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A imagem como testemunho do indizível - C& AMÉRICA LATINA
por Nicolás Vizcaíno Sánchez
Nas paredes em ruínas de uma pequena cela do que um dia foi a plantation de Annaberg, em Saint John, estão desenhados um barco veleiro e um prédio.
A dupla de desenhos foi feita provavelmente por uma mulher negra escravizada, como Vênus, condenada ali à prisão ao ser acusada de conduta rebelde e criminosa na colônia dinamarquesa da ilha caribenha de Saint John. Através de um censo realizado na plantation em 1835, sabemos que Vênus foi sentenciada a cem açoites com vara de tamarindo e à prisão por dois meses.
Graças à transformação da plantation das Ilhas Virgens em parque arqueológico, podemos ter uma ideia do espaço em que tais fatos ocorreram. E talvez graças aos desenhos no calabouço entendamos o que essa mulher assim como outras inúmeras pessoas escravizadas experimentaram durante esse tempo de pesadelos. A imagem como testemunho do indizível.
Refletir hoje sobre as imagens históricas da escravidão é uma tarefa urgente para combater a onda incessante de representações racistas abundantes nestes tempos reacionários e de hipervisualidade. Daí a importância da página Slavery Images [Imagens da Escravidão] (slaveryimages.org), um arquivo de fontes visuais sobre o tráfico escravista e a vida de pessoas africanas e seus descendentes no continente americano.
O projeto surgiu no final da década de 1980 na Universidade do Sul do Illinois (Southern Illinois University), nos Estados Unidos, onde o professor de Antropologia Jerome Handler reuniu uma série de imagens para acompanhar um curso sobre o cotidiano dos escravizados da Diáspora africana. Esse primeiro conjunto de slides tornou-se o núcleo do arquivo.
Em 1997, na Fundação para as Ciências Humanas (Virginia Humanities), também nos EUA, o professor Handler encontrou Michel Tuite, o qual à frente do laboratório de mídias digitais encarregou-se dali em diante dos aspectos técnicos do projeto, que no ano 2000 já consistia numa página web.
Slavery Images migrou para o domínio da Universidade do Colorado em Boulder e com múltiplas alianças e parceiros hoje abrange 1280 imagens classificadas em 18 categorias que privilegiam as ilustrações produzidas por testemunhas oculares (em sua maioria europeias) da época. O arquivo, hoje coordenado por Henry Lovejoy (especialista em Humanidades Digitais e também criador do arquivo Liberated Africans), apresenta referências bibliográficas e breves descrições, metadados que permitem rastrear as fontes e saber um pouco mais sobre o significado da imagens.
Quero examinar brevemente a versatilidade de Slavery Imagens através de uma seleção diversa de imagens bastante singulares: um retrato neoclássico de um revolucionário negro; um modelo inumano do transporte pela chamada “Passagem do meio” (o transporte transatlântico de africanos escravizados ao “Novo Mundo”); uma aquarela bucólica na Jamaica; e o retrato de duas vendedoras ambulantes no Brasil.
A dupla de desenhos foi feita provavelmente por uma mulher negra escravizada, como Vênus, condenada ali à prisão ao ser acusada de conduta rebelde e criminosa na colônia dinamarquesa da ilha caribenha de Saint John. Através de um censo realizado na plantation em 1835, sabemos que Vênus foi sentenciada a cem açoites com vara de tamarindo e à prisão por dois meses.
Graças à transformação da plantation das Ilhas Virgens em parque arqueológico, podemos ter uma ideia do espaço em que tais fatos ocorreram. E talvez graças aos desenhos no calabouço entendamos o que essa mulher assim como outras inúmeras pessoas escravizadas experimentaram durante esse tempo de pesadelos. A imagem como testemunho do indizível.
Refletir hoje sobre as imagens históricas da escravidão é uma tarefa urgente para combater a onda incessante de representações racistas abundantes nestes tempos reacionários e de hipervisualidade. Daí a importância da página Slavery Images [Imagens da Escravidão] (slaveryimages.org), um arquivo de fontes visuais sobre o tráfico escravista e a vida de pessoas africanas e seus descendentes no continente americano.
O projeto surgiu no final da década de 1980 na Universidade do Sul do Illinois (Southern Illinois University), nos Estados Unidos, onde o professor de Antropologia Jerome Handler reuniu uma série de imagens para acompanhar um curso sobre o cotidiano dos escravizados da Diáspora africana. Esse primeiro conjunto de slides tornou-se o núcleo do arquivo.
Em 1997, na Fundação para as Ciências Humanas (Virginia Humanities), também nos EUA, o professor Handler encontrou Michel Tuite, o qual à frente do laboratório de mídias digitais encarregou-se dali em diante dos aspectos técnicos do projeto, que no ano 2000 já consistia numa página web.
