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domingo, 17 de outubro de 2021

É dia de Feira-franca


 

Boa tarde amigos, há muito tempo que desejava fazer uma história revivendo um acontecimento muito importante para a população Ervedalense. Como se aproxima o dia desse grande acontecimento, aqui fica esta minha singela homenagem aos presentes e aos que partiram, mas continuam vivos na nossa memória e no coração. Gostaria de ilustrar a história com fotos autênticas, do período que menciono, mas como não as possuo, coloquei fotos publicadas recentemente pelos amigos Laura Grilo e Jacinto Leal, que simbolizam a feira no presente e outras retiradas do Google. Deixo o meu agradecimento aos amigos, por utilizar as suas fotos. Agradeço também à minha amiga Luísa Freire, as dicas que me facultou, que ajudaram a melhorar o texto.
É dia de Feira-franca;
Outubro iniciava, trazendo consigo os cheiros e sabores do Outono e o coração dos Ervedalenses, engalanava-se de imediato. Este, era o mês mais esperado do ano por adultos e crianças. Era neste mês, nos dias, 18, 19 e 20, que se realizava a feira anual da terra, a maior feira-franca do concelho. Durante três dias, a população da vila, estava em festa. Na época, era o único ponto de comércio existente. Aqui, podia adquirir-se toda a espécie de produtos. As famílias mais pobres juntavam as suas míseras economias ao longo de dez meses, para poderem comprar o que mais precisavam nesta feira. As crianças também amealhavam todos os magros tostões que recebiam como gratificação dos recados prestados aos vizinhos para comprarem uma gulodice ou dar uma voltinha de carrocel.
Eram ruas e ruas de barracas a perder de vista, onde se encontrava um pouquinho de tudo desde animais domésticos, ferramentas agrícolas e outras, artigos para o lar, produtos alimentares, vestuário, calçado bijutarias, brinquedos e quinquilharias.
Como se efetuava no Outono, na maior parte dos anos era uma feira molhada, como dizia o povo. Na localidade de Ponte de Sor, que dista alguns quilómetros, de Ervedal, a feira anual, realiza-se no início do mês de Outubro. Desde criança, sempre ouvi os habitantes da vila afirmarem, com grande convicção, de que, se chovesse na feira da Ponte, estaria bom tempo na nossa feira. Portanto, a feira da Ponte, era como que o boletim meteorológico para os Ervedalenses. Algumas vezes, o vaticínio dava certo.
O local escolhido para os feirantes fixarem as barracas e realizarem os respetivos negócios, era num terreno inculto, situado à entrada da vila, junto à estrada principal, apelidada por todos de Estrada Nova, ficava ao lado direito desta.
Este terreno era composto por uma grande percentagem de barro, o que significava que se chovesse alguns dias antes da realização da feira, ou na véspera, tornava-se quase impossível caminhar na lama.
Ao longo dos anos, aconteceu muitas vezes. Porém, a feira nunca deixou de se realizar, embora a chuva acabasse com a alegria da população. Para conseguirem caminhar na terra barrenta, os feirantes usavam botas de borracha e atapetavam o espaço com juncos e palha, para facilitarem o acesso aos visitantes. Houve alguns anos em que mesmo usando esta estratégia, era completamente impossível penetrar no espaço da feira. Quando isto acontecia, os vendedores ambulantes que chegavam mais tarde montavam a sua tenda nas proximidades, ou na beira da estrada. E a feira, ficava dividida em duas partes distintas: uma área onde se podiam comprar produtos e utilizar as diversões disponíveis e outra que olhávamos apenas à distância, porque não tínhamos acesso possível. Os feirantes que se encontravam neste local, não tinham possibilidade de efetuar qualquer tipo de comércio, por essa razão, ficavam inconsoláveis. E os visitantes, impedidos de entrarem na feira, sentiam uma enorme tristeza, nomeadamente as crianças. Neste espaço há anos atrás, edificaram o atual bairro do Junquilho e a feira, passou para um outro terreno mais propício, não muito distante do anterior e com infraestruturas montadas para o efeito, nomeadamente, casas de banho, água canalizada e o terreno é coberto de saibro, precisamente para que os visitantes e mesmo os feirantes, não ficassem enlameados em caso de chover.
Quando o sol brilhava e o calor se fazia sentir como se estivéssemos em pleno mês de agosto, os rostos espelhavam uma felicidade sem par.
