Póvoa de São Miguel é uma aldeia de Moura onde o candidato do Chega ganhou estas presidenciais com 41,23 % dos votos.
Tem uma população de 20% de ciganos, que ali nasceram, cresceram, compraram casa e casaram. E há quem não goste.
Madalena Martins (esquerda) comprou casa no centro da vila, onde todos os filhos moram. E Mário Raul André (esq.) diz que a avó já ali vivia
O candidato do Chega teve a sua maior votação na aldeia da Póvoa de São Miguel, em Moura, uma localidade com 612 eleitores, alguns deles emigrados. Cerca de metade votou (47,8 %) e, destes, 134 (41,23 %) deram o voto a André Ventura, que ficou à frente de Marcelo Rebelo de Sousa.
Uma surpresa só para quem não conhece a localidade, diz quem lá vive. Atribuem a votação ao facto de 20% dos habitantes ser de etnia cigana e há quem não goste desta expansão. Isto, apesar do presidente da Junta de Freguesia dizer que essa comunidade está integrada e não têm conflitos. Os ciganos dizem: "Não sabíamos que eram fascistas, agora sabemos porque votaram no André Ventura".
As palavras são de Madalena Martins, 57 anos, com 16 netos. Ela e o marido, José Manuel Martins, compraram uma casa no centro da vila, habitação que foi crescendo à medida que os filhos rapazes casaram e para ali trouxeram as mulheres, como é costume na etnia.
É esta tradição que uma parte da população parece não desculpar, também a forma de vida. São feirantes e muitos trabalham na agricultura em trabalhos sazonais, nomeadamente na apanha da azeitona e na vindima, explica António Montezo, o presidente da Junta de Freguesia da Póvoa de São Miguel, eleito pelo PS. Também vem à baila o facto de receberem o Rendimento Social de Inserção (RSI).
Esta segunda-feira, com as escolas encerradas e as feiras paradas, todos surgem à porta de casa quando percebem que há conversa, desde os mais velhos aos mais novos. A comunidade não esconde o desagrado perante a votação de André Ventura. É de realçar que o Chega já nas últimas eleições legislativas ali obteve 15,43 % dos votos.
"Morámos aqui sempre, fomos criados com eles, não têm queixas de nós, não roubamos, mas aqui as as pessoas de etnia cigana não são bem vistas. Há quem não se porte bem, não é o nosso caso, por causa de uns pagam todos", protesta Jairo Martins, 24 anos, dois filhos. Mora na rua paralela à dos pais.
"Estou reformado mas é pela caixa, paguei caixa [Segurança Social] 40 anos como vendedor. A minha avó já aqui morava e fomos comprando as nossas casas", acrescenta um vizinho, Mário Real André, de 69 anos. Ali vivem também nove netos.
E assim tem acontecido com os outros ciganos, já bisnetos de quem para ali foi viver nos anos 60 do século passado, três famílias: a do Russo, do Fernando e do Lelo.
"Têm muitos filhos e têm vindo a comprar as casas. Não são pessoas que vivam em bairros sociais ou em barracas, têm as suas casas e vão-se expandindo. Na aldeia, são 20 % dos residentes e a tendência é de crescimento", explica António Montezo, um filho da aldeia. Muitos têm as habitações no centro da aldeia, mas a maioria fica numa ponta, na rua das Cruzes. Com campo à frente para irem aumentando o número de divisões, além de comprarem as casas que vagam.
Reconhece o autarca que aos ciganos não são bem vistos. Nem sabe explicar porquê, até porque garante que a etnia está bem integrada. "Não são um problema, não há quem crie conflitos e eu também faço força para que isso não aconteça. As pessoas votaram em André Ventura por causa de ser populista, de dizer frases que gostam de ouvir e de haver uma rejeição à partida da etnia cigana".
Domingas Pedras (centro) mora com a família na rua das Cruzes, que concentra o maior número de casas da comunidade. Comenta: "Damo-nos todos bem, mas pelos vistos são racistas"
Também os locais com quem o DN falou dizem não ter problemas com a comunidade, mesmo entre os que alinham pela retórica de André Ventura. E a comunidade cigana assegura que há uma boa convivência. "Morre um vizinho e vamos ao funeral e eles também vêm aos nossos.
O meu filho tem uma carrinha e já tem levado pessoas às compras ao supermercado, mas, pelos vistos, são outra coisa por trás", reclama Madalena Martins.
Os ciganos constituem a população mais jovem, numa aldeia com um grande índice de envelhecimento, mas não serão estas idades que votam em André Ventura mas os mais novos, estima António Montezo.
É uma perceção que mereceria um estudo sociológico e Póvoa da São Miguel é seguramente um caso de estudo.
