Voltar aos primeiros Jogos Olímpicos é fazer uma deliciosa visita à sociedade do início do século 20 e sua forma de praticar e acompanhar esporte. Da crescente participação feminina e as modalidades que se perderam no tempo à aura de aristocracia que roupas e atitudes emprestavam ao evento, tudo aponta para a evolução de uma competição que, ao longo dos anos, ganharia protagonismo.
Nesta primeira de três edições da revista “A história dos Jogos Olímpicos”, o período compreendido entre a Antiguidade e Berlim-1936 é apresentado com todas as suas idiossincrasias. Nossa viagem pela Era Moderna se inicia com o Barão de Coubertin, responsável por resgatar o espírito da celebração esportiva de quase 3 mil anos atrás. Com os Jogos de Atenas-1896, seu sonho de unir nações, suspender guerras, estabelecer o diálogo entre os povos e promover a harmonia global começou a tomar forma.
Mas as coisas não saíram exatamente como o nobre francês gostaria: o esporte acabou se profissionalizando, o que o fez abandonar a presidência do Comitê Olímpico Internacional depois de Paris-1924, e as Olimpíadas foram interrompidas em razão da Primeira e da Segunda Guerras Mundiais. No entanto, Coubertin conseguiu manter vivo o conhecido lema “O importante não é vencer, mas competir. E com dignidade” por muito tempo, e viu de longe o primeiro grande uso político dos Jogos, por Adolf Hitler, na Berlim de 1936.
A partir do fim da Segunda Guerra, em 1945, as tensões políticas, sociais e culturais se tornaram cada vez mais presentes. Na segunda edição da série “A história dos Jogos Olímpicos”, as Olimpíadas entre Londres-1948 e Seul-1988 serão o tema. A terceira e última falará dos Jogos a partir de Barcelona-1992 até Londres-2012.
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O início de tudo
Na Grécia Antiga, Zeus carregava como símbolo do seu poder um raio. Representação da velocidade, que daria aos homens comuns da época o status de herói na origem dos Jogos Olímpicos, em 776 a.C. (antes de Cristo). Quase três mil anos depois, um dos atletas mais esperados no Rio, o jamaicano Usain Bolt, ganhou o codinome desta força da natureza por seus feitos no esporte fundador das Olimpíadas.
Mas no começo de tudo, foi um cozinheiro, chamado Koroibos, o grande personagem. Ele venceu os primeiros Jogos Olímpicos da Antiguidade, em Olímpia, ao chegar à frente dos demais competidores na única prova daquela edição, conhecida como estádio, ao percorrer pouco menos de 200 metros — o comprimento do local de competição.
Ele teve a honra de ser o primeiro campeão a receber o Kotinos (uma coroa com ramos de oliveira) na entrada do Templo de Zeus, o Deus dos deuses gregos, a quem os Jogos eram dedicados de quatro em quatro anos — período denominado de Olimpíada. Sempre foram organizados no mesmo lugar: Olímpia, uma das principais cidades de Peloponeso, considerada um santuário, onde estavam os templos de Zeus e Hera, e um local de atividade religiosa e política.
Nas distintas versões históricas, os Jogos da Antiguidades têm relação com a mitologia grega. Há quem defenda que tudo teve início com o semideus Heracles de Ida ou que foram instituídos pelo próprio Zeus em memória de sua luta com Kronos. Há ainda o mito de que Hércules, filho de Zeus, organizou o evento em honra de seu pai após ter derrotado Áugias, Rei de Elis.
Qualquer que seja a história verdadeira, o propósito era esportivo. Ou melhor, o objetivo era mostrar as qualidades físicas e a evolução da performance dos homens. Além disso, era uma forma de socialização entre as cidades gregas. Tanto que, a partir do século IX a.C., foi instituída a tradição da "Trégua Olímpica" ou "Ekecheiria". Nesse período, as guerras eram suspensas e atletas, artistas, famílias e os peregrinos em geral podiam viajar até Olímpia para participar ou assistir aos Jogos e, depois, retornar a seus países em segurança. Mensageiros iam de cidade em cidade anunciando a data das competições.
