Os cancros não se combatem com aspirinas. Fascismo nunca mais, não é palavra de ordem para conforto de um dia, é um combate de todos os dias
Nos últimos decénios a extrema-direita real, a de um neofascismo que tenta mascarar o fascismo clássico que está nos seus alicerces, tem vindo a aumentar a sua implantação política tanto nos EUA como na Europa, o que se acelerou com as políticas Thatcher e Reagan, em linha com os Chicago Boys de má memória no Chile de Pinochet que, com pertinazes falsificações, até é elogiado pelos próceres da Iniciativa Liberal. A engrenagem mais useira e vezeira dessa direita mais extrema e seus pares próximos é aproveitarem-se do descontentamento provocado pelas derivas do neoliberalismo mais radical e pelas indecisas e oportunistas políticas económicas dos partidos socialistas mais à esquerda, como as do Partido Socialista Francês com Miterrand, ou dos que alinharam claramente com o neoliberalismo, de que o exemplo mais acabado é o trabalhismo thatcherista de Blair. Políticas que abriram as portas para o capitalismo selvagem, em que as desigualdades aumentaram com a brutal exploração do trabalho, o emprego precário, o desemprego de longa duração, a especulação bolsista e imobiliária, a concentração da riqueza numa elite cosmopolita de algumas centenas de indivíduos que aproveitam as crises para um vertiginoso crescimento das suas fortunas, como se tem assistido com a crise provocada pela pandemia, um catalisador dos lances das anteriores crises. Não perdem tempo, já estão a preparar novos assaltos.
«Ao que hoje se assiste é ao ressuscitar do velho caceteirismo dos arruaceiros e à nova e velha doblez dos sicofantas, com cenas grotescas, somando falsidades, encenando provocações, numa deriva perigosa, com o uso de uma linguagem subcultural que caracteriza o discurso de direita que se aproveita de um generalizado provincianismo adubado pelo esclerosamento mental veiculado pelas grosseiras bagatelas pimbas que alastram pelo éter como um vírus para o qual não há vacinas, aproveitado de forma oportunista e hábil para no fim da linha imporem a sua visceral antidemocraticidade»
A extrema-direita, muitas vezes acobertada pelas vestes neoliberais herdeiras dos primitivos liberais, tem capitalizado as insatisfações, as angústias provocadas por essas políticas, mentindo com grande descaramento para travestirem os seus intentos, como se tem assistido por todo o mundo e por cá, com um partido assumidamente fascista e com uns auto-proclamados liberais que só aparentemente são concorrentes, que tem aumentado a implantação social e o peso político, mascarando os seus desígnios com o populismo mais desbragado, mentindo descaradamente, sabendo até bem demais que imposturas repetidas com contumácia podem ser ou acabam por ser assumidas como verdades, por mais que sejam denunciadas. Sabem de ciência certa que uma mentira, por mais inaudita que seja, por mais que seja comprovada a sua falsidade, deixa seja um lastro inapagável. É a lição de Goebbels que aprenderam e usam per fas et nefas.
Tal como aprenderam com Hitler que, apoiado pelo grande capital dos dois lados do Atlântico, explorou a incapacidade da esquerda se unir em momentos cruciais e o descrédito das políticas dos sociais-democratas da República de Weimar, as altas taxas de desemprego, a inflação galopante. Com retóricas populistas chega ao poder para assim que o alcançou privatizar todas as empresas estratégicas, siderúrgicas, minas, bancos, estaleiros, transportes marítimos, ferrovias, serviços públicos. Um filme pronto a ser vertido em várias versões pelos mais diversos realizadores e com os mais variados actores, mas sempre com o mesmo guião: o da barbárie capitalista de uma sociedade fundada na violência de classe.
Ao que hoje se assiste é ao ressuscitar do velho caceteirismo dos arruaceiros e à nova e velha doblez dos sicofantas, com cenas grotescas, somando falsidades, encenando provocações, numa deriva perigosa, com o uso de uma linguagem subcultural que caracteriza o discurso de direita que se aproveita de um generalizado provincianismo adubado pelo esclerosamento mental veiculado pelas grosseiras bagatelas pimbas que alastram pelo éter como um vírus para o qual não há vacinas, aproveitado de forma oportunista e hábil para no fim da linha imporem a sua visceral antidemocraticidade.
