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quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Prostituição: para O Ninho nunca é trabalho, é violência sobre a mulher



www.delas.pt 

“No dia a seguir ao programa de televisão fui ali à sala. Estava cheia de mulheres e algumas estavam muito indignadas e diziam: ‘ainda bem que já não me estou a prostituir. Alguma vez se eu me estivesse a prostituir queria ficar com o meu nome num registo de finanças como prostituta?’” 

É assim que Conceição Mendes, assistente social na associação O Ninho, começa a conversa com o Delas.pt sobre a proposta de regulamentação da prostituição apresentada pela JS e que tem sido levada a debate em vários contextos. 

O programa que se refere é o ‘Prós e Contras’ (RTP1), de 20 de março de 2017, que trouxe o tema para a discussão pública. 

Desde então, a questão tem sido falada em círculos mais pequenos, promovida por universidades e outras organizações da sociedade civil.

“Fala-se que é um trabalho como outro qualquer, que as mulheres são autodeterminadas. A nossa experiência o que nos diz é que quem tem o dinheiro na mão, quem paga, que são o clientes, é que tem o poder, não são as mulheres”


Criada há cerca de 50 anos em Portugal, O Ninho já viu a legalização da prostituição ser discutida antes e continua a opor-se a ela. Pró-abolicionista e pró-criminalização do cliente, como acontece nos países nórdicos, a associação, que é também uma IPSS, não tem dúvidas de que o objetivo das mulheres que se prostituem é sempre a saída.
“Eu trabalho aqui há 33 anos e nunca nenhuma mulher me disse: ‘eu gosto de me prostituir’”, sublinha Conceição Mendes, que considera que “é muito fácil acenar com direitos”, quando se trata de uma questão mais profunda do que isso. “É regulamentar uma situação que é uma violência, dar o poder legítimo a alguém de comprar outra pessoa como se de um objeto se tratasse.”
N’ O Ninho, que trabalha precisamente no apoio a mulheres que querem sair da prostituição, evita-se a todo o custo o uso da expressão trabalho sexual. “Fala-se que é um trabalho como outro qualquer, que as mulheres são autodeterminadas. A nossa experiência o que nos diz é que quem tem o dinheiro na mão, quem paga, que são os clientes, é que tem o poder, não são as mulheres”, diz Conceição Mendes.
A assistente social não desmente Isabel Soares, do Porto G, quando esta frisa que as prostitutas traçam limites ao que estão dispostas a fazer. Admite que elas até podem “impor algumas condições”, mas lembra que “acabam por ceder numa série de situações porque precisam do dinheiro.”

Um negócio de exploração

A descriminalização do lenocínio, proposta por muitos dos grupos que defendem a regulamentação e contida na moção da JS, é um dos aspetos mais contestados por quem se opõe à alteração do atual enquadramento legal, como O Ninho, por ver nisso uma forma de legalizar a exploração sexual do corpo feminino.
“A mulher, se for preciso, ganha 300 euros numa noite a prostituir-se mas, passados dois ou três dias, não tem dinheiro nenhum na mesma, porque o dinheiro passa-lhe pelas mãos e é absorvido por aquilo que chamamos de formas de proxenetismo que lhes retira o dinheiro.”
Do “chulo” à pessoa que aluga o quarto ou a casa, todos lucram com o corpo da mulher. Segundo Conceição Mendes, não é a mudança do cenário legal que o vai alterar. “Um cliente paga um x, normalmente à pessoa que está na receção, e metade desse dinheiro fica para essa pessoa, que pode ser o proxeneta ou um intermediário. Ou seja, metade do dinheiro é para a casa e metade para a mulher. Com mais luxo ou menos luxo, normalmente, é assim que acontece”.

“Não são as holandesas que estão nas montras – muitas das mulheres que lá estão são estrangeiras, senão a grande maioria. As holandesas não se quiseram regulamentar. E não se pense que é por se legalizar que se retira o estigma. Na Alemanha e na Holanda não deixou de ser estigmatizador prostituir-se.”


Proteção social e na saúde

Outra das divergências prende-se com a possibilidade, reivindicada pelos que são pró-regulamentação, de fazer descontos para a Segurança Social e beneficiar dos mesmos direitos que a generalidade dos trabalhadores, como o apoio em caso de doença ou o direito a uma pensão de reforma. Conceição Mendes dá como exemplo a Holanda, onde, diz, “são raríssimos os casos de mulheres que têm a proteção social e que estão inscritas, porque o plano é sempre a saída.”