Ao longo do tempo — os Jogos perduraram por 12 séculos —, o evento cresceu em número de participantes e de modalidades olímpicas. Tanto que o tempo de duração passou de um dia para cinco. Os esportes praticados na época eram corrida, que tinha três tipos: estádio (a mais veloz, com pouco menos de 200 metros); diaulo (extensão de dois estádios) e dólico: 20 vezes a extensão do estádio ( há divergências sobre a distância real). As provas de lutas já eram comuns naquela época. A luta livre só terminava quando um dos competidores admitia a derrota. Já no boxe, as mãos eram protegidas com longos pedaços de couro — em alguns momentos da história, pedaços de metal foram somados a essa espécie de luva ancestral, o que tornava os golpes mais violentos. Havia o “Pankration”, um forma primitiva de arte marcial, que combinava luta e boxe. O pentatlo, que se mantém até hoje no calendário olímpico, mas com outros esportes, consistia em correr, saltar em distância, arremessar disco, dardo e lutar. Os chamados eventos masculinas incluíam, de uma só vez, corrida, luta e boxe. Fora do estádio, no hipódromo aconteciam as competições equestres: corrida de bigas (carruagens) e cavalos.
Alguns detalhes, no entanto, não mudaram com o passar do tempo. O "processo seletivo", por exemplo, manteve-se igual, e não é muito diferente dos dias atuais. A seleção dos atletas era feita por cada cidade em seus ginásios. Quando a trégua era anunciada, o treinamento se tornava mais intenso para conseguir a vaga. Durante os Jogos, os atletas competiam nus, segundo algumas versões, modo introduzidos pelos espartanos no século VIII A.C.
Os critérios, porém, eram totalmente diferente dos de hoje. Eram três: ser homem, de origem grega e livre. Escravos, mulheres (com exceção às proprietárias de cavalos) e estrangeiros não podiam participar. Depois que Roma conquistou a Grécia, em 146 a.C, os romanos puderam se juntar aos gregos.
Quanto à participação feminina no evento, há várias teorias. Uma delas diz que nenhuma mulher tinha o direito de estar presente, exceto a Sacerdotisa de Demeter, deusa da fertilidade, que ficava num lugar de honra perto do altar do estádio. Outros historiadores dizem que apenas as mulheres casadas não podiam competir ou assistir aos Jogos, enquanto as jovens virgens e a sacerdotisa podiam ser espectadoras.
Kynisa de Sparta, filha do Rei Arquidamos, é considerada a primeira mulher a conquistar a vitória olímpica, com dois títulos na corrida de biga com quatro cavalos, nos anos 396 e 392 a.C. Porém, ela nunca chegou a competir. Naquela época, o kotinos era dado aos proprietários de cavalos e não aos cavaleiros. De qualquer forma, ela quebrou a tradição, que não permitia mulheres no evento.
Entre os maiores vencedores dos Jogos da Antiguidade está Leônidas de Rhodes. Seu feito é considerado grandioso até os dias de hoje. Em quatro edições seguidas (164 a 152 a.C.), ele venceu as três corridas: estádio, diaulo e dólico. Foram as 12 coroas conquistadas que fizeram dele um dos maiores heróis da história do esporte.
Os Jogos da Antiguidade foram abolidos em 393 d.C. (depois de Cristo) pelo imperador romano Teodósio I, que extinguiu todos os centros e cultos pagãos após se converter ao cristianismo.
Paixão de Coubertin
Se há uma palavra que define o Barão de Coubertin, ela é “paixão”. E não haveria outra melhor para explicar sua trajetória e tudo o que significa para a história do esporte olímpico. É ele o grande homem por trás das Olimpíadas da Era Moderna, que chegam a sua 31º edição no dia 5 de agosto de 2016, no Rio de Janeiro.