«É uma evidência que o neofascismo por ora executa linchamentos morais por ainda não ter possibilidade de fazer outros. O ovo da serpente está a quebrar a casca, nalguns lugares até já a quebrou. Tem que ser combatido antes que as cascavéis que, por enquanto, sobretudo chocalham, comecem a espalhar muito mais veneno»
Por cá a contumácia das aldrabices, das mentiras, dos insultos, das ameaças do trapaceiro Ventura encontram albergue nos media que os repercutem como se fossem declarações de alguém com alguma fiabilidade política. Não só nos órgãos de comunicação social que o promovem, agora mais assanhados com a viuvez a que Trump os relegou, nos que encobrem o seu fervor neoliberal em independência informativa, mas também naqueles que deveriam ser de serviço público e que são directamente dependentes do governo, que se remete a um silêncio condenável. Se uns abrem os armários para reciclar os esqueletos do fascismo-salazarista onde os tinham guardado depois do 25 de Abril, outros obscurantistas arregimentam-se com essa tropa de arruaceiros fandangos para recuperar falácias, das mais antigas às mais modernaças, em que se amalgamam dos panegíricos fascistas e pós-fascistas mais elaborados aos mais ridículos, todos não inocentes, para estercar um culto de direita e extrema-direita que beneficia do clima instalado nos media pelos plutocratas seus detentores, com os seus fiéis servidores, directores, editores, comentadores, na sua esmagadora maioria de direita e centro-direita, para que as denúncias a esse estado de sitio sejam débeis. O que está em curso é a direita e a extrema-direita, com o beneplácito do centro-direita, a ocuparem lugar no espaço democrático.
É uma evidência que o neofascismo por ora executa linchamentos morais por ainda não ter possibilidade de fazer outros. O ovo da serpente está a quebrar a casca, nalguns lugares até já a quebrou. Tem que ser combatido antes que as cascavéis que, por enquanto, sobretudo chocalham, comecem a espalhar muito mais veneno.
Chocalhos e veneno das cascavéis que procuram desacreditar a política, a classe política e a sociedade aos olhos do homem comum normalizado por uma cultura conformista e por um jornalismo, com destaque para o televisivo, que balança entre o conservadorismo e a imbecilidade. O ciberespaço, as noticias falsas, a multiplicação de falsos perfis deu-lhes um novo impulso bem visível nos trumps, trumpinhos e trumpões que por aí se reproduzem como cogumelos. A bula é a mesma e não hesita em usar todos os truques que decalcam e copiam com detalhe o que é nuclear a que agregam variantes regionais. Aqui com Ventura, em França com Le Pen, em Itália com Salvini, no Brasil com Bolsonaro, nos EUA com Trump, por esse mundo adentro com outros bichos móis que vão, com maior ou menor êxito, emergindo dos pântanos. Actualizam, com as modernidades do século XXI, os hitleres, mussolinis, salazares e francos e, como eles, não se eximem às demagogias mais descaradas, sem peias, com uma desfaçatez que até deixa atónitos os mais desprevenidos, bem ilustrada pela capa de jornal AIZ com uma, como sempre excelente, fotomontagem de John Heartfield, que já nos anos 30 do século XX os desmascarava.
AIZ1 (Jornal Ilustrado dos Trabalhadores)
Notícia de jornais do dia 8 de Abril de 1934: o pin de Maio deste ano da Frente Nacional do Trabalho2 contém, além do rosto de Goethe e da Águia com a Suástica, os símbolos bolcheviques do Martelo e da Foice, aparentemente para conquistar os ainda cépticos trabalhadores.