Slavery Images migrou para o domínio da Universidade do Colorado em Boulder e com múltiplas alianças e parceiros hoje abrange 1280 imagens classificadas em 18 categorias que privilegiam as ilustrações produzidas por testemunhas oculares (em sua maioria europeias) da época. O arquivo, hoje coordenado por Henry Lovejoy (especialista em Humanidades Digitais e também criador do arquivo Liberated Africans), apresenta referências bibliográficas e breves descrições, metadados que permitem rastrear as fontes e saber um pouco mais sobre o significado da imagens.
Quero examinar brevemente a versatilidade de Slavery Imagens através de uma seleção diversa de imagens bastante singulares: um retrato neoclássico de um revolucionário negro; um modelo inumano do transporte pela chamada “Passagem do meio” (o transporte transatlântico de africanos escravizados ao “Novo Mundo”); uma aquarela bucólica na Jamaica; e o retrato de duas vendedoras ambulantes no Brasil.
Anne-Louis Girodet, Jean-Baptiste Belley, Ilha de São Domingos (Haiti), 1797 ou 1798, em: Slavery Images: A Visual Record of the African Slave Trade and Slave Life in the Early African Diaspora, NW0225, metadados por Jerome Handler e Michel Tuite, 2019.
O primeiro deputado de origem africana na França foi Jean-Baptiste Belley, nascido no Senegal e escravizado na Ilha de Gorée quando tinha dois anos. Nesse óleo sobre tela ele aparece descontraído, vestido como um membro da Convenção Nacional após o triunfo da Revolução Francesa.
O busto sobre o qual repousa seu cotovelo é o do filósofo Guillaume Thomas Raynal, o qual foi partidário da abolição da escravidão, assim como outras figuras mais conhecidas do pensamento iluminista francês, que, entretanto, o filósofo contemporâneo Louis Sala-Molins (Dark Side of the Light: Slavery and the French Enlightenment [O lado escuro da luz: escravidão e o Iluminismo francês], 2006) acusa com razão de ser cúmplices do tráfico transatlântico nas colônias francesas ultramarinas.
Jean Boudriot, Sleeping Positions of Captive Africans on the French Slave Ship Aurore [Posições para dormir de africanos cativos a bordo do navio negreiro francês Aurora], 1784, em: Slavery Images: A Visual Record of the African Slave Trade and Slave Life in the Early African Diaspora, Imagem E010, metadados por Jerome Handler e Michel Tuite, 2019.
Em 1984 o arquiteto Jean Boudriot realizou esse desenho das posições em que provavelmente viajaram os africanos escravizados a bordo do navio francês Aurora. É uma interpretação visual a partir dos cálculos de carga declarada do navio proveniente de Nantes que, em 1784, da costa do reino de Loango (hoje Angola), transportou como prisioneiros aproximadamente 600 homens, mulheres e crianças até Santo Domingo, na atual República Dominicana.
O desenho de Boudriot não é simplesmente uma abstração plástica: com base em valores deste tipo é que se tem calculado de fato a demografia do tráfico escravista na América.
William Berryman, Pounding Cassava [Pilando mandioca], Jamaica, 1808-1815, em: Slavery Images: A Visual Record of the African Slave Trade and Slave Life in the Early African Diaspora, Berryman128, metadatos por Jerome Handler e Michael Tuite, 2019.
Os pilões para macerar espécies como a mandioca, o sorgo, o milho e principalmente o arroz são parte da cultura material afro-americana. Junto com os cestos e balaios de fibra vegetal, essas peças de madeira aparecem no instrumental agrícola tanto na América continental e no Caribe quanto na costa africana ocidental.
Nessa aquarela do artista britânico William Berryman observa-se um tipo de pilão e de balaios encontrados na Jamaica, comparáveis àqueles desenhados também no século 19 em Serra Leoa, na Nigéria ou no Senegal. Diferente de outras cenas de trabalho doméstico escravo, essa imagem captura um momento incomum de solidão.
Carlos Julião, Market Woman or Hawkers [Vendedoras de rua], Rio de Janeiro, Brasil, c. 1770, em: Slavery Images: A Visual Record of the African Slave Trade and Slave Life in the Early African Diaspora, juliao09, metadatos por Jerome Handler e Michael Tuite, 2019.
Além das roupas coloridas com que estão vestidas essas mulheres, do cachorro à espreita entre elas, dos dois filhos nas costas e das respectivas mercadorias que levam sobre a cabeça, chama a atenção na mulher à direita o cachimbo, a tatuagem no dorso da mão, as bolsas na cintura e sobretudo a bolsa de mandinga pendurada sobre seu peito.
Esses amuletos normalmente contêm substâncias poderosas do mundo natural: folhas, cabelo, dentes, pós etc. Cada bolsa tem seu poder. Durante o século 17 o tribunal católico da Inquisição perseguiu e condenou quem as fabricava, mulheres negras iniciadas nas artes do bem-querer acusadas de feiticeiras.
Nicolás Vizcaíno Sánchez, conforme o caso: artista, escritor, curador, cientista político e/ou historiador em formação, vive na Colômbia.
Traduzido do espanhol por Luiz Rangel.
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