“Não apaguem a memória!” foi a palavra de ordem, e também a denominação, do movimento cívico criado e lançado em 5 de Outubro de 2005 por um grupo de cidadãos – o qual tive a honra de integrar – que justamente se indignou com o facto de se permitir que o edifício sede da PIDE, na Rua António Maria Cardoso, em Lisboa, pudesse ser transformado num condomínio de luxo, sem sequer se assinalar não apenas que ali haviam sido encarcerados, torturados e até assassinados, às mãos dos esbirros da polícia política, inúmeros combatentes anti-fascistas, como também que fora naquela rua que, no final da tarde do dia 25 de Abril de 1974, a PIDE assassinara, a rajadas de metralhadora, quatro elementos do povo e feriria dezenas e dezenas de outros.
Tratava-se, como se trata hoje ainda, de lutar pela preservação e divulgação da memória colectiva dos combates pela Liberdade e pela Democracia que o povo português travou na sua resistência contra a ditadura fascista e de não permitir quer o apagamento dos crimes cometidos pelo regime fascista e colonialista, quer a ilibação dos seus principais responsáveis e executantes.
A criação e funcionamento, na sinistra prisão do fascismo, junto à Sé de Lisboa, do Museu do Aljube Resistência e Liberdade – cuja visita, logo que possível, a todos vivamente recomendo – e as homenagens quer aos seus presos políticos que estiveram encarcerados no Forte de Peniche, quer aos Advogados que defenderam muitos desses presos políticos nos famigerados Tribunais Plenários são alguns dos frutos da inestimável actividade dessa associação cívica.
Um povo sem memória é um povo sem futuro
Como sempre tenho afirmado, um povo sem memória é um povo sem futuro, desarmado política e ideologicamente e posto à mercê de toda a sorte de manipuladores e oportunistas.
O caminho para estes estará por completo franqueado se se conseguir fazer esquecer que houve um regime político que, em particular através da sua polícia, vigiava, seguia, escutava, perseguia, prendia, torturava e até matava cidadãos que se batiam contra a ditadura, como sucedeu, por exemplo, com o pintor Dias Coelho, o General Humberto Delgado e o estudante José António Ribeiro Santos).
Ou se se conseguir fazer olvidar que uma censura feroz estrangulava a liberdade de expressão nas ruas, nas escolas, nas fábricas, nas empresas e até nas próprias casas.
Ou também se se apagar da memória colectiva que existiu uma guerra colonial, errada e injusta, para onde foram mandados, como carne para canhão, milhares e milhares de filhos do povo, dos quais muitos não regressaram vivos e outros voltaram profundamente estropiados quer física, quer psicologicamente (em particular pelo stress pós-traumático[1]).
Ou ainda que, nessa mesma guerra colonial, de par com esses militares, vítimas do regime, também se verificaram – umas vezes de mãos dadas com a PIDE e outras com esbirros camuflados, orgulhosos com as barbaridades que praticaram – horrorosos crimes de guerra, com assassinatos em massa de civis, incluindo crianças e mulheres, violadas e mortas à pancada, a tiro ou pelo fogo.
Ora, foi precisamente isto que sucedeu, entre outros, com os massacres de Batepá (em 3/2/1953, em São Tomé), Pidjiguiti (em 3/8/1959, na Guiné-Bissau), Mueda (em 16/6/1960, em Moçambique), Baixa do Cassange (em Fevereiro de 1961, em Angola), e como os de Mukumbura, Chaworba, Juawu e Wiriyamu (entre 1971 e 16 de Dezembro de 1972, todos no distrito de Tete, em Moçambique, e denunciados por padres católicos como Adrian Hastings e Enrique Fernando).
Todos estes massacres, sempre negados e desmentidos pelo regime fascista e pela sua propaganda, causaram centenas de vítimas (mais de 1.000 no de Batepá e mais de 400 no de Wiriyamu), assassinadas muitas delas com horríveis requintes tanto de repugnante malvadez como da mais miserável cobardia, que rigorosamente nada têm que ver com princípios de “honra”, de “coragem” ou de “heroísmo” e antes constituem verdadeiros crimes de guerra, os quais devem ser lembrados e denunciados como tal.
Porque, se o não fazemos, um dia destes até parecerá que não houve regime fascista, não houve nem censura nem polícia política, nem prisões, nem torturas, nem assassinatos políticos, nem guerra colonial, nem crimes ou criminosos de guerra.
Aliás, e para não irmos mais longe, outros países, como a Alemanha, não só preservaram os campos de concentração como nunca elogiaram, nem celebraram publicamente, militares (como os oficiais das sinistras SS) que praticaram o assassinato de civis inocentes, mesmo que sob o (eterno) pretexto de que eles “colaboravam” com o “inimigo”…
As honrarias do funeral de Marcelino da Mata
Vem tudo isto a propósito do facto de que, nos últimos dias, imprensa e redes sociais se encheram de “notícias” e sobretudo de comentários relativos ao falecimento e ao funeral do tenente-coronel Marcelino da Mata e sobre as homenagens de que ele seria supostamente merecedor que alguns vieram defender, não raras vezes com o infelizmente habitual recurso ao insulto e ao ataque pessoal contra os discordantes.