Foi a paixão pelo esporte e pela educação a grande motivação da vida do francês batizado Pierre de Frédy. Nascido em uma família aristocrata parisiense, em 1863, abandonou os planos de uma carreira militar por suas convicções sobre pedagogia e seu interesse por história. Sem acreditar no poder das armas e pregando a educação, tomou para si o desafio de fazer uma grande reforma no sistema de ensino francês. Seu principal combustível seria sua idealização da prática de esportes e da cultura corporal nas civilizações gregas antigas.
O modelo dos sonhos veio de viagens feitas pela Inglaterra, Estados Unidos e Canadá. Da Grã-Bretanha, Coubertin, inspirado pelo educador inglês Thomas Arnold — responsável por uma grande reforma educacional, em 1828 —, levou o ideal do ensino de línguas e o esporte amador na mala. Diretor da escola pública da cidade de Rubgy (onde surgiu a modalidade), Arnold pregava a atividade física como parte da grade curricular.
Pierre de Coubertin tentou aplicar na França a prática esportiva, sem fins competitivos, e o ensino de inglês nas escolas. Porém, nada disso era fácil de ser implementado naquele contexto.
Em 1892, a Revolução Francesa (1789-1799) não tinha nem completado 100 anos, e os conceitos iluministas de intelectualidade, racionalidade, política, sociologia, filosofia e cultura guiavam o currículo escolar do país. O esporte, visto como algo menor, nada intelectual, não tinha espaço. Mesmo assim, Pierre não desistiu.
O sonho foi crescendo e a paixão do homem — que, no futuro, viria a herdar o título de nobreza da família —, a essa altura, mais ambiciosa. Ele queria restabelecer os antigos Jogos Olímpicos. Não era só a França que seria beneficiada. O mundo era o limite, dizia. Unir nações em guerras, estabelecer a troca entre os povos e a harmonia global era sua nova obsessão.
Os passos teriam de ser lentos. Coubertin começou por Paris. Primeiro, criou a liga de educação física francesa. Ainda na sua busca da educação pelo esporte, ele fez uma viagem aos Estados Unidos, onde ficou por quatro meses. Lá, conheceu um grande aliado, William de Sloane. O historiador e professor de línguas acreditou no sonho de Pierre e, como um dos maiores entusiastas do olimpismo, fundou o Comitê Olímpico Americano.
De volta, em 1894, Coubertin conseguiu marcar uma reunião na Universidade de Sorbonne com entusiastas do esporte e representantes de alguns países. A princípio, o encontro seria para discutir a regulamentação do esporte amador. Como há dois anos já se ouvia falar do desejo de Coubertin de reavivar os antigos Jogos Olímpicos gregos, a reunião acabou tomando outros rumos.
Os representantes de 49 entidades esportivas de 11 países, que somavam cerca de 79 participantes, decidiram que uma entidade mundial precisaria ser criada para que as novas Olimpíadas pudessem ser organizadas. E, assim, ficou estabelecida a criação do Comitê Olímpico Internacional (COI), tendo o barão como secretário-geral e o escritor e empresário grego Demetrius Vikelas, como presidente da instituição.
As regras seguiriam os moldes dos Jogos da Antiguidade. Como no princípio, as Olimpíadas deveriam acontecer a cada quatro anos, e a primeira seria em Atenas, na Grécia. Uma modernização constante do programa esportivo deveria ser feita — por isso, até hoje modalidades são acrescentadas e excluídas a cada nova edição. Além disso, como os Jogos tinham a missão de unir povos, nações, culturas e pessoas de todo o mundo em volta da paixão pelo esporte, deveria existir uma rotatividade pelas principais cidades do planeta. E assim, com essas premissas, os Jogos Olímpicos foram criados há 120 anos.
