É exemplar único, em valor, aparato e luxo, mas não foi feita para dormir. Até se conhecer o “leito Cadaval”, este tipo de camas era como uma ave rara, que se sabia existir, mas nunca tinha sido vista. Que segredos contaria?
Se esta cama falasse contaria sobretudo histórias de morte, também de nascimento e, claro, segredaria episódios de sexo. Porque esta, ao contrário das outras peças de mobiliário da sua categoria, não foi feita para dormir.
É o mais extraordinário leito existente em solo nacional. Andou esquecido e desmantelado durante décadas na posse de pelo menos seis donos diferentes e foi finalmente resgatado e devolvido ao antigo esplendor.
Semelhante em luxo e aparato, apenas a uma outra cama também de origem portuguesa, mas patente em terras de Espanha*.
A “nossa” tem a melhor das proveniências, pois pertenceu até aos anos 50 do século XX à ilustre Casa Cadaval. Sobreviveu ao exílio de duas gerações que os seus proprietários cumpriram após a vitória liberal de 1834; ao desaparecimento do palácio onde estava armazenada, vítima das obras da Grande Exposição do Mundo Português, e à transferência para outro palácio da família, em Sintra.
A falta de liquidez fez com que fosse parar às mãos do colecionador açoriano Augusto de Athayde, que a ofereceu à mulher.
Apesar de inicialmente detestar a espalhafatosa cama, em especial as carantonhas, que pareciam observá-la chorando nos intrincados adornos, acabou por ser a única pessoa em três séculos (a cama é do século XVII) que se sabe tê-la usado para dormir.
Mal sabia Maria da Graça Athayde que o denominado “leito Cadaval” tinha sido criado para outros fins, nomeadamente para expor insignes mortos durante as cerimónias fúnebres, como aconteceu com o corpo do pobre D. Afonso VI (ver à Margem).
Era uma verdadeira cama de Estado, destinada a outras atividades importantes, como a consumação de um casamento para selar a união de duas importantes famílias, ou o ainda mais importante nascimento de um ansiado herdeiro.
Servia, igualmente, para ser apreciada, como símbolo de poder e estatuto social, ao muito seleto grupo com autorização para penetrar em íntimos aposentos.
Novas dificuldades financeiras fizeram os Athayde perder o vistoso ninho, que voltou a andar de mão em mão, entre negociantes de antiguidades, deslumbrando, mas não logrando encontrar comprador devidamente encantado e endinheirado.
Para tal desígnio tentou-se aliciar fundações, mecenas ou museus suficientemente abonados, mas só em 2016, foi possível chegar a um acordo, por 360 mil euros.
Seguiram-se 13 meses de restauro que se revelaram extremamente desafiantes**.
O “leito Cadaval” tinha sido montado e desmontado vezes sem conta, frequentemente sem os devidos cuidados e método.
Daí, que o primeiro passo fosse desagrupar totalmente as suas 1700 peças, que incluem dez tipos de pregos, seis qualidades de madeira - com predominância de pau-preto moçambicano - para além dos extravagantes ornamentos em prata e cobre.
Todos os fragmentos deste intrincado puzzle com 145 quilos – ainda por cima sem instruções, usando apenas fotografias antigas como guia – foram cuidadosamente limpos, restaurados, retificados e, finalmente, montados.
Embora se tenha ficado a conhecer intimamente esta peça de mobiliário extraordinária pela riqueza e qualidade que ostenta, muito pouco continua a ser conhecido sobre a sua origem, quem a encomendou, construiu ou estreou e que satisfações e prazeres obteve do uso da mesma.
O resultado de tão minucioso trabalho pode, no entanto, ser agora apreciado no Palácio Nacional de Sintra, onde o “leito Cadaval” assume um natural papel de destaque.
À Margem
Até esta peça de mobiliário ter sido identificada em 1953, as camas de aparato, misto de peça de mobiliário e joia, eram em Portugal uma espécie aves raras. Sabia-se que existiam, pelos relatos escritos, mas nunca se tinha visto nenhuma.