“Não são as holandesas que estão nas montras – muitas das mulheres que lá estão são estrangeiras, senão a grande maioria. As holandesas não se quiseram regulamentar. E não se pense que é por se legalizar que se retira o estigma. Na Alemanha e na Holanda não deixou de ser estigmatizador prostituir-se.”

Conceição critica também o facto de apenas se acenar com direitos, quando se fala de legalização, mas de se omitir que com ela também vêm deveres, taxas e impostos. “Se calhar em vez de as mulheres irem com 10 [clientes] iam com 15, a 10 euros cada um, que é o que existe aí.”

A assistente social recorda também que Portugal já teve um sistema regulamentarista que para efeitos de saúde pública obrigava apenas as mulheres que se prostituíam, que tinham uma matrícula, a rastreios, isentando os homens desse controlo. “Logo aqui, havia uma grande discriminação: os homens podiam ter doenças e transmitiam-nas às mulheres”.

Conceição Mendes cita também estudos dessa altura, onde médicos afirmavam que “nunca a sífilis tinha crescido tanto” como nesse período, e realça o facto de, nessa fase, coexistirem com as casas legalizadas um número de bordéis ilegais, com menores de idade a prostituirem-se. “Não se conseguia ter o controlo”.

Mas os tempos são outros e um modelo de regulamentação feito para o século XXI poderia trazer uma fiscalização mais eficaz desses estabelecimentos. Conceição Mendes não contempla essa possibilidade: “Já tivemos esse regime em Portugal, não resultou.”
Tráfico e prostituição

Da mesma forma que O Ninho não vê na legalização uma forma de dar às mulheres que se prostituem mais direitos sociais e laborais – até porque não equipara a prostituição a um trabalho –, também não o vê como um meio mais eficaz que o atual para combater o tráfico, pelo contrário. Para a associação, os dois universos caminham relacionados e a regulamentação torna mais difícil a sua separação. 

Os países onde ela já está aplicada são de novo a prova disso mesmo. “Neste momento, o Estado holandês está a querer recuar, e está a ser muito difícil com o proxenetismo organizado, que ganha milhões com isto. São associações criminosas que vivem não só das mulheres que têm nas montras, como do tráfico de armas e do tráfico de droga. São as mesmas que traficam as mulheres e trazem as mulheres.”

A linha que separa tráfico de prostituição torna-se ainda mais ténue se se entender o primeiro para lá da sua configuração legal. “É mais fácil traficar mulheres do que traficar droga, porque as mulheres muitas vezes vêm pelo seu próprio pé, a quererem fugir à pobreza nos seus países, a que dê tudo certo e que ninguém seja apanhado”, afirma.

Segundo a assistente social, muitas sabem que se vão prostituir, mas desconhecem quase sempre as condições, deixando-se frequentemente enredar em esquemas dos quais não conseguem sair facilmente. “Não fazem ideia de que quando lhes tratam dos documentos, quando lhes pagam a passagem, isso pode ascender aos 50, 60 mil euros, quando na realidade custou 1000 ou 2000. Algumas contaram-me: “Eu até sabia que me vinha prostituir, o que eu não sabia é que ia ficar agarrada a uma dívida anos e anos”.

A essas dívidas somam-se muitas vezes a retenção do passaporte pelo proxeneta, ameaças à família que ficou no país de origem, dependência económica desta em relação ao dinheiro que elas lhes conseguem enviar prostituindo-se ou vergonha da situação em que se encontram, dificuldades linguísticas e desconhecimento do país de destino e medo da polícia. 

Tudo isso são formas de manter as mulheres presas à prostituição, considera Conceição Mendes, mesmo que do ponto de vista legal não se chame de tráfico. “As pessoas pensam que elas estão ali amarradas, que lhes tiram tudo. Não quer dizer que não haja essas situações, que há, e aí toda a gente é consensual em dizer que isso é escravatura, que é violentíssimo. Estou a falar de outras situações.”

A linha que separa tráfico de prostituição torna-se ainda mais ténue se se entender o primeiro para lá da sua configuração legal. “É mais fácil traficar mulheres do que traficar droga, porque as mulheres muitas vezes vêm pelo seu próprio pé, a quererem fugir à pobreza nos seus países, a que dê tudo certo e que ninguém seja apanhado”


Ao Ninho chegam algumas mulheres que vieram para o país naquelas circunstâncias. Procuram a associação depois de pagarem a dívida, caso contrário têm medo de sair. As diferentes circunstâncias somadas levam Conceição a concluir que “só existe tráfico para a prostituição, porque há prostituição”. “Nós achamos que não há prostituição livre, sempre fomos contra essa distinção: prostituição forçada vs prostituição livre.”
Em 33 anos de trabalho n’O Ninho, Conceição Mendes já acompanhou cerca de sete mil mulheres. “Prostitutas de rua, de casas, de hóteis, mulheres que se prostituíram em bares muito conhecidos, como o Ritz, e noutros mais modernos, que entretanto fecharam, como o Elefante Branco ou o Night and Day.”

