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Há uma caricatura frequentemente dirigida aos militantes pela justiça climática, que vai desde os níveis mais “respeitáveis” da elite capitalista até aos mais boçais representantes da extrema-direita, tocando uma boa parte da esquerda: de que somos apocalípticos. Como qualquer boa caricatura, é um desenho destinado a exagerar uma parte da informação e esconder o resto, de modo a mais facilmente poder tirar legitimidade a um grupo enorme de pessoas que age contra quem empurra o mundo para o colapso.
Há algumas semanas foi publicado em Portugal um livro a atacar a radicalidade do movimento pela justiça climática, escrito por um suposto ambientalista e revisor do IPCC. A tese principal, nesta entrevista ao Expresso, é de que “não vem aí nenhuma extinção em massa, as alterações climáticas não vão provocar fome, a desflorestação da Amazónia não tem efeitos drásticos sobre a atmosfera, o aquecimento global não é responsável por grandes incêndios florestais nos últimos anos.”. Estas teses são refutadas pela observação científica.
Já estamos a viver na 6ª grande extinção em massa da História Natural que conhecemos, cujo resultado provém da acção humana, em particular da destruição e da degradação de habitats, sobre-exploração de recursos e alterações climáticas.
A perda massiva de espécies e vulnerabilidade das populações pode ser consultada aqui.
2020 foi o segundo ano mais quente desde que há registos, com uma temperatura média global de aproximadamente 14,94ºC (comparados com os 13,8ºC de temperatura média global entre 1850 e 1900). É difícil perceber o argumento de que as alterações climáticas não vão provocar fome, não são precisas sequer referências para explicar a relação directa entre os fenómenos gerais de desertificação, aumento de temperatura e redução de precipitação e a produtividade agrícola. Hoje há pessoas a morrer de fome – num futuro ainda mais quente as pessoas alimentar-se-ão de empreendedorismo? Qual o valor nutricional do optimismo? - Zero.
A desflorestação da Amazónia tem vários efeitos simultâneos e dramáticos sobre a atmosfera e sobre o clima global: a transformação da maior floresta tropical húmida do mundo numa savana com poucas árvores (que é a maior ameaça enfrentada) libertaria quantidades massivas de dióxido de carbono para a atmosfera e reduziria drasticamente a capacidade de absorção de dióxido de carbono. Além disso, mudaria a circulação aérea de água, mudando os regimes hídricos continentais de toda a América, com impactos em todo o mundo. Também lá vivem cerca de 50 mil espécies de plantas, um número ainda maior de animais e cerca de 10% de todos os insectos do mundo, além de fungos e micróbios, que simplesmente perderiam o seu habitat – mas como também já vimos, a tese é de que não há nenhuma extinção e provavelmente também não haverá no futuro.
Sobre incêndios florestais, mais calor em geral provoca mais condições para incêndios. Haverá alguns lugares onde especificamente isto não se aplica, mas a nível global, este argumento é absurdo.
Estas teses, inequivocamente erradas, servem apenas para fazer a ponte para o objectivo principal: dizer que o movimento climático é demasiado radical e que não vale a pena fazer qualquer mudança de fundo na sociedade. O autor das teses só tem para propor a conveniente expansão do nuclear (seu contributo para o IPCC) e do gás fóssil.
A confortável complacência dos verdugos suicidas do sistema com os cenários da crise climática não é um acaso – foi e é construída diariamente. Os agentes do apocalipse têm um braço cultural muito bem representado na imprensa, que é uma das instituições que cria as condições para esta complacência. Do lado da extrema-direita, o Observador faz eco de teses negacionistas climáticas ou negacionistas na prática, como outros jornais e revistas, mas no fundo estas e outras instituições foram criadas para defender o capitalismo e fazem-no. Embora em alguns casos a intencionalidade já esteja há muito afastada do procedimento rotineiro, a defesa inconsciente do sistema pelas instituições é a expressão da “patologia da normalidade”. Tal como o psicanalista Erich Fromm referiu há muito, quando importantes bases da sociedade estão assentes em lógicas doentias, são criados padrões de normalidade que são patológicos. À luz destes padrões, o que caia fora deste conforto parece aberrante. Por isso a procura inconsciente de uma tecnologia mágica nova, a insistência em políticas ou tecnologias que não funcionam e aumentam emissões ou até sonhar com o pesadelo nuclear. Uma sociedade pode estar doente, estruturada e a operar contra o funcionamento saudável dos seus membros individual e colectivamente, além do ambiente que a sustenta.
Em 2018, a Academia das Ciências da Suécia atribuiu o prémio Nobel da Economia a William Nordhaus pelo seu trabalho em modelação de impactos da crise climática. O economista americano colocou, na preleção dada quando ganhou o prémio, uma citação de si mesmo: “incluindo todos os factores, a estimativa final é que os danos são de 2,1% do rendimento global para um aumento de 3ºC, e de 8,5% do rendimento global para um aumento de 6ºC.”. O Nobel da Economia propôs, com base numa análise custo-benefício, a estabilização da temperatura da Terra nos 4ºC acima da era pré-industrial. Há uma avaliação de um campo do conhecimento, de base científica, louvada com o mais alto dos prémios, que sugere que o colapso de todas as camadas de gelo de terra, da Amazónia e das florestas boreais, a paralisação da Corrente de Jacto e da circulação termohalina oceânica, os pilares do sistema climático global, só provocarão uma redução de 8,5% do rendimento global.
Não devemos esconder os cenários reais da crise climática, são devastadores, mas nós somos as gerações que nasceram nesta altura e que terão de resolver este problema. O capitalismo tentará todas as mentiras do mundo para travar a mudança que é necessária para travar a crise climática. Às vezes será mais subtil, outras vezes mais brutal. Mas nunca oscilará e tentará sempre criar novas alianças (nuclear, geoengenharia, necropolítica e genocídio) para travar a mudança. Contará com a inércia institucional dos seus agentes passivos mas também com os seus agentes activos. Não é defeito – é feitio, e vai das salas de cerimónia de Oslo à redação do Observador.
A nova subtileza já não é em geral atacar a existência da crise climática, mas sim enquadrá-la e domesticar os cenários que existem, pervertê-los e retratá-los de uma maneira em que o sistema não precise qualquer mudança. É por isso que o movimento pela justiça climática é hoje acusado de apocalíptico e mais tarde será acusado de extremista: para aqueles que só querem garantir a manutenção do status quo, o fim do mesmo é o fim do mundo. Na nossa era, a manutenção do status quo implica o colapso. Mas, ao contrário dos agentes da catástrofe, dos braços culturais do capitalismo, o movimento pela justiça climática não se resignará ao apocalipse.
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