A ambição dos algarvios na realização de um II Congresso Regional atravessou décadas e regimes políticos. Recorde-se que em 1915 teve lugar na Praia da Rocha o I Congresso Regional, que já aqui evocámos.
Na altura logo se aventou para 1918 a realização de uma nova reunião magna.
Todavia, a entrada de Portugal na I Guerra Mundial, em 1916, a instabilidade advinda, o golpe militar de Sidónio Pais, o falecimento precoce de Tomás Cabreira, a alma mater do I Congresso, foram algumas vicissitudes que fizeram protelar a iniciativa, às quais se juntaram a instauração da Ditadura Militar e a consolidação do regime ditatorial, com o Estado Novo, a partir de 1933.
Não obstante a imprensa noticiar amiudadamente a sua realização (1920, 1928), só no fim da década de 1940 ela ganhou alguma solidez. Ainda assim as dificuldades levantadas pelo regime fizeram adiar a sua realização «definitivamente marcada para os primeiros dias de Fevereiro» de 1950, conforme noticiava o periódico «Correio do Sul», na sua edição de 29/12/1949, para o ano seguinte.
Tempos em que o significado das palavras também mudava ao sabor dos interesses governamentais.
Afinal, havia que garantir «que não caíssemos nos inconvenientes de assistir ao debate de ideias que nos não interessassem», ou seja, os críticos do regime, todos aqueles que logravam pensar diferente, jamais poderiam participar. A comissão organizadora teve pois de expurgar vozes incómodas, o que terá protelado a concretização do evento.
Os resumos das teses, conferências e comunicações, organizados por Mário Lyster Franco, foram publicados em 1950, mas o evento teve lugar somente a 26, 27 e 28 Janeiro de 1951 e, contrariamente ao previsto, não decorreu em Faro, mas em Lisboa.
A participação implicava um custo mínimo de 100$00 (0,50 €), uma pequena fortuna para muitos portugueses na época. Mais de 35 anos depois da Praia da Rocha os problemas do Algarve voltavam a debate, ainda que sob o crivo da censura.
A organização coube à diligente Casa do Algarve, criada em Lisboa em 1930, presidida por Amadeu Ferreira de Almeida. À exceção das sessões de abertura e de encerramento, que ocorreram na sala «Algarve» da Sociedade de Geografia, as restantes tiveram lugar na sede daquela coletividade, na Rua Capelo n.º 5, para onde se havia transferido no mês anterior.
Ao todo foram efetuadas 41 comunicações, subdivididas em quatro temáticas, «História, Arte e Arqueologia», «Problemas Económicos, Assistenciais e Administrativos», «Educação, Desporto e Turismo» e por fim «Assuntos Diversos».
Ferreira de Almeida traçou na sessão de abertura os principais problemas da região, sintetizados pelo «Diário de Notícias» (DN), como os arranjos nas estradas de acessos à Praia da Rocha, principalmente por Odemira, a construção de uma estação de correios em Faro e de um aeroporto de «características internacionais, para em caso de emergência, substituir o de Lisboa».
O diário «O Século» sobre o seu discurso acrescentou «não há uma só estrada alcatroada e a poeira contrária incomoda e afasta os turistas principalmente os estrangeiros». Na Praia da Rocha faltava água, «a tal ponto que os hotéis não podem fornecer banhos aos seus clientes».
A Praia da Rocha, as Caldas de Monchique e Sagres eram consideradas na época o expoente maior das potencialidades turísticas do Algarve – a trindade maravilhosa, a que se adicionava o espetáculo proporcionado pelas amendoeiras floridas, «num milagre perpetuamente renovado de beleza, harmonia, de graça e das melhores esperanças», nas palavras de Lyster Franco, secretário-geral do congresso e segundo orador.
Um Algarve ainda longe das praias, mas onde estas já mereciam referências, ainda que ténues, e como estâncias de inverno. O orador seguinte, António Baião, debruçou-se sobre a transferência da sede episcopal de Silves para Faro. A sessão inaugural, emitida em simultâneo pela rádio, terminou com a intervenção do governador civil, que lembrou que o «Algarve só pela união dos algarvios pode ser mais olhado pelo poder central, mais amado pelo país e melhor servido pelos seus filhos», uma constatação que não perdeu atualidade.
