratado pela Irmandade, pois na altura funcionava aqui um hospital. Morreu em 1773, escassos dez anos depois da conclusão da sua torre.”
Muitos dos restantes indivíduos sepultados na cripta – o espaço nobre para as sepulturas – seriam os membros mais insignes da Irmandade dos Clérigos, grandes beneméritos e familiares directos. Mas como se tira a limpo a identidade de um ser humano falecido há mais de dois séculos?
[Infografia de Anyforms Design e Comunicação]
Noutra sala da Igreja dos Clérigos, enquanto alguns técnicos vão terminando os trabalhos de reposição das urnas na cripta, David Navega, estudante de doutoramento, opera o scanner e digitaliza em 3D os únicos dois crânios sobreviventes entre os quatro possíveis candidatos à correspondência com o arquitecto. Esta operação é importante porque permitirá posteriormente coordenar a reconstrução facial, num esforço de verificação das semelhanças entre o retrato-robot e as gravuras ou pinturas do arquitecto italiano. Nos filmes, a operação demora segundos, mas, na ciência a sério, não há atalhos nem soluções instantâneas.
Segundo Eugénia Cunha, este é um processo complexo até à obtenção de elementos decisivos que permitam identificar, ou não, o corpo de Nicolau Nasoni. “A identificação é um processo comparativo, temos de obter algum tipo de dados sobre a pessoa em questão para efeitos de comparação com os nossos resultados. Sem essa confrontação ante mortem (os dados da pessoa) e post mortem (aquilo que faremos nos próximos meses através do exame da perícia nos restos esqueletizados), não é possível.”
Além disso, a análise genética demora bastante mais tempo do que uma análise antropológica, pois depende de exames complementares. Num estudo deste género, para além dos ossos e dentes, todo o contexto é fundamental para a identificação. Ainda segundo a antropóloga forense, há outras tarefas em curso. Como numa vítima moderna, a equipa tentará recolher o historial clínico do arquitecto, procurando descobrir “se Nasoni padeceu de alguma patologia que pudesse deixar vestígios no esqueleto”, tentando avaliar a sua dentição através de pinturas e procurando mais imagens de época para fazer sobreposição fotográfica do crânio com a imagem.
A compatibilidade genética seria naturalmente a prova dos nove e já se encontram em curso trabalhos em Itália desenvolvidos pelo historiador Giovanni Tedescu, tendo em vista a procura de sepulturas de familiares de Nasoni com os quais seja possível fazer a necessária comparação genética.Informaticamente, vai-se reunindo o volume de “provas”, procurando consistências entre o género dos indivíduos, a sua idade biológica e estatura e os dados morfológicos do artista italiano.
“Procuramos obter compatibilidades e consistência nas nossas conclusões, sem nos deixarmos absorver pela hipótese que obviamente gostaríamos que se verificasse”, diz. Como complemento desta investigação, já foi efectuada a datação por radiocarbono das ossadas dos possíveis candidatos e os resultados não excluíram a possibilidade de correspondência com o “suspeito” dos Clérigos.
Depois, há ainda a via genética. Um dos processos complementares de identificação é a comparação entre descendentes e ascendentes de Nicolau Nasoni e o DNA dos indivíduos encontrados na cripta. A compatibilidade genética seria naturalmente a prova dos nove e já se encontram em curso trabalhos em Itália desenvolvidos pelo historiador Giovanni Tedescu, tendo em vista a procura de sepulturas de familiares de Nasoni com os quais seja possível fazer a necessária comparação genética.
E se for de facto Nasoni?
E se não for comprovadamente o arquitecto? As hipóteses estão em cima da mesa desde o início e todos os envolvidos aceitam o jogo de probabilidades. Depois de terminada a investigação, em 2016, caso se consiga identificar Nicolau Nasoni, a Irmandade dos Clérigos planeia dignificar os seus restos mortais, criando no interior da Igreja dos Clérigos um espaço dedicado ao famoso arquitecto da Invicta.
O descanso anónimo a que Nicolau Nasoni foi votado, nos últimos 242 anos, pode estar quase a terminar. Estou certo de que a cidade saberá assinalar devidamente o seu reconhecimento ao italiano que chegou ao Porto e nunca mais partiu.Tendo recebido a 11 de Julho o visitante 1 milhão, numa contagem que teve início em Fevereiro de 2013, por ocasião da celebração do Jubileu, a Torre dos Clérigos é o coração da cidade do Porto.Desde a sua construção, em 1763, marca o horizonte da cidade com a sua superfície de granito, erguida provocatoriamente, reclamando atenção.
Soam ao longe as batidas do meio-dia. Recordo uma velha história sobre a construção, no topo da torre, da meridiana, um instrumento que assinalava o meio-dia solar (através de um rebentamento de pólvora), de modo a que os habitantes do Porto pudessem acertar com precisão os seus relógios. Sorrio.
O descanso anónimo a que Nicolau Nasoni foi votado, nos últimos 242 anos, pode estar quase a terminar. Estou certo de que a cidade saberá assinalar devidamente o seu reconhecimento ao italiano que chegou ao Porto e nunca mais partiu.
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