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segunda-feira, 4 de maio de 2020

Quando a honra se lavava pela lei das armas

 


0001_M.jpgUma “instituição que, quando não é perigosamente ridícula, é ridiculamente perigosa”, mas que se manteve até ao final dos anos 20 e chegaria a ser colocada à consideração de Salazar. Era assim o duelo, indispensável à manutenção da honra dos mais distintos senhores da sociedade portuguesa.

Custa imaginar, mas há menos de cem anos, os cavalheiros portugueses batiam-se em duelo por dá cá aquela palha. Bem, não seria por tão pouco. Era, sim, por questões de honra, a tal que só podia ser lavada com sangue, nem que fosse apenas uma gota. Entre as últimas décadas do século XIX, e os primeiros anos da jovem República, os ânimos andavam de tal forma exaltados que, praticamente todas as semanas, uma elite formada por deputados, militares, jornalistas e até membros do governo, dirimiam a suas afrontas à lei da bala, do sabre ou da espada, num ritual que raramente fazia mortos.

Os duelos, embora proibidos por lei, eram tolerados como forma de evitar cenas de pancadaria, atividade reservada a classes sociais sem gabarito. Os senhores travavam duelos com opositores de igual estirpe, já que apenas esses tinham o poder de ofender os seus pares.

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A escolha das testemunhas, o desafio, a seleção das armas e o confronto propriamente dito, obedeciam a regras há muito traçadas. As salas de armas, onde os gentis-homens praticava tal arte beligerante estavam muito em voga, mas não era incomum um dos antagonistas nunca ter empunhado qualquer espada e ver-se, de repente, a defender a pele brandindo uma, de madrugada, num ermo junto da cidade de Lisboa. A dignidade assim o ditava.
A contenda era dada como finda com honra para ambas as partes “ao primeiro sangue”, ou quando um dos opositores fosse declarado em inferioridade, por ferimento. Sim, porque estes eram cavalheiros modernos e não selvagens, como se poderia pensar de quem arrisca a vida porque ouviu no parlamento ou leu no jornal frases pouco abonatórias sobre si ou os seus.
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As coisas, no entanto, nem sempre acabavam de forma inofensiva, especialmente quando se tratava de armas de fogo. O bom senso e o uso ditavam que os adversários deveriam disparar para o céu, evitando ferir-se.
Mas, não foi isso que aconteceu quando Miguel de Sá Nogueira desafiou José Júlio de Oliveira para um duelo, como desagravo por este ter chamado “demente” ao seu velho tio, António Cabral de Sá Nogueira. A afronta foi mortal para o deputado transmontano que, embora contrariado, acabaria por se bater, corria o ano de 1869. Não lhe passou pela cabeça recursar-se, que isso era sinal de inaceitável cobardia, passível de o desvalorizar para sempre junto dos seus.
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Embora, basicamente, uma encenação sem consequências, provou-se – como se fosse preciso - que os duelos podiam ser fatais. Foi aliás outra história trágica que muito contribuiu para o fim deste costume masculino.

Em 27 de dezembro de 1925, cruzaram armas António Maria Beja da Silva, vereador da Câmara Municipal de Lisboa, e o diretor das Companhias Reunidas de Gás e Eletricidade, António Centeno, que se considerou ofendido em relação ao primeiro. Durante o duelo, Beja da Silva, que se estreava, teve uma crise cardíaca que acabaria por matá-lo. O desfecho impressionou a opinião pública e deu força aos, já então muitos, oponentes deste tipo de lavagem da honra.

O último combate, no entanto, terá sido só em 1928, entre Dias Ferreira e Beirão da Veiga, dois pacatos professores do Instituto de Ciências Económicas e Financeiras, que não encontraram melhor forma de resolver divergências profissionais. Mesmo o então comandante da PSP, o Coronel Ferreira do Amaral, que era contra os duelos, entendendo-os como uma “instituição que, quando não é perigosamente ridícula, é ridiculamente perigosa”, conhecendo o ânimo daqueles adversários, terá dito: “se me obrigam a proibir o duelo, eles terão que se bater a murro” … tal era a força da inevitabilidade.

Há informações sobre outras contendas que por pouco não acabaram em armas já depois daquela data: nos anos 40, Francisco Sousa Tavares terá desafiado para um duelo o “capitão maldisposto”, que considerou tê-lo insultado, quando prestava serviço militar. “Proíbo o duelo por ser instituição caída em desuso e contrária aos sentimentos religiosos do reino”, escreveu Salazar, última instância à qual o assunto foi colocado. Estava definitivamente encerrada a questão.

À margem
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O duelo não era tópico para qualquer um. De facto, envolvidos nesta atividade, como duelistas ou, no mínimo, testemunhas, temos a fina flor dos cavalheiros daquele tempo muitos dos quais com nome depois lavrado na história nacional. Casos de Afonso Costa (de costas na imagem) e Francisco Cunha Leal, chefes de governo; o futuro general Norton de Matos ou o médico e prémio Nobel, Egas Moniz. Não obstante, com o correr dos anos, os oposicionistas ganharam peso. Aliás, logo no raiar da República (em 31 de dezembro de 1910), o Governo Provisório lançou um decreto onde se cria o Tribunal de Honra de Lisboa, destinado a resolver rapidamente, sem necessidade de intervenção da justiça “ordinária”, as pendências de honorabilidade, dissuadindo-se os envolvidos de resolvessem as questões pelas suas próprias mãos. A tentativa não teve muito sucesso e o dito tribunal foi extinto em agosto do ano seguinte.
Mas isso é outra história…

Fontes
Artur Portela – Os grandes duelos em Portugal; Livraria Popular de Francisco Franco, Lisboa, s/d

Mário Matos e Lemos - O duelo em Portugal depois da implantação da República - Revista de História das Ideias vol. 15; Imprensa da Universidade de Coimbra, 1993, em http://hdl.handle.net/10316.2/42007
Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa
http://arquivomunicipal2.cm-lisboa.pt/sala/online
Joshua Benoliel
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