Este discurso é uma das mais belas peças oratórias fúnebres. É talvez o momento mais emocionante da tragédia Julius Ceasar de Shakespeare, e um dos mais exigentes testes de eloquência para as legiões de intérpretes de Marco António ao longo da história.
Você encontrará este discurso, pronunciado de forma inesquecível por Marlon Brando, no filme dirigido por Joseph L. Mankiewicz, em 1953, no final deste texto.
O discurso foi pronunciado por Marco António, nas escadarias do senado romano, em frente ao corpo morto de Cesar, assassinado a facadas pela conspiração de Brutus e Cassius.
Para se entender o lance político do discurso é preciso explicar um pouco o contexto em que foi feito.
O assassinato de César havia sido bem aceite pela população, já que a explicação que seus autores ofereceram para seu ato foi a de que ele estava prestes a dar um golpe e se autonomear rei, o que era inaceitável na cultura política romana.
Marco António, que era muito próximo de César, correu o risco de morrer junto com ele, pois, para evitar que reagisse ao ataque a César, foi distraído por um dos senadores da conspirata para uma conversa fora do local onde César seria assassinado.
Consumado o assassinato, Marco António, procurado pelos conspiradores, acertou com eles que falaria no Senado em prol da pacificação dos ânimos. Preservou assim a sua prerrogativa de fazer o discurso fúnebre de César.
Neste discurso, frente a uma massa de cidadãos que até há pouco apoiavam e admiravam a César, mas que agora o condenavam, Marco António começa dando razão aos conspiradores, para ganhar tempo e ser ouvido pela massa.
Seguindo uma estrutura em que, na primeira frase, condena César, reitera que Brutus é um homem honrado, para na próxima frase dizer, “mas…” e dar um exemplo real da grandeza, bondade, lealdade e do amor que César tinha pelo povo de Roma. Assim, pouco a pouco, Marco António consegue mudar o estado de espírito da massa, voltando-a contra os assassinos.
O orador, com invulgar habilidade, inicia submetendo-se ao sentimento dominante (anti César), mas encontra uma forma sutil de dialeticamente afirmar ao mesmo tempo a crítica e a observação positiva.
Como esta última é mais poderosa que a primeira, aos poucos vai recuperando a imagem positiva, relembrando suas boas ações, seu patriotismo, suas virtudes, de forma a deixar para o povo a conclusão da enormidade do crime praticado não mais contra César, mas sim contra Roma e o povo romano.
O César odiado volta a ser o Cesar amado, e ressurge para a vida política com os que lhe permaneceram fiéis, e pelo ódio aos seus inimigos.
É tentador lembrar a dramática mudança da reação popular à morte de Getúlio, depois dos discursos de políticos como os de Tancredo e Brizola. O Getúlio impopular de um dia atrás, ressurgia para a política nas palavras dos seus representantes, e na emoção popular.
O texto do discurso de Marco António foi extraído da peça Julio César de Shakespeare.
“Amigos, romanos, cidadãos dêm-me seus ouvidos.
Vim para enterrar Cesar, não para louvá-lo. O bem que se faz é enterrado com os nossos ossos; que seja assim com César. O nobre Brutus disse a vocês que César era ambicioso. E se é verdade era uma falta muito grave, e César pagou por ela com a vida, aqui, pelas mãos de Brutus e dos outros. Pois Brutus é um homem honrado, e assim são todos eles, todos homens honrados.
Venho para falar no funeral de César. Ele era meu amigo, fiel e justo comigo. Mas Brutus diz que ele era ambicioso. E Brutus é um homem honrado.
Ele trouxe muitos prisioneiros para Roma que, para serem libertados, encheram os cofres de Roma. Isto parecia uma atitude ambiciosa de César? Quando os pobres sofriam Cesar chorava. Ora a ambição torna as pessoas duras e sem compaixão. Entretanto, Brutus diz que César era ambicioso. E Brutus é um homem honrado.
Vocês todos viram que na festa do Lupercal eu, por três vezes, ofereci-lhe uma coroa real, a qual ele por três vezes recusou. Isto era ambição? Mas Brutus diz que ele era ambicioso, e Brutus, todos sabemos, é um homem honrado.