Antes das Olimpíadas de Atenas, em 1896, alguns ritos que até hoje são seguidos foram determinados. Em 1894, foi criado o primeiro comitê organizador local dos Jogos — hoje, esta instituição funciona como um braço de representação do COI na cidade-sede, a fim de acompanhar obras e organizar o evento.
À época, o príncipe herdeiro grego Constantino I patrocinou o comitê local. A liberação de verba foi polêmica — outra tradição que começou cedo: Constantino I precisou brigar com o primeiro-ministro Charilaos Trikoupis, que era contra a realização e o financiamento do evento. No entanto, um ano antes da competição, Trikoupis perdeu a eleição para o seu adversário Theodoros Deligiannis, que era a favor da volta dos Jogos para Atenas. Por causa disso, o barão de Coubertin nomeou o rei Jorge I e o príncipe herdeiro Constantino I patronos daquelas Olimpíadas.
Havia ainda mais obstáculos a superar antes do dia 6 de abril de 1896, que marcaria a inauguração dos Jogos, incluindo uma diferença nos calendários — a Grécia ainda adotava o modelo juliano, enquanto a maioria dos países ocidentais se baseava no gregoriano, 12 dias à frente do anterior —, o que prejudicou a abertura e a chegada dos atletas a Atenas.
Os Jogos seguintes, em Paris (1900) e Saint Louis (1904), nos EUA, também não foram um exemplo de sucesso, devido a outros megaeventos internacionais: as competições foram abafadas pelas Exposições Mundiais, grandes feiras de arte, arquitetura e antropologia que aconteciam junto com os Jogos.
Apenas dez anos após as primeiras Olimpíadas da Era Moderna, já em 1906, o evento começou verdadeiramente a fazer parte do calendário esportivo. O sonho de Pierre de Coubertin estava começando a se realizar. Com o pretexto de comemorar a década olímpica, uma competição especial foi marcada para Atenas e, a partir daí, o movimento olímpico decolou.
Os Jogos de Londres-1908 confirmaram a importância do evento e sua liturgia, com a primeira cerimônia de abertura olímpica, incluindo o desfile das bandeiras dos países. Quatro anos depois, em Estocolmo, Coubertin criou a bandeira olímpica, com os cinco anéis que simbolizam os continentes e representam o espírito olímpico, ética e união através do esporte.
Após os Jogos de Paris-1924, o barão deixou a presidência do COI, queixando-se da profissionalização do esporte. A essa altura, a entidade já tinha um prédio próprio em Lausanne, na Suíça.
Sua memória, no entanto, nunca foi abandonada. Em 1964, o COI criou a sua mais alta honraria, a medalha Pierre de Coubertin. Ela é entregue a quem personifica o chamado “espírito olímpico", e valoriza a ética e os valores morais, acima do desempenho atlético.
Na história dos Jogos, apenas seis atletas e um técnico já receberam esta medalha. Entre eles, o maratonista Vanderlei Cordeiro de Lima que, em Atenas-2004, obteve o bronze mesmo após ser agredido pelo irlandês Cornelius Horan.
No dia 2 de setembro de 1937, o ex-aristocrata, que investiu todo o seu dinheiro no COI, morreu de infarto aos 74 anos, em condições financeiras modestas, deixando a esposa Marie, e uma filha, Renée, que nunca se casou. O corpo de Barão de Coubertin foi enterrado em Lausanne, e seu coração, em um gesto de reconhecimento por sua obra, transportado para as ruínas da cidade histórica de Olímpia, berço dos Jogos Olímpicos da Grécia Antiga.
1896, Atenas
Duração: 6 a 15 de abril
Países: 14
Atletas: 241
Não mais pela honra dos deuses, mas pelo prazer da competição, o francês Pierre de Frédy, o Barão de Coubertin, trouxe de volta os Jogos Olímpicos, em 1896. Mesmo que Zeus não fosse o homenageado, os símbolos gregos estavam todos lá. A começar pelo local escolhido. A capital da Grécia, Atenas, recebeu os nove dias de evento, que, nos primórdios, teve como palco Olímpia. Assim como em 2004, a organização do evento na capital teve dificuldades. O país passava por problemas políticos e econômicos, sem recursos para colocar a competição de pé.