Com algum tempo de antecedência, as mulheres de poucas posses financeiras, no tempo disponível que lhes restava, entre as lides do campo, as domésticas e o cuidar dos filhos, começavam a costurar as suas roupas, do marido e das crianças, para usarem nesses dias. As senhoras mais abastadas dirigiam-se a casa das costureiras da vila, para encomendarem as suas vestes. Nesta época, as costureiras, não tinham mãos a medir para tantas costuras. Por essa razão, procuravam mais aprendizes, para colaborarem nos trabalhos simples, como alinhavar e tirar os alinhavos. Os senhores endinheirados visitavam o alfaiate da terra, para que costurassem uma farpela bem jeitosa, para que nestes dias de festa, de chapéu de feltro, de aba direita, e a corrente do relógio bem evidente na algibeira, caminhassem pelas ruas da feira, exibindo a sua opulência. E assim, muito antes da realização do evento, começava a entrar dinheiro, no comércio local.
O primeiro sinal de que a feira ia acontecer, era a chegada do povo cigano, muitos dias antes. Vinham em bandos, demarcando o seu território, perto do locar onde a feira se realizava. Com a sua permanência, a vila ficava de imediato bastante animada, devido à sua música, canções e danças, tão peculiares nesta etnia, exibidas em plena rua e principalmente à noite no acampamento, ao redor das fogueiras. Também se realizavam muitos casamentos entre o povo cigano, nos dias que antecediam a feira e durante a mesma. As mulheres desposadas sentiam enorme satisfação e vaidade em usarem um avental novo, para adornar o traje no dia da feira.
Um grande número de feirantes, as companhias de circo e cinema, chegavam à povoação com bastante antecedência. No recreio da escola, a novidade espalhava-se entre a criançada. Geralmente, quem trazia a boa nova, eram as crianças, filhos dos feirantes ou das companhias de circo e cinema, que frequentavam a escola durante a sua breve estadia na terra. Então, as crianças da vila, em debandada, na hora do almoço, ou no período da tarde, quando saíam das aulas, deslocavam-se ao local da feira para espreitar o movimento e contar o número de barracas montadas.
Na vila, nos dias que antecediam a feira, havia grande azáfama. Amassava-se o pão, faziam-se bolos, caiavam-se as casas, as ruas, tudo tinha que estar limpo e a brilhar, no grande dia.
Finalmente, chegava. Assim que o sol raiava, os altifalantes, transmitindo música alegre, anunciavam a abertura da feira. Durante a manhã, efetuava-se a compra e venda de gado, ferramentas agrícolas e outras, os panões, escadas e canastras (para utilizar na apanha da azeitona), loiça de barro, ou utensílios de latoaria, roupas e calçado, para usar na estação de inverno, como os capotes e casacões, capas e calças impermeáveis, ou de oleado, como eram mais conhecidas, botas de borracha ou couro e os sapatos para as lides do campo ou para usar diariamente. Também compravam alguns produtos alimentares, como feijão, grão, nozes, amêndoas, avelãs e os queijos.
Após o saboroso almoço, a família ia para a feira. Usualmente, engordava-se no galinheiro, durante meses, ou um ano, um galo ou galinha, para se fazer a sopa de canja, ou a cabidela, ou então assado no forno. Era um ritual praticado em quase todas as casas da vila.
Caminhando muito aperaltados, pais, filhos e avós, entravam na feira. De repente, o local era invadido por uma multidão imensa, acotovelando-se e amontoando-se em cada paragem para fazer as compras desejadas.
Na primeira rua, encontravam-se as roulotes de venda de torrão de alicante e amendoim, farturas e outros produtos doces ou salgados. Uma das roulotes de venda de torrão de alicante, que marcava presença assídua, pertencia à família Carvalho, residente no nosso distrito, Portalegre, assim como uma outra de venda das farturas ou borrenhol, como é mais conhecido, oriunda da vila do Cano, situada a 10k de Ervedal, pertença da família Melrinho. Algumas famílias de feirantes passavam de geração em geração e como estavam sempre presentes em cada ano, eram conhecidas pela maior parte dos residentes.
As restantes barracas estavam ordenadas consoante os artigos para venda.
O cheiro das farturas, torrão de alicante, frango assado, castanhas e outros, espalhavam-se no ar, penetrando nas narinas e nas roupas.
