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O governo leva a debate parlamentar na sexta-feira a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção, que prevê acordos de sentença e outras medidas inéditas na luta anticorrupção, mas a ausência do enriquecimento ilícito poderá suscitar polémica.
A proposta de lei para introduzir medidas preventivas e repressivas da corrupção chega ao Parlamento depois de em dezembro de 2019 o Conselho de Ministros ter aprovado a criação de um grupo de trabalho para definir uma "estratégia nacional, global e integrada de combate à corrupção", na dependência direta da ministra da Justiça e envolvendo diferentes entidades e profissionais.
Até chegar à discussão no Parlamento, a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção (ENCC) percorreu um longo caminho, de ano e meio, que passou pela apresentação pela ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, do pacote inicial de medidas, que, após aprovação pelo governo, teve um período de consulta e discussão pública, com destaque para conferências na Universidade Católica, onde participaram personalidades ligadas à justiça.
Sobre a não inclusão da criminalização do enriquecimento injustificado na ENCC, a ministra considerou que essa matéria faz parte do pacto de transparência e que qualquer alteração à lei já existente é da responsabilidade do parlamento.
O diploma do governo, que visa evitar megaprocessos e aprofundar, na prática, mecanismos penais já existentes, como a dispensa de pena, a atenuação da pena ou a suspensão provisória do processo, para auxiliar a investigação e a celeridade, ocorre num momento em que estão pendentes, em investigação, instrução ou em julgamento, processos mediáticos como BES/GES, Operação Marquês e caso EDP, entre outros, que envolvem figuras públicas, como o ex-banqueiro Ricardo Salgado e o ex-priemiro-ministro José sócrates, e muitos milhões de euros.
Ainda por transitar em julgado há mais de uma década estão processos saídos de escândalos relacionados com o Banco Português de Negócios (BPN) e o Banco Privado Português (BPP), sendo que num desses casos o principal arguido (Oliveira e Costa) já morreu, sendo criticadas a lentidão e o sistema garantístico, razão pela qual na estratégia anticorrupção assumem relevância medidas para combater não só a corrupção, mas também a justiça tardia.
A ENCC não vai sózinha a debate na AR, pois no mesmo dia são discutidos projetos-lei de outros partidos sobre matérias como criação do regime de proteção de denunciantes (CDS/PP), agravamento das penas dos crimes de corrupção ativa e passiva (Chega), reforço da transparência de titulares de cargos políticos e altos cargos públicos (IL), procura de soluções com vista ao fim dos paraísos fiscais (Verdes) e diplomas do BE e PCP para criminalização do enriquecimento injustificado e ocultação de riqueza.
O PSD apresenta um projeto com medidas de combate à corrupção e crimes conexos e o PS avança com um projeto para alargamento das obrigações declarativas e densificação do crime de ocultação do enriquecimento.
A ENCC em debate coincide com as sete prioridades identificadas, em setembro de 2020, pelo grupo de trabalho para reduzir o fenómeno da corrupção, nomeadamente prevenir e detetar os riscos de corrupção no setor público, melhorar o conhecimento, a formação e as práticas institucionais sobre transparência e integridade, envolver o setor privado na prevenção, detetar e reprimir a corrupção e garantir uma aplicação mais eficaz e uniforme dos mecanismos legais de repressão, bem como melhorar o tempo de resposta do sistema judicial e assegurar a efetividade da punição.
Reforçar a articulação entre instituições públicas e privadas, divulgar periodicamente informação fiável sobre o fenómeno da corrupção e cooperar no plano internacional na luta foram outras prioridades traçadas.
O debate parlamentar surge depois de, em fevereiro, a Comissão Europeia ter instado Portugal a "fazer mais" no combate à corrupção, designadamente dando mais recursos e especializando as policias, por considerar que não basta existirem leis nacionais nesse sentido.
"Vamos pedir às autoridades portuguesas para fazerem mais [no combate à corrupção], relativamente à alocação de recursos e à formação e especialização das autoridades policiais", disse então o comissário europeu da Justiça, Didier Reynders, à agência Lusa, em Bruxelas.
Em causa estava o relatório sobre o Estado de direito na União Europeia, apresentado em setembro de 2020 pela Comissão Europeia, que no caso de Portugal indicava como uma das maiores preocupações a falta de meios para o combate à corrupção.
"Estamos certos de que o enquadramento legal existe, mas há limitações a uma luta eficiente contra a corrupção e isso deve-se à falta de recursos e de especialização das autoridades policiais", vincou Reynders.
O relatório da UE refere que em Portugal "o quadro jurídico-penal para combater a corrupção já se encontra, em grande medida, em vigor" e que, embora esteja a ser elaborada a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção, "as diferentes respostas políticas e legislativas constituem uma manta de retalhos", além da questão da falta de recursos.
Sinal idêntico foi dado em maio pelo Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, que alertou o governo para o número “deficitário” de magistrados, criticando que há falta de “vontade política real” para combater a corrupção, ao mesmo tempo que propunha 50 medidas anti-corrupção que, alegou, "vão muito mais longe" do que as medidas do Governo, implicando mudanças relevantes no funcionamento do MP, para melhorar o combate à corrupção.
Em outubro de 2020, a ministra da Justiça vincou que a ENCC faz “uma opção clara pela prevenção”, considerando que "a prevenção é a única abordagem que permite ir às raízes do fenómeno e enfraquecê-las”. Isto foi dito num debate na Universidade Católica, Lisboa, inserido num ciclo de debates sobre a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção para 2020-2024.
Em finais de abril, Francisca van Dunem apresentou a proposta a enviar ao parlamento, reforçando que a "chave do problema" para enfrentar a corrupção está na prevenção, porque o sistema repressivo, por mais sofisticado que seja, é "insuficiente para diminuir seriamente o fenómeno".
No plano repressivo, o governo prevê uma harmonização dos prazos de prescrição de 15 anos para crimes de corrupção e outros ilícitos económicos praticados por funcionários e detentores de cargos políticos, a quebra dos pactos de silêncio mediante a possibilidade da dispensa ou atenuação da pena, em determinadas condições e por via de um melhoramento do mecanismo que já hoje existe, e ainda a suspensão provisória do processo a quem denuncie o crime e colabore com a justiça.
A separação de processos na investigação, evitando megaprocessos e permitir acordos sobre a pena aplicável em julgamento, com base na confissão, são outras medidas contempladas.
FC (ANE) // JMR
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