Só saiu do papel graças ao empresário Giogios Averoff, que pagou a reforma do estádio, revitalizou o centro da cidade e construiu alguns outros equipamentos esportivos. O dinheiro do milionário grego egípcio foi capaz de restaurar o Panathinaiko, originalmente erguido em 330 a.C. (antes de Cristo). O local havia sido escavado várias vezes por décadas até que foi abandonado. A obra o tornou novamente grandioso, com o revestimento em mármore branco.
Passados 1500 anos, a Era Moderna manteve a tradição da Antiguidade. Como no começo, o atletismo continuou sendo o rei dos esportes e foi ele que coroou o primeiro campeão dos novos tempos: o americano James Conolly, vencedor do salto triplo, no dia 6 de abril. Com o salto de 13,71m, ele deu início à hegemonia dos Estados Unidos nos Jogos Olímpicos. Mesmo sem uma delegação oficial, os americanos venceram 11 provas e lideraram o quadro de medalhas. Ao todo, Atenas contou com nove modalidades: atletismo, ciclismo, esgrima, ginástica, halterofilismo, luta, natação, tênis e tiro.
Porém, a modalidade que mais despertava o interesse de todos na Grécia era outra: a maratona, prova nobre do atletismo, que até hoje encerra os Jogos, mas não existia em Olímpia. Por isso, os gregos queriam vencer a corrida mais longa da competição acima de tudo. E conseguiram com Spyridon Louis, que saiu da cidade de Maratona e tomou a liderança a quatro quilômetros do fim.
O anúncio de que assumira a ponta incendiou os espectadores que estavam no estádio Panathinaiko. Aos gritos de “Hellene, Hellene!” (Grécia, Grécia!), ele foi recebido por mais de 100 mil torcedores após terminar o percurso, criado pelo francês Michel Bréal, que não tinha ainda os 42,195 km atuais, mas se aproximava disso. A ideia era repetir a distância percorrida por Pheidippides, que, segundo a história, teria sido enviado de Maratona a Atenas para anunciar a vitória sobre o exército persa, em 490 a.C. (antes de Cristo) e caído morto na chegada.
Spyridon chegou vivo à frente de outros dois compatriotas e viu a simples vida de funcionário da loja de água do pai virar de cabeça para baixo, com honrarias e presentes. Porém, não seguiu no atletismo e virou fazendeiro. “Aquele momento foi algo inimaginável e ainda surge na minha memória como um sonho... eram flores, ramos caindo sobre mim. Todo mundo estava gritando meu nome e jogando seus chapéus no ar", relembrou o campeão quando foi porta-bandeira da delegação grega em 1936, em Berlim.
Sem presença feminina e apenas com atletas amadores, a primeira edição dos Jogos Modernos também teve a introdução de outras duas provas consideradas das mais importantes no calendário olímpico: os 100 metros da natação e do atletismo. Os primeiros vencedores foram o húngaro Alfréd Hajos e o americano Thomas Burke, respectivamente.
Ao cruzar a linha de chegada — realmente uma linha — depois de 12 segundos, Burke surpreendeu o mundo. Sua prova principal era os 400m rasos e ele não era considerado favorito em curtas distâncias. Além de desbancar os demais corredores, o americano inovou com a largada "crouch start" (agachado), hoje utilizada por todos os atletas. Após os Jogos, ele voltou a se dedicar às corridas de fundo e foi um dos fundadores da Maratona de Boston, uma das mais famosas do mundo.