Na verdade, sob o argumento de que se trataria do militar do Exército Português mais condecorado de sempre e de um “exemplo” a lembrar e a seguir, houve quem aparecesse a defender que a sua morte representaria uma enorme e terrível perda para o país, o que justificaria até a determinação de 3 dias de luto nacional.
Ora, numa altura em que, por força do combate à pandemia da Covid-19, se restringe para o comum dos cidadãos o número de pessoas que podem estar num funeral (em particular se o falecimento tiver sido devido ao coronavírus), nas cerimónias fúnebres de Marcelino da Mata estava presente um elevado número de participantes. E, mais do que isso, em tais cerimónias, e como se de um verdadeiro herói nacional se tratasse, fizeram-se representar os partidos políticos Chega, Ergue-te! e PDR e compareceram, para além do Chefe do Estado-Maior do Exército, General Nunes da Fonseca, e do Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, Almirante Silva Ribeiro, o próprio Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, que, todavia, já não esteve presente nos funerais de militares que fizeram o 25 de Abril e que faleceram recentemente como Teófilo Bento[2], Luís Macedo,[3] ou Abrantes Serra[4].
Quem foi Marcelino da Mata?
Mas quem foi, afinal, Marcelino da Mata?
Natural da Guiné, logo após uma forçada 1ª Incorporação, em substituição de um irmão, ofereceu-se como voluntário do exército colonial. Foi um dos fundadores da tropa de elite dos comandos naquela colónia, tendo participado em mais de 2.400 missões de combate ao serviço do exército colonial português.
Entre essas operações militares, avultam as famigeradas Operação Tridente (realizada em 1964 e que visava o objectivo, falhado, de eliminar a presença e atividades de guerrilheiros do PAIGC, em particular na Ilha de Como), Operação Mar Verde (concebida por Alpoim Calvão e António Spínola, realizada no maior secretismo em Dezembro de 1970 e consistente num ataque surpresa a Conacri, capital da República da Guiné, e que resultou também no fracasso de alguns dos seus principais objectivos, como a captura ou assassinato do líder do PAIGC Amílcar Cabral, a destruição de aviões MiG-15 e Mig-17 daquele país e a realização de um golpe de estado que derrubasse o presidente da Guiné, Sékou Touré) e a Operação Ametista Real (levada a cabo em 08/05/73, com a expressa finalidade, igualmente falhada, de “aniquilar ou, no mínimo, desarticular a organização do IN[5] na região de Guidaje-Bigene”, sendo que em 24/09/73, o PAIGC declarou a independência das zonas libertadas[6]).
Entre 1966 e 1973, Marcelino da Mata foi inúmeras vezes louvado e condecorado pelo regime colonial-fascista, recebendo dezenas de louvores, duas medalhas de 1ª classe, duas de 2.ª classe e uma medalha de 3ª classe da Cruz de Guerra, tendo, em 02/07/69, sido feito Cavaleiro da Antiga e Muito Nobre Ordem Militar da Torre e Espada, de Valor, Lealdade e Mérito (a mais elevada ordem honorífica de Portugal).
É óbvio que o regime fascista não condecorava à toa, muito menos com o grau elevado de distinções e insígnias que atribuiu a Marcelino da Mata, sendo também evidente que os episódios da guerra colonial não foram “histórias rocambolescas que dariam um bom filme de Hollywood” – como provocatoriamente referiu o “comentador” José Manuel Fernandes –, mas sim os passos, violentos e traumatizantes, de uma guerra injusta, levada a cabo contra povos que lutavam pela sua independência, e que matou, estropiou e afectou milhares e milhares de portugueses, entre os que partiram e não voltaram, os que voltaram incapacitados para o resto das suas vidas e todos os que (como pais, mães, irmãos, filhos, mulheres, namoradas, amigos) ficaram afectados para sempre.
Assim como não podemos esquecer que, após justamente terminada a guerra colonial, o Estado Português abandonou à sua sorte aqueles que antes usara como carne para canhão, constituindo mesmo um escândalo a forma como muitos deles tiveram então de sobreviver[7].
As atrocidades do “herói”
Mas a grande questão – que grande parte da vozearia produzida nas redes sociais, conscientemente ou não, parece ignorar em absoluto – é a de que não foi enquanto militar incorporado à força num exército colonial para travar uma guerra injusta que Marcelino da Mata ficou conhecido e se tornou merecedor dos louvores que recebeu, mas sim enquanto colonizado que escolheu ficar do lado do colonizador e, muito mais ainda, enquanto autor de barbaridades indizíveis contra não só o “inimigo” (os guerrilheiros do PAIGC) mas também contra populações civis completamente indefesas e com cuja tortura e massacres se satisfez, gabando-se e orgulhando-se de tais “proezas” até ao fim dos seus dias. Não foi, aliás, por acaso que ficou conhecido por “Rambo da Guiné”, comparado com o qual, conforme o próprio se gabava, o original seria uma criança…
No livro O interior da revolução, de Vasco Lourenço, este relata explicitamente como Marcelino da Mata contou em Bissau a vários outros militares, uma das suas proezas: “(…) Entrámos na tabanca, deitámos granadas incendiárias para as palhotas, as pessoas fugiram para o centro da tabanca, matámos todos, homens, mulheres e crianças”.
