A vida da esquerda portuguesa parece, por vezes, começar e acabar na direita portuguesa.
O modo como olha para as origens e efeitos do Chega é a prova mais recente disso. Primeiro, o surgimento do partido de André Ventura foi culpa de Pedro Passos Coelho, por não lhe retirar apoio nas autárquicas de 2017, supostamente legitimando assim uma candidatura populista com o selo do seu partido. Lembro-me bem de ouvir Ana Catarina Mendes fazer um esforço enorme por colar Passos, logo ele, a acusações de racismo e tudo mais.
A tese era tonta, mas o facto é que correu, e houve muita gente a analisar o fenómeno sem se rir, clamando que um movimento populista que vale hoje meio milhão de votos se deve ao apoio ou não apoio do PSD a uma candidatura a Loures que ficou, na altura, em terceiro lugar. Volvidos quatro anos, o terceiro lugar mantém-se, a reação do PS também, mas a dimensão de Ventura é outra. Nacionalizou-se.
Independentemente disso, a resposta do Partido Socialista à ascensão do populismo de direita continua a ser usá-lo como arma de arremesso contra o centro-direita, recusando-se a combatê-lo de forma programática, estratégica ou minimamente séria. Na noite eleitoral das presidenciais, Carlos César fez por isso, classificando o Chega como uma ameaça maior ao PSD do que ao país. Catarina Martins não lhe ficou atrás, entrando igualmente no comboio de atirar o resultado de André Ventura para cima "da direita", isto é, do PSD e do CDS, na ironia que é ver a esquerda, óbvia derrotada dessa noite, a varrer o pó para baixo do tapete da oposição.
Não compreenderão que o primeiro beneficiário de um centro-direita em crise é o Chega, que supostamente detestam? Se calhar compreendem, mas terão outras prioridades. António Costa, ao apoiar tacitamente um homem do PSD e ao negar ao mesmo tempo o apoio do seu partido a Ana Gomes, enveredou por um taticismo semelhante.
O outro argumento da massa pensante à esquerda passa por aí. Daniel Oliveira, que estimo, é o seu maior difusor. O Chega cresce porque as lideranças da oposição são incompetentes. Olhando para elas, é difícil discordar. Mas custa-me ver o cargo de presidente do PSD como constante bode expiatório dos males da nação. Primeiro, culpou-se Passos, por ser demasiado à direita e dar cobertura ideológica a Ventura. Agora, culpa-se Rio, por ser demasiado ao centro e dar espaço político ao Chega. E amanhã, se o PSD não existisse, a culpa seria certamente dessa sua não existência.
A mim, palpita-me que não é assim ‒ ou, pelo menos, não só assim. A institucionalização de partidos como o Bloco de Esquerda e o PCP, nos quatro anos de geringonça, privou o sistema político das suas tradicionais válvulas de escape.
O voto de protesto migrou para quem continuou a protestar: Ventura. Se voltarmos um pouco atrás, quando a legislatura 2015-2019 terminou não havia um único partido com assento parlamentar que não tivesse votado e aprovado metas de Bruxelas.
O Bloco foi para legislativas a falar em "contas certas" e o PS converteu-se num campeão do superávite. Desconsiderar as consequências dessa uniformização ideológica em torno do bom comportamento orçamental seria um erro de análise. Sendo António Costa o pai da solução partidária que o proporcionou, e que deu quatro anos de paz social ao país, as alterações no cenário partidário são também da sua autoria. E não vale a pena escondê-lo. Podemos poupar-nos a mais testes de paternidade, senhoras e senhores. O Chega é filho de todo o regime e uma ameaça para todo o regime. Façam por combatê-lo.
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