Em «Consagrem-se condignamente os valores algarvios», Lyster Franco propôs a criação de monumentos a diversos algarvios. Estiveram ainda em destaque as Cantigas de Santa Maria, por Francisco Fernandes Lopes, bem como «subsídios para o estudo da vida económica no “cyneticum”», povos antigos que ocuparam a região, os cinetes. Concluindo o orador, Bairrão Oleiro, que as principais características económicas do Algarve não haviam sofrido «grandes modificações com o decorrer dos séculos»: tinturaria, lagares, cultura do esparto e sobretudo da pesca e indústrias correlativas.
À noite, a Casa do Alentejo ofereceu um porto de honra aos componentes do congresso algarvio. Na manhã seguinte estiveram em discussão a profilaxia e terapêutica das doenças mentais na região, museus provinciais e museus do Algarve, a pesca do atum e a sua defesa, bem como igrejas e capelas do Algarve, apresentadas, respetivamente, por Manuel Silva, Justino Weinholtz, António Galvão e Pinheiro e Rosa.
O primeiro orador, entre outros aspetos, enalteceu a secção psiquiátrica da Misericórdia de Faro e criticou os métodos primitivos usados pela população na cura de enfermidades. Weinholtz frisou a importância dos museus como fatores de desenvolvimento da cultura popular e elevação cultural dos portugueses, defendendo a instalação em edifício próprio das coleções de arte existentes em Faro, o qual deveria reunir a biblioteca, o museu, arquivo e recinto para manifestações de carácter popular.
Por sua vez, Galvão colocou em destaque a importância da pesca e do atum em particular, na economia regional, bem como solicitou ao governo a necessidade de maior fiscalização para a defesa da atividade.
Pinheiro e Rosa fez a história de cerca de 200 templos e demonstrou a indispensabilidade de efetuar obras de restauro em 27 deles. O congresso prosseguiu com as teses «Águas minerais do Algarve e da Andaluzia», de Ascensão Contreiras e a construção de um jardim escola na terra de João de Deus, por Maurício Monteiro.
Francisco Barros propôs dez medidas para a defesa dos produtos frutícolas em «os frutos do Algarve, sua produção e comércio».
Recorde-se que este setor da economia regional, então um dos mais importantes, vinha já a registar algumas dificuldades que se agudizariam nas décadas seguintes. As derradeiras comunicações do painel foram a arqueologia na Serra da Monchique, de José Formosinho, Octávio Pereira e Abel Viana e a arquitectura tumular do Bronze inicial na região, também de Octávio Pereira.
À tarde estiveram em relevo, entre outras, a entomofauna regional, por Armando Castel-Branco, a utilidade da criação de um conservatório regional de música, em Faro, por Pavia de Magalhães, o pensamento filosófico teológico do sufismo muridínico no Algarve, de Garcia Domingues, e Afonso X, o sábio, como rei do Algarve, de novo por Francisco Lopes.
A sessão prosseguiu com a localização de Ossónoba, de Abel Viana, sustentando o autor que esta se situava em Faro e não em Estoi, como durante muito tempo se defendeu, os problemas das Caldas de Monchique, com a necessidade da conclusão dos trabalhos que ali decorriam, de Alberto Sousa e o turismo no Algarve, de Julião Quintinha.
Este último, segundo o DN, expôs «os motivos que impõem o Algarve como província turística por excelência», apresentando diversas sugestões «tendentes a uma indispensável valorização do turismo local».
Entre elas mencione-se a conclusão do plano de urbanização da Praia da Rocha, bem como das obras das Caldas, construção de uma pousada de turismo e de um monumento ao Infante em Sagres, sem esquecer um aeroporto em Faro. Defendia ainda a abertura de um «posto internacional de propaganda e informações turísticas em Vila Real de Santo António».