Eu não falo aqui para discordar do que Brutus falou. Mas eu tenho que falar daquilo que eu sei. Vocês todos já o amaram e tinham razões para amá-lo. Qual a razão que os impede agora de homenageá-lo na morte?”
Neste momento, Marco António faz uma pausa no discurso, e as pessoas do povo começam a refletir sobre o que ele disse, e a questionar se César tinha afinal merecido a morte que teve. Passado este interlúdio retorna Marco António a falar:
“Ontem a palavra de César seria capaz de enfrentar o Mundo; agora jaz aqui morta. Ah! Se eu estivesse disposto a levar os seus corações e mentes para o motim e a violência, eu falaria mal de Brutus e de Cassius, os quais como sabem, são homens honrados.
Não vou falar mal deles. Prefiro falar mal do morto. Prefiro falar mal de mim e de vocês do que destes homens honrados.
Mas, eis aqui, um pergaminho com o selo de César. Eu o achei no seu armário. É o seu testamento.
Quando os pobres lerem o seu testamento (porque, perdoem-me, eu não pretendo lê-lo), e eles se arrojarão para beijar os ferimentos de César, e molhar seus lenços no seu sagrado sangue.”
O povo reclama de Marco António e exige que ele o leia:
“Tenham paciência amigos, mas eu não devo lê-lo. Vocês não são de madeira ou de ferro e sim humanos. E, sendo humanos, ao ouvir o testamento de César vão se inflamar, ficarão furiosos.
É melhor que vocês não saibam que são os herdeiros de César!
Pois se souberem… o que vai acontecer?
Então vocês vão me obrigar a ler o testamento
de César ?
Então façam um círculo em volta do corpo e deixem-me mostrar lhes César morto, aquele que escreveu este testamento.
Cidadãos. Se vocês têm lágrimas, preparem-se para soltá-las.
Vocês todos conhecem este manto. Vejam, foi neste lugar que a faca de Cassius penetrou. Através deste outro rasgão Brutus, tão querido de César, enfiou a sua faca e, quando ele arrancou a sua maldita arma do ferimento, vejam como o sangue de César escorreu.
E Brutus, como vocês sabem, era o anjo de César. Oh! Deuses, como Cesar o amava. O golpe de Brutus foi, de todos o mais brutal e o mais perverso. Pois, quando o nobre César viu que Brutus o apunhalava, a ingratidão, mais que a força do braço traidor, parou seu coração.
Oh! Que queda brutal meus concidadãos. Então eu e vocês e todos nós também tombamos, enquanto esta sanguinária traição florescia sobre nós.
Sim, agora vocês choram. Percebo que sentem um pouco de piedade por ele. Boas almas. Choram ao ver o manto do nosso César despedaçado.
Bons amigos, queridos amigos, não quero estimular a revolta de vocês. Aqueles que praticaram este ato são honrados. Quais queixas e interesses particulares os levaram a fazer o que fizeram, não sei. Mas são sábios e honrados e tenho certeza que apresentarão a vocês as suas razões.
Eu não vim para roubar seus corações. Eu não sou um bom orador como Brutus. Sou um homem simples e direto, que amo os meus amigos.”
Seguem-se novamente comentários das pessoas, já agora lamentando o assassinato e condenando os assassinos.
Volta Marco António:
“Aqui está o testamento, com o selo de César. A cada cidadão ele deixou 75 dracmas. Mais, para vocês ele deixou seus bens. Seus sítios neste lado do Tibre, com suas árvores, seu pomar, para vocês e para os herdeiros de vocês e para sempre. Este era César. Quando aparecerá outro como ele?”
Revoltada a massa sai rumo às casas dos conspiradores para vingar César.
ADENDO – Uma curiosidade histórica: Em novembro de 1864 no Teatro de Winter Garden, os irmãos Booth fizeram, em Nova York, sua única aparição juntos nessa peça de Shakespeare (foto ao lado). John WilkesBooth – que viria ser o assassino de Lincoln em 1865 – representava Marco António; JuniusBooth Jr.- Cássio e Edwin Booth – Brutus. A exibição era beneficente e destinava-se e captar recursos para pagar a estátua de Shakespeare no Central Park, onde se encontra até hoje.
Sem comentários:
Enviar um comentário