Quando falamos em músicas da ditadura, é comum lembrar de Cálice. Afinal, Chico Buarque é um compositor incrível e criou letras fenomenais para criticar um dos períodos mais duros da história brasileira. Como se expressar e driblar a censura em tempos tão difíceis?
Você já deve conhecer um pouco da história da letra, mas você sabe que a gente adora fazer uma análise completa, né? Por isso, o nosso tema de hoje é a canção de Chico.
Análise da música Cálice
Vamos contar um pouquinho sobre a letra da música, verso a verso:
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Esse primeiríssimo verso é uma passagem bíblica! Vem de Pai, se queres, afasta de mim este cálice (Marcos 14:36). Com uma pequena alteração, a referência é feita de um jeito interessante e aparentemente católico, mas, na verdade, é uma crítica ao regime.
A ideia de Cálice nada mais é que um jogo do compositor para driblar a censura. Inclusive, a metáfora do cálice só é utilizada no refrão e em poucos versos.
Afinal, cálice, na verdade, é cale-se. Ou seja, em pai, afasta de mim esse cale-se, Chico pede que possa se expressar em paz. Mas o cantor aproveita o jogo de palavras e estende a ideia: o cale-se é manchado do sangue vindo da repressão imposta pela ditadura.
Como beber dessa bebida amarga?
Tragar a dor, engolir a labuta?
Como aguentar a repressão e prosseguir? Na dor de viver o regime militar, Chico se indaga sobre sua própria energia para sobreviver a essa época tão sofrida. Lembra do vinho tinto de sangue que comentamos ali em cima? É essa a bebida amarga que dói e é difícil de engolir.
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
Apesar de silenciadas, as pessoas não deixam de sofrer, apenas não são ouvidas. A boca está calada, mas a dor permanece.
De que me vale ser filho da santa?
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta
A família Buarque de Holanda tem grande prestígio: a mãe de Chico, Maria Amélia, foi uma intelectual brasileira. Casada com Sérgio Buarque de Holanda, famoso sociólogo, tiveram sete filhos.
Ao se chamar de filho da santa, Chico pode estar sendo literal e falando sobre vir de boa família, mas em uma época em que a filosofia, a sociologia e a crítica não valem muito.
O mais importante em filho da santa/filho da outra, na verdade, é ele dizer que seria mais fácil se ele fosse filho da p*! Nesse ponto, de forma desafiadora, ele reflete que só não está sofrendo é quem é cruel e repressor.
Em tanta mentira, tanta força bruta, o artista critica a alteração da verdade por parte da imprensa, controlada pelo Estado. E, claro, a violência desmedida.
Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Na época, eram comuns os ataques “surpresa” da polícia militar, que invadiam casas e tiravam pessoas de suas camas. Alguns eram presos, alguns torturados, outros desapareciam.
Enquanto tudo isso acontecia na calada da noite, Chico se via ainda mais angustiado por não poder agir ou falar a respeito.
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa
Apesar de se sentir impotente e atordoado com a repressão, Chico mostra que não deixou de estar atento.
O monstro da lagoa era uma expressão usada para falar dos corpos de pessoas desaparecidas, que emergiam em mares ou rios nessa época. Imagina que sofrimento encontrar um amigo seu dessa forma?
De muito gorda a porca já não anda
De muito usada a faca já não corta
A porca gorda é uma analogia para representar a ganância do governo corrupto que não consegue mais operar. Já a polícia, com toda a sua brutalidade, não corta: seu poder vai enfraquecendo, de tanto abusar da violência.
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
Com tudo isso acontecendo, fica difícil abrir a porta e sair de casa. É muito sofrimento preso na garganta, com as coisas de ponta-cabeça. Daí vem o pileque homérico: tudo estava tão fora do lugar que é como se o mundo tivesse bêbado.
De que adianta ter boa vontade?
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade
Não adianta querer se expressar, fazer arte e lutar pela democracia, a sensação de impotência é maior. Além disso, pode ser que esse verso seja outra referência a uma passagem bíblica, que diz Paz na terra aos homens de boa vontade. Com o regime militar, não adianta ter boa vontade, pois a paz não vem.
Mas a vida boêmia ainda existe, mesmo que reprimida. O pensamento crítico ainda existe, mesmo que calado. São esses os bêbados do centro da cidade: as pessoas rebeldes que tentam sobreviver em meio ao caos.
Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um fato consumado
Aqui, surge uma pontada de esperança por parte do compositor. Talvez a vida não tenha que ser assim tão sofrida e a ditadura não esteja garantida para sempre.
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça
Apesar do tom amargo dos versos, existe aqui ainda uma rebeldia. Chico quer ser dono do seu próprio corpo e escolher o que fazer com ele, sem acatar ordens.
Há, ainda, uma referência aos métodos de tortura mais comuns da época (como cheirar fumaça de óleo diesel). Fica uma denúncia e tanto, né?
História da música
A canção foi composta pelo próprio Chico (com colaboração de Gilberto Gil) e foi submetida ao Phono 73, uma espécie de festival que reunia grandes artistas da gravadora Phonogram.
É claro que Cálice não passou pela censura e foi reprovada, mas isso não impediu o artista de apresentá-la com seu colega e amigo Gil.
O resultado é uma letra murmurada por Gil e atravessada pelo próprio Chico, que proclamava cale-se. Ainda assim, o som dos microfones foi cortado em plena apresentação. Tudo isso foi documentado neste vídeo:
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