Durante o debate foi lembrada a deficiente iluminação de muitas localidades e a falta de abastecimento de água às mesmas, além de se «dar realização ao casino de Armação de Pêra». A derradeira sessão foi sobre o Refúgio Aboim Ascensão, de José Lage.
O dia terminou com um jantar de confraternização na Casa do Algarve, com perto de uma centena de algarvios. Na manhã de dia 29 o congresso prosseguiu ininterruptamente das 10h00 às 15h00.
Entre os painéis note-se os pintores do Algarve, de Virgílio Passos, defendendo a promoção de exposições de artes plásticas em Faro, Praia da Rocha e Monte Gordo.
Durante o debate, surgiu uma sugestão profícua de Julião Quintinha: a publicação periódica de um boletim, pela Casa do Algarve, com estudos sobre a região (económicos, históricos, literários e artísticos). Uma prática que logo se tornou frequente com a edição de preciosos ensaios. Das outras teses relevo para o Algarve carece de aviação civil, ou hotéis e pensões de turismo, ambas de Ferreira de Almeida.
Estas propunham a criação de carreiras de hidroaviões, no Verão, que fizessem a viagem entre Lisboa e Faro e entre os portos e as praias algarvias, além da remodelação dos estabelecimentos de hospedagem de modo a torná-los atraentes e confortáveis.
Por sua vez, Julião Quintinha deteve-se sobre a indústria corticeira, enquanto Tavares Franco em o Algarve na produção da cortiça portuguesa.
Esta indústria atravessava um período de grande crise na região, sendo solicitadas várias medidas ao governo para a atenuar. Também aos algarvios era proposta a substituição dos sobreiros velhos por novos, de forma a dar continuidade à excelência da cortiça algarvia.
Foi também submetido à apreciação dos congressistas um estudo sobre frutos do Algarve, o qual demonstrava a singularidade da província, no contexto nacional, por as árvores de furto (figueira, amendoeira) sobrelevarem qualquer outro produto agrícola.
José Murta, em «mais pão para a boca e mais pão para o espírito», advogou a criação de uma escola técnica agrícola em Loulé, especializada em arboricultura, com algumas aulas de artes e ofícios, bem como a criação de um conservatório em Faro. A estância de turismo da Praia da Rocha, de Velho Correia, trouxe de novo à liça as potencialidades da região enquanto destino turístico, pedindo ao governo para «reorganizar as bases essenciais em que esta indústria deverá, no futuro, assentar», e «mais autonomia e mando» para as forças vivas locais.
Um derradeiro pedido, ainda que longe da independência do Algarve, defendida na segunda década do século XX, de certo horrorizou as autoridades do regime.
Reiterou também a necessidade de um aeroporto, o aperfeiçoamento das vias de comunicação, e a limpeza pública, medidas tidas como «absolutamente essenciais para que o turismo se possa desenvolver no Algarve».
O problema da tuberculose, «a peste branca», esteve em evidência por Gabriel Galvão, enquanto José Madeira destacou as caraterísticas meteorológicas da região, enunciando as especificidades que poderiam levar à escolha do Algarve para a realização de estudos científicos, «um verdadeiro laboratório», mas também para desportos náuticos e afins. Elencou as condições excecionais para a construção de um aeroporto, considerando que o mesmo não devia
ser adiado por mais tempo.
O mesmo orador proferiu seguidamente uma comunicação sobre o litoral, lembrando «o perigo que corre Quarteira de ser destruída pelo mar», pois, afinal, em 25 anos o mar avançara mais de 100 m sobre a aldeia, e a carência de uma intervenção na foz do rio Guadiana, sem descurar o «perigo de dispêndios exagerados em trabalhos que a natureza condenou inexoravelmente».
Propôs ainda a consagração nacional do Infante D. Henrique com a criação de um estabelecimento científico (hidrografia e meteorologia) próximo de Lagos.
O combate à erosão dos solos e a criação do ensino superior foram assuntos que também vieram a debate. Manuel Guerreiro propôs a valorização do Algarve sob o ponto de vista agro-pecuário, evocando os danos da erosão intensa na serra, sugerindo a sua imprescindível arborização e a criação de albufeiras nos rios, para irrigação.
