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O próprio Papa pode vir a ser alvo de críticas, uma vez que um dos principais acusados, o padre legionário mexicano Fernando Martinez Suárez, vive em Roma desde 2016 e tem conseguido evitar os tribunais, cíveis e eclesiásticos.
O Vaticano anunciou há uma semana que lhe retirou o estado clerical - implicando que o sacerdote não pode exercer publicamente o seu ministério sem ter sido expulso da Legião e mantendo-se implicitamente ao serviço da Igreja.
A proibição aplicada a Martínez foi decidida pela Congregação para a Doutrina da Fé e parece insuficiente face aos crimes cometidos, contrariando a política decretada por Francisco, de "tolerância zero" para com os abusos e os abusadores e para quem os esconda.
A decisão está a indignar as vítimas de Martinez.
Este reconhece ter abusado sexualmente de meninas entre os seis e os nove anos de idade durante a década de 90.
As revelações dos últimos meses mostram que o legado sinistro de crimes e de abusos deixado pelo fundador da congregação, Marcial Maciel, e que quase a levou ao fundo há dez anos, deixou raízes profundas e abrangentes entre os Legionários, logo desde a fundação, em 1941.
Em dezembro passado, um relatório da Legião identificou 33 sacerdotes e 71 seminaristas que abusaram sexualmente de menores de idade ao longo de oito décadas. Um terço destes, incluindo Martinez, foram eles próprios vítimas de Maciel e da cumplicidade dos responsáveis da congregação, numa série de "abusos em cadeia", como se lhe referiu o documento.
São estes que ameaçam agora uma das mais poderosas instituições católicas mexicanas, que durante anos fundou e administrou colégios frequentados pelos filhos das famílias mais ricas e influentes. Ligações ao poder, alimentadas por Maciel, que funcionavam como uma mordaça.
As revelações têm sido amplamente difundidas no México e países circundantes e os pedidos para o desparecimento da poderosa ordem religiosa, presente em vários países do mundo, têm-se multiplicado.
A resposta era falar
O escândalo rebentou há oito meses e abrange o início da década de 90. Testemunhos referem abusos cometidos sobre meninas entre os seis e os oito ou nove anos, no Instituto Cumbres, uma escola de elite da cidade de Cancún, no sudeste mexicano.
A primeira denúncia dos casos surgiu em maio, num grupo de Facebook, Legioleaks, que agrega vítimas dos crimes de Maciel e da congregação.
A apresentadora de televisão e mãe de três crianças, Ana Lucía de Salazar, resolveu falar após anos de angústia, após o nascimento do seu terceiro filho, uma menina.
De acordo com o seu testemunho, quando tinha oito anos, via a administradora da escola ir às salas de aula chamar meninas para irem à capela confessar-se ao padre Martinez. Era aí que decorriam os abusos.
"Enquanto umas liam a Bíblia, ele violava as outras à frente delas, miúdas pequeninas de seis, oito ou nove anos", conta Salazar, agora com 36 anos. "Depois, nada era o mesmo, nada mais voltava a ser como antes", recordou entre lágrimas, na Cidade do México, onde agora vive.
"Estava a brincar aos pulos na cama dos meus pais e comecei a falar". A mãe ficou atónita ao ouvi-la dizer que "ele me levantava o vestido, afagava a minha roupa interior, me punha as mãos no corpo, me sentava ao colo enquanto punha a mão entre as minhas pernas e se masturbava comigo em cima", lembra Salazar.
Apesar das queixas, Martinez só foi afastado seis meses depois, quando o escândalo ameaçou vir a público, depois de uma professora de inglês e de a mãe de outra das alunas denunciaram às autoridades da congregação e ao superior do padre Fernando o que as meninas lhes tinham contado.
A professora, Beatriz Sánchez, reparou que algo se passava quando viu uma das meninas mais velhas a entrar e a sair da casa de banho. Lá dentro, um pequeno grupo de alunas chorava e consolava-se. "Quando me aproximei, ela disse-me, miss, o padre está a faze-lo cada vez mais às mais pequeninas e não queremos que isso lhes aconteça, por favor, ajude-nos".
Apesar das queixas, Martinez só foi afastado seis meses depois, quando o escândalo ameaçou vir a público, depois de uma professora de inglês e de a mãe de outra das alunas denunciaram às autoridades da congregação e ao superior do padre Fernando o que as meninas lhes tinham contado.
A professora, Beatriz Sánchez, reparou que algo se passava quando viu uma das meninas mais velhas a entrar e a sair da casa de banho. Lá dentro, um pequeno grupo de alunas chorava e consolava-se. "Quando me aproximei, ela disse-me, miss, o padre está a faze-lo cada vez mais às mais pequeninas e não queremos que isso lhes aconteça, por favor, ajude-nos".
Não disseram mais nada e Sanchez, agora com 63 anos, instou-as a escrever-lhe uma carta e a outra professora. Levou contudo o caso perante o superior de Fernando Martínez. Foi de imediato despedida.
