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"Orientações por voz em breve." A frase surgiu no chat Telegram do movimento zero (M0) às 14.20, seguida de "coloquem os auriculares". A seguir, a ordem: "Camaradas, reúnam ao centro. Estamos muito dispersados." À 16.22, lê-se: "Vamos aguardar por mais camaradas."
Ficamos assim a saber para que serviam os auriculares inclusos no "kit" indicado para esta concentração no Instagram e Facebook do M0: ouvir ordens. Ordens de quem? Um agente da PSP que comenta o caso comigo indigna-se: "Então polícias, que deviam ser pessoas atentas e desconfiadas, confiam numa voz que não conhecem?"
Em vez do megafone que normalmente nas manifestações indica palavras de ordem e dá indicações, empunhado por alguém identificado e identificável, uma manifestação de agentes policiais - que vestem os polos do uniforme, também constantes do "kit", como prova de serem da PSP ou GNR (um gesto ilegal, já que é vedado a membros de forças armadas e de segurança manifestarem-se fardados) - segue um ditado vindo das sombras.
Ao microfone da SIC, alguém que diz ser agente da PSP desde 1992, "simpatizante do M0" e dar pelo nome de João Almeida, tenta justificar: "Há um medo que impera na polícia porque o 25 de Abril não passou por aqui."
E resolve fazer este paralelismo: "Alguém que é hoje um herói nacional, Salgueiro Maia, é herói porque ganhou, porque se não tivesse ganhado era preso, era um criminoso."
Infelizmente, não foi perguntado a João Almeida em que medida o militar que comandou desde Santarém uma coluna do exército para participar no derrube de uma ditadura, e no Terreiro do Paço, peito aberto às balas, enfrentou as forças da situação, se pode parecer com anónimos que, numa democracia na qual os polícias conquistaram há 20 anos o direito a sindicalizar-se, se acoitam no escurinho de auriculares.
Seria interessante ouvir a resposta - porque o "paralelismo" escolhido por João Almeida expõe bem a perigosa baralhada que vai nas cabeças de alguns daqueles a quem, como sociedade, entregámos armas, ou seja força mortal, para nos defenderem dos atentados à ordem legal democrática. Para gente como este "simpatizante" do M0, conclui-se, não há diferença entre a ditadura que Salgueiro Maia contribuiu para derrubar e a ordem democrática que permitiu fundar - é tudo igual e portanto o uso de violência, depreende-se do exemplo que deu, igualmente legítimo. Aliás não é por acaso que também nesta concentração, como em algumas anteriores, os manifestantes fizeram menção de "furar" a barreira de polícia que lhes impedia o acesso ao edifício do parlamento: há uma intenção clara de afrontar, até de "invadir", o poder democrático.
Óbvio que tal encenação, ainda que frouxa e muito aquém da "tempestade" anunciada na convocatória, desde o seu título - "ultimato" - até frases como "vamos lutar com tudo!"; "esta luta em nada se assemelhará aos habituais e moderados protestos que se têm vindo a realizar nas últimas décadas"; "não temos qualquer intenção de somente promover um mero desfile de bandeiras e faixas", desmente a garantia dada por João Almeida: "Não estamos aqui infiltrados por movimentos extremistas. (...) Estamos cansados de ser associados a movimentos e correntes políticas, o que não corresponde à verdade."
Tudo nesta concentração, obviamente, é extremista, como tudo no M0, desde que surgiu - lembremos que por "revolta" contra a decisão de tribunal que condenou oito agentes da PSP por terem sequestrado, agredido e insultado de forma racista jovens negros da Cova da Moura -, ressuma a uma corrente política que chama "regime" à democracia e diz querer "substituí-lo". Convinha que não só o governo e o PR como todas as forças democráticas tornassem claro que, se as legítimas aspirações dos agentes das forças de segurança merecem todo o respeito e atenção, este tipo de manifestação deve ser repudiado e quem nele participa sofrer consequências.
É inaceitável que agentes policiais façam gala em violar a lei e em mostrar que não respeitam o símbolo da vontade do povo que é o parlamento; qualquer um que participe nestas ações demonstra que não tem o que é preciso para desempenhar as fulcrais funções que a democracia lhe confia. Pode ter a farda, o polo e o boné de polícia, pode deter as armas e as algemas (que o M0 lhe pediu para levar para a manifestação e que no momento em que escrevo não se percebeu ainda para quê), mas polícia não é de certeza. Será azul por fora, mas está podre por dentro: para polícia não presta.
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