Diz que nunca nenhuma lhe disse que se gostava de prostituir, nem que era isso que queria fazer da vida, mas rejeita que a realidade que O Ninho conhece seja unicamente a das mulheres que querem sair da prostituição.

“Temos um centro de atendimento e trabalho no meio prostitucional. Mandamos mensalmente mensagens para todos os anúncios que estão no jornal e temos um grande conhecimento do que se passa por trás daquilo. O Ninho não apoia só mulheres que estão já numa situação de mudança, apoia mulheres que começam a vir ter connosco.” 

Conceição Mendes explica que se trata de um trabalho demorado, que é preciso ganhar confiança e que haja uma consciencialização das próprias mulheres em relação à situação em que se encontram. “Muitas ficaram com o nosso número de telefone durante dez anos. E ao fim desses anos é que vieram pedir ajuda. Mantiveram-se na prostituição, durante esses anos todos. Nós também acompanhamos mulheres que ainda estão na prostituição.”

As mulheres que O Ninho ajuda a deixarem a prostituição ficam a ganhar 570 euros por mês, pouco mais do ordenado mínimo. 
Uma opção pouco sedutora para quem consegue ganhar esse valor em duas noites. A associação reconhece que não é fácil, mas tenta ser uma alternativa real e compensar os baixos ordenados com outros apoios sociais e institucionais. 
Tirando situações pontuais de regresso à antiga atividade, “todas estão a trabalhar nos jardins e nenhuma se prostitui.” “Muitas vezes, as mulheres que estão na prostituição não têm consciência das suas capacidades, das sua potencialidades, não vislumbram saídas. Há todo um trabalho que é feito com as pessoas para que isso realmente aconteça.” 

Um trabalho feito sem pressas, com apoio psicoterapêutico, que em muitos casos faz com que as mulheres passem um ou dois anos em casas da instituição.

Entre as que pediram ajuda ao Ninho, há também as que se prostituíam por conta própria, que o faziam “para alimentar os filhos e que nunca tiveram um chulo a ficar com o dinheiro”, conta a assistente social. O que nunca houve, garante, foi mulheres “que gostavam que aquilo fosse a sua profissão e de ter contrato”. 

Aos que dizem que conhecem outras realidades e que a população que se prostitui é muito mais heterogénea que a retratada pel’O Ninho, Conceição responde, desafiando-os a revelarem-se. “Gostava de conhecer essas mulheres que, por exemplo, o Porto G diz que conhece, que estão na prostituição. Eles vão aos sítios entregar preservativos, nós estamos aqui com as mulheres, das 9h às 17h30, depois elas vão para o lar, até às 23h estão lá técnicos”.

A assistente social afirma que são poucas e sempre as mesmas as pessoas que se assumem como prostitutas a dar a cara pela regulamentação e pergunta onde estão as organizações de prostitutas que a defendem. “Eu gostava que essas organizações fizessem aquilo que dizem: um coletivo de mulheres. 

Nós conhecemos muitas mulheres, não conheço mulheres que me digam que querem entrar nesse esquema de tratar, legalizar, de ser uma profissão, ter descontos. O Ninho vai ser sempre contra criar-se um sistema onde pessoas que estão nesta situação e não queiram ser conotadas com ela sejam obrigadas a inscrever-se.”

“Não há uma única causa que leve à prostituição. É um conjunto que inclui causas emocionais, psicológicas, vivências que tiveram na infância ou na adolescência, que levam a que aceitem para si próprias uma violência que é a prostituição”


Trabalho sexual vs prostituição

Se O Ninho evita as expressões trabalho sexual e prestação de serviços sexuais, por não considerar a prostituição uma atividade laboral, mas sim uma violência sobre as mulheres e o corpo, a definição de que é um trabalho como outro qualquer é completamente rejeitada pela associação. “É completamente incomparável. Estamos a falar da intimidade, dos afetos, dos sentimentos e do que isso causa internamente às pessoas.”