Um segredo
Uma das vítimas, Biani López-Antúnez, seguiu a sugestão da miss e escreveu uma carta, na qual acusava claramente o sacerdote Fernando Martínez - missiva que, contudo, só agora foi revelada. À carta, datada de 14 de maio de 1993, seguia-se um post scriptum revelador do medo suscitado pela denúncia: "é um segredo entre miss Lorena e eu".
A menina acabou por contar à mãe, Irma Hassey, o que se passava, sem dar muitos detalhes. Esta não quis fazer muitas perguntas mas percebeu o suficiente para pedir uma reunião urgente com o superior dos Legionários, que a visitou em casa logo no dia seguinte, pedindo perdão, implorando silêncio e prometendo levar Martinez de Cancún no dia seguinte.
O responsável perguntou-lhe ainda por uma carta, algo que Hassey desconhecia até então. "Percebi logo que estava interessado em saber se existiam documentos escritos como provas", sublinha agora.
O alcance da hipocrisia só o percebeu, contudo, mais de 25 anos depois, quando a gravidade dos abusos e da quantidade de meninas envolvidas ficou patente nos recentes testemunhos.
Hassey ouviu a sua filha e outra aluna, Belén Márquez, admitirem pela primeira vez, em conferência de imprensa, que tinham sofrido as agressões, prolongadas e graduais, entre os oito e os dez anos e que tinham sido obrigadas a ver os abusos das outras alunas. Hoje, envergonha-se de ter aceitado as desculpas do superior de Martinez e o pacto de silêncio.
Já Martinez foi transferido para um seminário em Espanha sem que nada mais lhe sucedesse. Nem sequer depois da congregação passar para a alçada do Vaticano e de De Paolis. O cardeal soube, entre 2011 e 2013, da denúncia dos Salazar, quando lhe foi pedido para tomar medidas, já que nunca se tinha realizado uma investigação adequada.
De Paolis preferiu não fazer nada, já que, aparentemente, não havia outros casos. O prelado negou-se sempre a exigir responsabilidades aos superiores da congregação, cúmplices dos crimes de Maciel.
Um ex-sacerdote legionário, Christian Borgogno, co-fundador do Legioleaks, diz que "de Paolis disse explicitamente que não haveria uma caixa às bruxas e a consequência foi que os abusos e o seu encobrimento permanceram sem castigo".
A decisão de De Paolis de manter nos seus cargos os superiores da Legião, muitos dos quais próximos de Maciel, "tornou impossível" a reforma pretendida pelo Vaticano, acrescenta Borgogno. "A única forma era favorecer os líderes carismáticos e eles viram-se mesmo reprimidos", acusa.
Bispos denunciam
Bispos denunciam
Em contracorrente, a conferência episcopal mexicana quebrou o silêncio sobre a Legião, para denunciar os abusos agora revelados e o fracasso da congregação em "providenciar um ato de justiça e de reparação para as vítimas", mesmo após reconhecer os crimes, prometer mais transparência e aplicar novas políticas de proteção de menores.
Em Monterrey, um bastião dos Legionários, o arcebispo denunciou "o silêncio criminoso" do grupo e o tratamento das vítimas, liderando apelos dos bispos para o fim do período de prescrição nos casos de abusos sexual de menores.
Mesmo o atual núncio apostólico para o México, Franco Coppola, rompeu a habitual discrição diplomática da Santa Sé, para criticar publicamente a forma como a Legião lidou com os casos, apelando ao Vaticano para investigar a "rede de encobrimento" atrás dela.
Coppola ecoou igualmente os pedidos das vítimas e da arquidiocese para os superiores da Legião implicados no encobrimento se afastarem das suas funções de responsabilidade, como um "grande gesto de humildade", que até agora não foi aceite.
O porta-voz da congregação, o reverendo Aaron Smith, diz que esta não pode pedir aos sacerdotes que se afastem, mas que estes poderão faze-lo se assim o quiserem. Defende ainda que, após as reformas, os mecanismos de vigilância e de proteção aplicados aos menores tornam quase impossível uma repetição dos abusos.
Robles Gil reencaminhou também à apresentadora uma carta de Martínez, na qual este lhe implorou perdão pelos danos causados, descrevendo o seu comportamento como "faltas" e carícias "que Deus não abençoa" como fruto de uma "sexualidade descontrolada".
Ana Lucía reagiu com indignação ao tom das cartas, assim como ao que considera uma decisão da Congregação para a Doutrina da Fé aquém do merecido por Martínez. "Foi humilhante, asqueroso", classificou.
"O Papa decidiu que o senhor continua nas fileiras da Igreja depois de violar crianças", escreveu na rede Twitter. "Eis a tolerância zero!".
"O que eu quero é que o Papa seja radical. Só há uma posição, a favor das crianças violadas", afirmou, sublinhando que não se pode apoiar uma congregação que resguarda "meliantes, delinquentes, violadores, cúmplices e vitimadores".
"A Legião de Cristo não tem razões para existir. E como desarticular um cartel, tem de se lhe arrancar a cabeça, desmantelá-lo", recomendou.
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