Documentação da época dá conta, aliás, da utilização de uma destas estruturas nas cerimónias fúnebres de D. Afonso VI, ocorridas em setembro de 1683, a poucos passos da sala onde hoje se pode apreciar – à distância, é certo – o leito de prata que pertenceu aos duques de Cadaval.
Foi ali mesmo, no então Paço Real de Sintra, nas salas das Pegas e dos Cisnes – assim denominadas por terem estes animais profusamente pintados nos tetos.
São espaços amplos e suficientemente desafogados para acolher os que acorreram para ver pela última vez o monarca afastado do trono pelo ambicioso irmão, o nosso rei D. Pedro II.
São espaços bem diferentes dos exíguos aposentos onde D. Afonso VI (na imagem) passou os últimos nove anos da sua vida, apenas saindo para assistir à missa na capela contígua.
A cuidadosa e demorada exposição dos seus restos mortais em tão luxuoso féretro seria para que não restassem dúvidas sobre o seu fim, que permitiria a D. Pedro finalmente ascender ao trono?
Durante o longo período de cárcere, D. Afonso VI era escrupulosamente vigiado por homens de confiança de Nuno Álvares Pereira de Melo, precisamente o 1º Duque de Cadaval, figura-chave da nova ordem instituída após a Restauração, de 1640.
Este importante fidalgo foi crucial na tomada do poder por parte de D. Pedro II. Foi também ele o responsável pelo processo de anulação do casamento de D. Afonso VI com D. Maria Francisca de Saboia (na imagem), para que esta pudesse ficar livre para casar com o cunhado. Vários foram os que atestaram a incapacidade do rei par consumar uma relação sexual.
Mas isso é outra história…
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*Está na Basílica de Santa Maria de Elche, em Alicante. Foi doado pelo 7.º Duque de Aveiro, Gabriel Ponce de León e Lencastre (1667 – 1745).
** O trabalho de restauro foi levado a cabo pela Archeofactu.
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Fontes
Coleções em foco – Palácio Nacional de Sintra – O leito de prata dos Duques de Cadaval; textos de Celina Bastos, Maria João Ferreira, Joan Castaño Garcia, Teresa Leonor M. Vale, Hugo Xavier, Manuel Lemos, Maria João Petisca, Isabel Tissot e Mathias Tissot; Parques de Sintra Monte da Lua - março 2020. Disponível em:
O leito de prata dos Duques de Cadaval - Parques e Monumentos de Sintra (parquesdesintra.pt)
“Leito Cadaval:” uma raridade nas colecções portuguesas | Património | PÚBLICO (publico.pt)
Texto de Lucinda Canelas com informação recolhida junto de Isabel Tissot, técnica da Archeofactu, empresa responsável pelo restauro e da Parques de Sintra-Monte da Lua.
A prisão de D. Afonso VI - Acontecimentos do Palácio Nacional de Sintra (parquesdesintra.pt)
Visita contextualizada ao Palácio Nacional de Sintra
Gabriel de Lencastre, Duque de Aveiro – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)
Imagems
Leito Cadaval
João Krull; Archeofactu, fotos da autora
Imagens captadas na Exposição patente no Palácio Nacional de Sintra:
Cerimónias fúnebres de Maria Luísa de Orleães, Rainha de Espanha – Óleo sobre tela de Sebastian Munôz - The Hispanic Society of America, New York; Cortesia do Museu
Maria Adelaide de Saboia após o nascimento do filho, em primeiro plano, apresentado ao bisavô, Luís XIV – gravura inserida no Almanach pour lán de gràce MDCCV – Coleção particular
- Afonso VI por Roque Gameiro - A TRIBO DOS PINCÉIS: Quadros da História de Portugal (1917), Domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=60013887
- Maria Francisca, por Jean Petitot - Royal Collection, Domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=61068177
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