Por outro lado, Conceição Mendes critica o facto de se incluir na classificação de trabalho sexual várias atividades diferentes, que não implicam nenhuma prática desse cariz. “Para mim não me faz sentido nenhum comparar uma rapariga que está a um balcão de uma sexshop a uma rapariga que se está a prostituir. Nem as strippers, sequer. É diferente.”

Opção vs circunstância

As questões económicas são apontadas, pelos dois lados da discussão, como uma das principais razões que levam as mulheres a prostituir-se, mas segundo O Ninho os motivos são mais complexos. “Não há uma única causa que leve à prostituição. É um conjunto que inclui causas emocionais, psicológicas, vivências que tiveram na infância ou na adolescência, que levam a que aceitem para si próprias uma violência que é a prostituição.” Isso faz, segundo a assistente social, que cita estudos e os relatórios das psicólogas que trabalham com a associação, com que muitas delas encarem esse situação como “uma continuidade da violência por que passaram ao longo da vida.”

Conceição Mendes nega que O Ninho trace um perfil de vítima a todas as mulheres que se prostituem, mas dos que conhece são poucos os que sobrevivem ao retrato glamourizado das primeiras histórias contadas. “Elas vão conversando connosco e passado um mês notamos que a história já está quase toda mudada. Já nos dizem que no meio de 100 clientes, um não as tratava com desrespeito, quando no início até nos falam só das situações que não lhes causaram trauma e que não foram violentas.”

Liberdade do corpo vs moralismo

Conceição adivinha muitas das perguntas e dos contra-argumentos antes de os apresentarmos e antecipa outra das divergências apontadas por quem defende a regulamentação: a de que na base do abolicionismo estão considerações morais, que ignoram o direito à liberdade sexual de quem se prostitui. “Nós não temos um corpo, nós somos um corpo, biopsicossocial. Isto é a pessoa ser utilizada como um objeto de usar e deitar fora, nem sequer se quer saber se daquela relação pode nascer um filho.”

Por outro lado, questiona como se pode falar em liberdade do corpo quando quem se prostitui faz o que o cliente lhe paga para fazer. “Quando se fala de violência [na prostituição] é o ato de ser penetrada 10, 12, 15 vezes por dia. Para mim, isso constitui uma violência. Logo de fundo. Com pessoas que não se conhece de lado nenhum, de quem se sente nojo.” Sobre os estudos que apontam que o modelo sueco, com a criminalização do cliente, trouxe ainda mais violência a um ato que por si só já considera violento, Conceição Mendes diz serem “estranhos”, precisamente por ser o cliente quem é penalizado, e não a prostituta.

Elas vão conversando connosco e passado um mês notamos que a história já está quase toda mudada. Já nos dizem que no meio de 100 clientes, um não as tratava com desrespeito, quando no início até nos falam só das situações que não lhes causaram trauma e que não foram violentas.”


A assistente social prefere salientar trabalho de mudança de mentalidades e de igualdade de género que produziu ao longo de gerações. “Tanto que houve um referendo sobre esta lei da criminalização do cliente e mais de 70% da população sueca votou a favor”, exemplifica. Conceição Mendes defende que o modelo sueco também atuou numa perspetiva pedagógica, procurando perceber o que levava um homem a pagar para ter sexo e desmontando a crença da existência de um desejo irreprimível no sexo masculino face ao feminino.

Já em relação ao modelo neo-zelandês, apontado como o melhor entre os que aderiram ao sistema regulamentarista, a assistente social argumenta com as mesmas armas, referindo estudos que estão a ser realizados e cujas conclusões são diferentes das veiculadas pelos defensores da legalização da prostituição.

Com estudos e dados para todos os gostos e lados da discussão, e sem estatísticas e números oficiais, a prostituição é vista e analisada ora como fenómeno, ora como atividade ou trabalho. 

O Ninho aponta a necessidade de definir conceitos e aponta o seu. “Como IPSS lutamos para que a prostituição, como problema social, desapareça. 
O conceito de problema social é: abrange um grande número de pessoas, é sentido por essas pessoas como causador de infelicidade e sofrimento e é suscetível de resolução. Portanto, se eu partir deste conceito, se calhar todas as pessoas que o Porto G acompanha, que gostam de se prostituir, não estão dentro do conceito de problema social.”

Mas essas não são, para a associação, a maioria, e seria errado que se partisse daí a criação de um novo enquadramento. “Não se deve por causa de umas quantas pessoas, que querem que seja considerado um trabalho, criar leis e modelos que vão banalizar uma situação que uma maioria não quer”, conclui Conceição Mendes.



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