MIMETISMO
Depois de todas as tentativas de incutir as ideologias nacional-socialistas aos trabalhadores terem sido mal sucedidas, Goebbels teve uma última e desesperada ideia: convencer o Führer de que, daqui em diante, sempre que discurse para os operários, ponha uma barba de Karl Marx.
O neoliberalismo e a ascensão da extrema-direita
Tem o caminho facilitado pela degradação social e cultural que fracturou as nossas sociedades. A doxa neoliberal do capitalismo liderado pela finança corroeu e destruiu conquistas dos trabalhadores alcançadas em séculos de árduas lutas, enriquecendo obscenamente com a exploração do trabalho e dos recursos naturais. Degradou a cultura com o consumo espectacular de uma sucessão de entretenimentos, na lógica perversa das modas das indústrias culturais e criativas da gestão das artes, de pouca memória cultural e política, em que não se promove ou só se promove muito residualmente a humanização e a socialização dos sentidos. A esquerda, as esquerdas, muitas delas contaminadas por um hedonismo consumista infiltrado pelo pensamento dominante, fragmentaram as lutas, o que as fragilizou e a fez ausentar de muitas frentes de combate, abandonando as lutas de classe em favor das lutas fracturantes e identitárias, reduzindo-se à denúncia do capitalismo selvagem que, bem financiado, aproveitando essas brechas, manipula a opinião pública através dos meios tradicionais de comunicação, imprensa, rádio e televisão e dos novos do universo digital, blogues, redes sociais, videojogos, enquanto se vai infiltrando nos aparelhos de Estado, consolidando oligopólios que adquirem um tal poder que actuam como novos senhores feudais, impondo os seus diktaks sem lei nem debate público.
Há que mudar de políticas para travar decididamente a propagação do fascismo, que é bem visível depois de anos em que foi abrindo caminho pelas brechas de um liberalismo que objectivamente é seu aliado. À esquerda, às esquerdas, há que exigir que, com um grande debate sobre o que as separa, combatam o que está na raiz da eficácia do argumentário da direita e da extrema-direita, com políticas económicas que tirem do fosso onde sobrevivem os «perdedores», para usar um adjectivo tão caro aos liberais de qualquer jaez, mesmo sabendo que não há uma relação causa efeito imediata entre a melhoria das condições de vida de milhões de pessoas e a aquisição da consciência do que as atirou para esse fosso. À esquerda, às esquerdas, há que exigir políticas sociais para que os direitos dos trabalhadores sejam repostos, os perdidos e os degradados, revigorando-os com a sua ampliação. Há que exigir políticas económicas em que os sectores estratégicos que, em nome de uma falsa racionalidade gestionária, têm sido privatizados, retornem à esfera pública para se acabar de vez com as políticas económicas neoliberais ou poluídas pela ideologia neoliberal, em que a criação de riqueza é entregue ao capital, a riqueza pública se desgasta e é insuficiente, a capacidade produtiva degenera, os baixos salários persistem. Repor e recompor a democracia que é impossível com tamanha desigualdade entre ricos e pobres. Nada é mais desigual que a igualdade entre desiguais.
Os cancros não se combatem com aspirinas. Fascismo nunca mais, não é palavra de ordem para conforto de um dia, é um combate de todos os dias.
- 1.Arbeiter-Illustrierte-Zeitung (AIZ), em português Jornal Ilustrado dos Trabalhadores, foi uma revista alemã de carácter antifascista, publicada em Berlim entre 1924 e Março de 1933. Depois da subida dos nazis ao poder continuou a ser publicada até 1938, primeiro em Praga e depois em Paris. As fotomontagens de John Heartfield para a revista ficaram célebres.
- 2.Deutsche Arbeitsfront (DAF), em português Frente Alemã do Trabalho, foi uma organização do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, mais conhecido por Partido Nazi. Criada em Maio de 1934, após a subida deste ao poder, foi extinta em Maio de 1945, com a vitória dos Aliados. Na notícia da AIZ é designada por Nationalen Arbeitsfront, cuja tradução é Frente Nacional do Trabalho.
- (publicado em AbrilAbril AbrilAbril | O outro lado das notícias )
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