Relato similar foi feito pelo próprio, em 1971, na sequência da Operação Mar Verde, no Xime (cais do rio Geba), com exibição de um boião de vidro com despojos humanos conservados em álcool, segundo referência de Clementino Castro, da Companhia de Artilharia (CART) 3715.
E segundo os relatos dos que por lá passaram, quer na BA12, quer, antes disso, nos chamados “Roncos de Farim”, sempre foram amplamente conhecidas as sanguinárias façanhas de Marcelino da Mata, ou seja, dos verdadeiros crimes de guerra por ele cometidos, e o modo como deles se gabava e ufanava, a ponto de proclamar, e por diversas vezes, que quando capturava “turras” (guerrilheiros ou suspeitos de com estes colaborarem), não os entregava à PIDE pois preferia torturá-los das formas mais bárbaras e ficar a vê-los morrer no maior dos sofrimentos.
Ora, nada disto pode ser confundido com “coragem” ou “destemor” ou “explicado” pela guerra. E é por isso que procurar fazer de um indivíduo destes um herói, a quem todas as homenagens seriam devidas, constitui uma absoluta e inaceitável ofensa, desde logo às suas inúmeras vítimas, mas também a todos os que, incorporados à força e obrigados a combater, não cometeram barbaridades como aquelas.
E constitui igualmente uma grave e inaceitável agressão à memória colectiva do Povo Português e dos Povos das colónias, bem como à sua resistência contra o fascismo e contra a guerra colonial. E agressões destas, como outras que já ocorreram no passado[8], não podem passar em claro.
Por isso, para que este pretenso “herói” Marcelino da Mata e o que ele representou e representa não seja esquecido, é preciso gritar de novo e bem alto:
Não apaguem a memória!
António Garcia Pereira
[1] A guerra colonial implicou a mobilização, ao longo de 13 anos, de mais de um milhão e quatrocentos mil jovens na flor da idade. Segundo os dados do Estado-Maior-General das Forças Armadas, as vítimas mortais militares terão sido 8.831, enquanto os feridos terão ascendido a cerca de 30.000, dos quais 5.120 ficaram com incapacidade física superior a 60%. Por outro lado, segundo os psiquiatras Afonso de Albuquerque e Fani Lopes, entre 140 a 150 mil ex-combatentes ficaram a sofrer de stress pós-traumático.
[2] À frente de militares da E.P.A.M., ocupou as instalações da RTP na madrugada de 25 de Abril. Falecido em 29/07/2020.
[3] Organizou a instalação do Posto de Comando das operações do 25 de Abril, na Pontinha. Falecido em 15/11/2020.
[4] Comandou a ocupação da Escola de Fuzileiros, em Vale de Zebro, no Barreiro, no 25 de Abril e nos dias seguintes a ocupação da Prisão de Caxias. Falecido em 19/01/2021.
[5] Inimigo, ou seja, os guerrilheiros do PAIG.
[6] Tal independência foi reconhecida, para desespero do governo fascista português, pela própria ONU, em 26/10/73.
[7] E de que a meritória acção desenvolvida, desde há décadas, pela Associação dos Deficientes das Forças Armadas (ADFA), é bem demostrativa.
[8] Não esqueçamos a provocatória brandura com que os pides foram tratados nos julgamentos-farsa, realizados depois do 25 de Abril nos Tribunais Militares, saindo quase todos em liberdade, ou porque foram absolvidos por serem só “motoristas” ou telefonistas” ou porque foram condenados a irrisórias penas de prisão, iguais ou inferiores ao tempo já cumprido. Outro emblemático caso é o do Inspector Óscar Cardoso, um dos principais quadros dirigentes da PIDE, e sempre orgulhoso de o ter sido, que foi, em 1966, o organizador, em Angola, dos “Flechas”, tropa de elite constituída por africanos e autora das maiores atrocidades contra guerrilheiros e populações civis. E na tarde de 25 de Abril de 1974, entrincheirado no edifício da sede da PIDE, comandou o metralhar da manifestação, desarmada, que se aproximou do edifício, causando pelo menos 4 mortos. Mas, em 1992, Cavaco Silva e o seu governo atribuiram-lhe o louvor – e consequente pensão vitalícia – por “serviços relevantes prestados à pátria”! O Advogado Francisco Sousa Tavares, num texto publicado no Diário de Notícias de 14/11/92, qualificou então tal louvor como “um insulto feito a Portugal e a cada um de nós”.
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