O húngaro foi mais longe que Burke. Além de vencer os 100m livre, em 1m22s2, ele chegou em primeiro nos 1.200m. Isso numa época em que a natação era em mar aberto e, na prova de longa distância, os atletas eram levados de bote até alto-mar. De lá, retornavam nadando à costa. Tudo porque não havia dinheiro para construir uma piscina. Hajos ainda tentou competir em uma terceira prova: os 500m livre. Mas não houve tempo suficiente, pois seria entre as outras duas competições.
À época, então com 18 anos, o estudante de arquitetura confessou: "A vontade de viver superou completamente o desejo de vencer". Apelidado de "golfinho húngaro", Hajos superou ondas de até quatro metros e a baixa temperatura da água — 10 graus — passando banha no corpo. A força de vontade veio de uma tragédia do passado. Ele decidiu se tornar um exímio nadador depois que seu pai morreu afogado no rio Danúbio, em Budapeste, cinco anos antes.
Ao contrário dos Jogos na Grécia Antiga, nem sempre os laureados eram vistos como heróis em seus países. Ao retornar à Hungria, o nadador teve recepção fria na Universidade Politécnica de Budapeste. Lá, o reitor foi curto e grosso: “Suas medalhas não são do meu interesse, mas estou ansioso para ouvir suas respostas em seu próximo exame”.
Ao fim da competição, todos esses citados acima seriam premiados. Porém, a cerimônia teve de ser adiada um dia por causa do mau tempo em Atenas. Os campeões receberam, na verdade, uma medalha de prata — o segundo colocado ganhava um ramo de louro e o terceiro não recebia prêmio —, um ramo de oliveira e um diploma feito por um artista grego.
No peito dos campeões, a bênção de Zeus estava estampada numa das faces da medalha — o principal deus da mitologia grega segura um globo com a deusa Vitória em cima. Apesar do mantra criado pelo Barão de Coubertin de que o importante é competir, ali começava o ambição de todo competidor pela honraria máxima.
Jogos antes da 1ª Guerra
No Início do século 20, a Europa, por diversos motivos, vivia um ambiente de tensão. A instabilidade no continente se dava, sobretudo, pelas mudanças geopolíticas, com os países querendo ampliar seus domínios em colônias estrangeiras ou nos arredores. Neste contexto, o Barão de Coubertin deu continuidade aos Jogos Olímpicos — retomados na Era Moderna em 1896, na Grécia —, levando-os para a França, uma nação preocupada em aumentar seu mercado consumidor e com espírito revanchista, ao perder territórios para os alemães.
Um exemplo de que o esporte ainda estava em segundo plano foi a realização do evento junto a uma Exposição Universal, que durou meses em Paris — o mesmo aconteceu quatro anos depois, em Saint Louis, nos Estados Unidos. Sem a preocupação de usar os Jogos como forma de afirmação das nacionalidades, na França houve espaço até para competições mistas, com atletas de países diferentes competindo juntos.
Os Jogos de Londres, em 1908, aconteceram com os principais países europeus já divididos — a Tríplice Aliança (criada em 1882 e que reunia Itália, império austro-húngaro e Alemanha) e a Tríplice Entente (fundada em 1907, com França, Rússia e Reino Unido). Era uma prévia de como a Europa explodiria em breve.
Enquanto as peças do xadrez geopolítico europeu eram movimentadas, ainda houve tempo para a organização sueca apresentar as novidades tecnológicas ao mundo, em 1912, na capital, Estocolmo.
Porém, o assassinato de Francisco Ferdinando, príncipe do império austro-húngaro, em 1914, interrompeu a disputa esportiva. O Barão de Coubertin sonhava que a manutenção dos Jogos Olímpicos pudesse contribuir para evitar o conflito armado. O francês chegou a indicar Berlim como sede da edição de 1916, mas não obteve êxito.
Quando os ataques entre as nações europeias começaram, ele pressionou os demais membros do Comitê Olímpico Internacional (COI) para transferir a sede do evento para os Estados Unidos ou algum país da Escandinávia, áreas fora do conflito naquele momento.