Sobre este assunto foi ainda apresentada uma outra comunicação por Francisco Mendonça. Por sua vez, Mariana Santos discorreu sobre a história da filosofia no Algarve, enquanto Garcia Domingues, sobre o problema cultural, propondo a instalação de centros de estudos, como base para a criação de uma universidade.
Já Lyster Franco leu «subsídios para uma bibliografia do Algarve», um estudo que vinha a realizar e que ficaria conhecido como «Algarviana».
No congresso foram também apresentadas, entre outras, as teses sobre os desportos náuticos, ou a raça e população algarvia, pelo Ginásio Clube Naval de Faro e Maurício Monteiro, respetivamente.
A sessão de encerramento foi presidida pelo farense Adelino da Palma Carlos, então bastonário da Ordem dos Advogados (mais tarde primeiro-ministro do I Governo Provisório, a seguir à Revolução de 1974).
Palma Carlos considerou os problemas da região como problemas nacionais, lembrando que o congresso mostrou o «Algarve a Portugal – um Algarve dinâmico e diferente da província ensimesmada que muitos imaginavam».
Nessa noite, decorreu a festa de despedida na Casa do Algarve e, no dia seguinte, a Câmara de Lisboa e a Carris ofereceram um passeio turístico pela cidade e com ele terminava a reunião magna dos algarvios, amplamente difundida pela imprensa nacional.
O II Congresso Regional Algarvio foi a reunião possível, que o regime consentiu. Pese embora esta realidade, ele materializou-se num momento de viragem económica do Algarve. Nele estão patentes as dificuldades que se faziam sentir na indústria corticeira e conserveira, mas também na agricultura, principalmente nos frutos secos, as bases da economia regional de antanho e que perduraram até meados do século XX, e a mudança de paradigma com a afirmação do turismo, cujas potencialidades, já evidenciadas em 1915, se consagravam agora a velocidade cruzeiro.
Em 1951, foram apresentadas quase o dobro das teses relativamente a 1915, com uma outra particularidade, por entre os oradores surgiu uma mulher, também ela algarvia, como a maioria, todos académicos, a olhanense Mariana Machado Santos.
Apesar de ter ficado planeado um novo congresso para 1953, e depois de, em 1957, a imprensa propalar a sua realização, os problemas do Algarve só voltaram a debate após o 25 de Abril, mais concretamente em 1980.
Volvidos 70 anos, a pluralidade das propostas então elencadas estão concretizadas, como uma das mais iteradas, o aeroporto (1965), o Conservatório e o Museu de Faro (1973), ou a Universidade (1979), mas também não é menos verdade que a serra continua por arborizar, ou que a «Algarviana», de Lyster Franco, não viu ainda a luz do dia.
Por outro lado, as «aulas» de artes e ofícios em Loulé surgiram já nos nossos dias, enquanto as amendoeiras quase desapareceram das paisagens algarvias. Quanto à autonomia, não passou até agora de uma utopia.
A aposta no turismo, como alternativa à crise que se começava a sentir na agricultura e nas pescas, foi seguramente o feixe de luz, para o futuro, do farol que constituiu o II Congresso Regional Algarvio.
Todavia, hoje é o turismo que vacila, numa crise que também pode e deve ser uma oportunidade para transformar a região mais sustentável e menos dependente de uma única atividade económica, como vinha a suceder.
Como diz o adágio popular «não se deve colocar todos os ovos na mesma cesta».
Hoje a pandemia, amanhã o sismo e o tsunami…
Terminamos parafraseando o governador civil, Luís Vaz de Sousa: o «Algarve só pela união dos algarvios pode ser mais olhado pelo poder central, mais amado pelo país e melhor servido pelos seus filhos». Um alvitre tão atual como então.
Autor: Aurélio Nuno Cabrita é engenheiro de ambiente e investigador de história local e regional, bem como colaborador habitual do Sul Informação.
Nota: Nas transcrições manteve-se a ortografia da época.
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