"Não gosto de como vivem"
Uma mulher atravessa a aldeia, acompanhada por uma filha pequena. Assume que votou em André Ventura, mas não quer dizer o nome. "Damo-nos todos bem com os ciganos. Votei no Ventura porque não concordo com a forma como vivem, às nossas custas. Eu ganho o ordenado mínimo e eles levam para casa 800/900 euros por família sem trabalhar. Ainda se gastassem o dinheiro nos filhos, não. Se soubesse como as crianças chegam à escola. Não têm condições", justifica. Tem 45 anos, não tem ideologia ou partido. "Voto PS ou PSD e, até, CDU, voto conforme os candidatos, se gosto do que dizem".
Ana Maria Queirós, 77 anos, uma vida a trabalhar no campo, diz que Ventura ganhou "porque fez a coisas bem". O que é que é "fazer as coisas bem?" "É fazer o que as pessoas gostam de ouvir", atira. Não foi votar este domingo, mais por inércia do que por medo de contrair a doença. "Sabia quem ia ganhar, acomodei-me. Aqui não temos covid, felizmente, parece que só houve um caso".
Não sabemos os números da aldeia, mas o concelho de Moura, ao qual pertence, passou para o risco extremamente elevado de infetados com a doença.
Ana Maria está à conversa com Romana Carrasco, 76 anos, a vizinha da frente. Trabalhou na agricultura e chegou a "ter um comércio". "As pessoas aqui pensam que são ricas, muitos são do PSD e, agora, viraram-se para o Chega. Não me surpreende grande coisa os votos no Ventura, penso que terá sido por morarem aqui muitos ciganos, mas eles não fazem mal, não há problemas com eles", analisa Romana. Assume-se do PS, partido que tem ganho as últimas eleições. Votou em Marcelo.
"Olhe, tudo isto é muito triste. Fico triste por nos estarem a chamar fascistas", lamenta uma mulher que trabalha na Associação de Apoio Domiciliário e que presta apoio a cerca de 30 idosos. Não diz o nome. "Não gosto de política".
Vítor Ramalho é filiado no Chega, uma filiação que tem menos de um ano. Justifica a votação que teve o candidato do seu partido: "Possivelmente, porque temos uma população cigana e que está a dominar. A maioria nasceu aqui mas, da maneira como se reproduzem, são muitos. Na escola [Escola B1 da Póvoa de São Miguel] devem ser uns 50 da etnia e seis ou sete dos nossos. Votei às 10:30 e estava uma fila de 20 ou 30 para votar".
É a sua opinião, embora não tenha nada "contra eles". Acaba por dizer que alguns tiram coisas, embora não lhe tenha acontecido, mas com o pai que tem uma drogaria.
O pai é Francisco Ramalho, 81 anos. Tem na comunidade cigana uma boa parte da sua clientela. Está há 17 anos na loja que herdou do pai. "Não tenho problema com os ciganos e estão integrados. E muitos deles trabalham no campo", assegura. Mas não fica surpreendido com a votação do candidato do Chega às presidenciais . "A maioria deve estar à espera que a sua situação melhore", justifica. Embora seja "uma freguesia de gente remediada, sem pobreza".
Vítor, o filho, é empresário agrícola. Tem uma vacaria. Teme que o partido ali tenha menos votos no futuro, uma vez que a comunidade cigana vota e tem vindo a crescer.
Ciganos unidos por Ana Gomes
A comunidade cigana garante que se uniu para votar contra André Ventura, sobretudo em Ana Gomes. Alguns também em Marcelo Rebelo de Sousa. Refira-se que o presidente da República obteve 30.7 % dos votos (100) e Ana Gomes, 20,62 %.
A candidata socialista obteve aqui a melhor percentagem.
"Aqui ganhou o Ventura, mas a Ana Gomes é que ficou em segundo lugar no país e deve-o a nós. A comunidade cigana é muito unida, telefonamos todos para votar na Ana Gomes. Estamos contentes por isso. Ganhou o Marcelo e a Ana Gomes ficou em segundo", assegura Mário André, 20 anos, feirante.
Tem um filho.
André Ventura teve boa votação nos distritos do Alentejo, ficando em segundo lugar em muitos deles. Concelhos de tradição comunista, facto que tem sido apontado para justificar uma transferência dos votos do PCP, mais um caso para estudo. Não parece ser isso que se passou em Póvoa de São Miguel.
Póvoa de São Miguel deixou de ser terra de votantes comunistas em 2005, se estivermos a falar das eleições autárquicas. Passou a ganhar o PS, seguido do PSD e do PCP. Em 2013, o PCP voltou a ganhar, mas voltou ao segundo lugar em 2017. Nas legislativas de 2019, ficou na quarta posição, depois do PS, do PSD e do Chega. Tinha ficado em em terceiro em 2015.
Quanto às presidenciais, Edgar Silva, o candidato do PCP em 2016, teve 4,05 % dos votos, mais 1% do que João Ferreira nestas presidenciais.
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