O som do altifalante da carrinha equipada com um enorme sortido de artigos para o lar que marcava presença todos os anos, leiloando cobertores, pomadas, chás para mezinhas, perfumes, relógios e guarda-chuvas, cruzava-se com o anúncio das sessões de cinema e circo para essa noite, assim como o barulho ensurdecedor dos carrinhos de choque e a música do carrocel. O reclame dos artigos leiloados, era feito habitualmente por uma mulher com um grande vozeirão, que gesticulava imenso e misturava as palavras, oferecendo um extenso número de lençóis, cobertores, toalhas de mesa e afins, por um valor monetário muito baixo, retribuindo como brinde uma enorme quantidade de bugigangas, a maior parte, sem grande utilidade. Era cómico observar as pessoas carregadas com uma pilha gigantesca de produtos que lhe tapavam a visão, caminhando aos ziguezagues.
Algumas famílias dirigiam-se de imediato para a tenda equipada com a máquina dos retratos. Para a maior parte dos habitantes da vila, era a única oportunidade de serem fotografados. O cenário era único. A quantidade de fotos e a escolha dos membros a fotografar é que variava consoante a capacidade monetária.
Após a sessão fotográfica, as mulheres dirigiam-se para o comércio dos artigos para o lar, os homens dispersavam-se. Uns iam beber o seu copito e petiscar um acepipe, na barraca dos comes e bebes, outros agrupavam-se conversando sobre diversos temas. Para as crianças, era chegado o momento de pedincharem os brinquedos, uma voltinha de carrocel ou as guloseimas. Lá vinham as meninas carregando loiças de barro, latoaria, ou plástico e bonecas e os meninos transportavam carrinhos e outros brinquedos de madeira, lata ou plástico e bolas de futebol. Também se viam crianças de rosto lambuzado após chuparem ou mastigarem as mais diversas guloseimas.
As máquinas de diversões eram o sonho das crianças, mas também de um grande número de adolescentes e adultos.
No carrocel, montados numa girafa de pescoço esguio, ou galopando num lindo corcel, volteavam miúdos e graúdos. Na pista dos carrinhos de choque, pais e filhos, netos e avós, namorados e amigos, sentados ao volante de um carro que não era seu, entravam numa verdadeira competição. No ar, o som estridente do choque mútuo, misturava-se com as gargalhadas ou os gritos de pavor. Os mais afoitos viajavam na roda gigante, meia-lua, ou nos aviões, não temendo a altura ou as vertigens. Também aqui, o som das gargalhadas se espalhavam pelo ar em simultâneo com o ruído das manifestações de temor.
Ali próximo, na barraca de tiro ao alvo, os homens experimentavam a perícia de acertar no objeto exposto, para receberem o desejado prémio.
Quando o sol declinava no horizonte, a multidão dispersava-se apressadamente, percorrendo o caminho de regresso a casa para jantar, porque pretendiam assistir à rodagem de filme ou à exibição do circo, anunciadas para esse dia. Perante a oferta e a escassez de espetáculos na vila, era difícil fazer a escolha entre a rodagem de um filme e a diversão do circo. Á hora marcada, a população aglomerava-se nas bilheteiras e na entrada das tendas.
Quem gostava de uma boa história, optava pelo cinema. Lá ia entrando sem pressa e civilizadamente, procurando a fila indicada no bilhete. Sentava-se na cadeira de madeira, olhando o céu estrelado e a lua cintilante, através da tenda esburacada. Quando a luz se apagava fixava-se avidamente o olhar no ecrã, aguardando com ansiedade o início do filme. Na penumbra, ouviam-se ténues sussurros dos casais de namorados, que aproveitavam a ocasião para permanecer de mão dada e os mais audazes, roubavam um fugaz beijo na face rubra da dama.
O fungar constante, ou as gargalhadas, indicavam o teor da história. Ao longo dos anos, os Ervedalenses assistiram a um número considerável de filmes, com o ator italiano, Gianni Morandi, e outros com atores portugueses, como: Tony de Matos, António Calvário, Madalena Iglésias e ainda diversos filmes sobre o período romano como, Sansão e Dalila, Hércules e os Gladiadores.
Na tenda contígua, durante a atuação dos palhaços, o público ficava eufórico, manifestando-se ruidosamente e as gargalhadas e os aplausos eram constantes.
À saída da sessão de cinema ou do circo, a maior parte das famílias comprava borrenhol quentinho, para comer em casa com uma caneca de café, antes de ir para a cama. E assim, o primeiro dia de feira chegava ao fim.
Os anos passaram, as tradições foram-se perdendo, o comércio evoluiu, o espaço da feira também se alterou e a nossa feira foi perdendo a sua beleza e significado. No entanto, um sentimento muito profundo sobre este evento ficou de tal forma enraizado no imaginário de cada Ervedalense que nem a passagem do tempo o conseguirá apagar das suas memórias.
Rita Matos, 16 outubro 2021








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