A proposta foi recusada pelo COI e, em 1915, o comitê anunciou oficialmente a suspensão dos Jogos. Porém, como forma de protesto, a entidade não interrompeu a contagem. Por isso, Berlim consta como a sexta edição das Olimpíadas da história.
1900 a 1912
1900, Paris
Duração: 14 de abril a 28 de outubro
Países: 24
Atletas: 997
Em Paris, as mulheres ganham espaço nos Jogos Modernos pela primeira vez. Ainda em baixo número (22), e quase todas francesas, a competição foi apresentada pelo cartaz de uma esgrimista. Porém, o pôster não divulgava apenas o evento esportivo. Bem longe da atual organização, fez parte do Exposição Universal, com duração de cinco meses. Tudo foi tão confuso que muitos atletas nem sequer sabiam que haviam participado dos Jogos. Até houve uma cerimônia de abertura extraoficial no velódromo de Vincennes, com um desfile de ginastas, quase um mês depois do início. Naquele tempo, a noção de representar a bandeira de seu país não fazia parte do ideal dos Jogos. Competir realmente parecia ser o mais importante. Por isso, como em 1896, era possível participar de esportes coletivos mistos. Ou seja, atletas de diferentes países competiam num mesmo time. Em Atenas, havia apenas o tênis. Quatro anos depois, o futebol, o polo, o remo e o cabo de guerra aderiram a esse modelo.
Curiosamente, Paris recebeu alguns esportes com cara de brincadeira infantil. Além do cabo de guerra, o croquet — um jogo irlandês, que consistia em golpear bolas de madeira ou plástico através de arcos de ferro encaixados no campo, normalmente de grama — valeu medalha. Foi num desses gramados de Paris que as mulheres competiram pela primeira vez nos Jogos. Apenas francesas estavam inscritas, e as pioneiras foram a senhora Brohy e a senhorita Ohnier.
Poucas pessoas viram as mulheres darem seus primeiros passos, ou melhor, golpes olímpicos. A história conta que um inglês viajou de Nice até Paris para assistir à competição, sendo o único a comprar ingresso.
A primeira medalha feminina, no entanto, veio com a inglesa Charlotte Cooper, de 30 anos, no tênis. Mas ela só a recebeu em 1912. Na ocasião, os vencedores ganharam apenas presentes. Além do torneio de simples, ela venceu nas duplas mistas com R.F. Doherty. Porém, Charlotte não era uma mera atleta quando foi a Paris. Ela chegou credenciada com um currículo de dar inveja em qualquer época da história. A atleta já havia vencido o torneio de tênis d Wimbledon três vezes —, em 1895, 1896 e 1898.
Na carreira, Charlotte venceu na grama inglesa cinco vezes e fez 11 finais, feito superado apenas pela americana Martina Navratilova, em 1994. A última conquista foi em 1908, aos 37 anos e 296 dias, o que a tornou a tenista mais velha de todos os tempos a ser campeã em Londres.
A segunda edição dos Jogos também teve polêmica. O atleta de Luxemburgo naturalizado francês Michel Théato foi acusado de ter vencido a maratona usando atalhos. Alguns adversários disseram que ele fez parte do percurso de bicicleta. Ele teria encurtado o caminho graças ao seu conhecimento da cidade, onde trabalhava como entregador de pães. O COI só confirmou sua vitória anos depois.
Paris teve 95 eventos esportivos em cinco meses. Inclusive os 60m rasos do atletismo, que não existem mais.
1904, SAINT LOUIS
Duração: 1º de julho a 23 de novembro
Países: 12
Atletas: 651
O caos olímpico teve mais uma edição em 1904. A cidade americana de Saint Louis recebeu os Jogos no mesmo esquema de Paris. Durante a feira mundial e a comemoração da compra da Louisiana, que pertencia à França, as competições foram espalhadas por quatro meses e meio e ficaram em segundo plano.
Considerados os piores Jogos de todos os tempos, por causa da desorganização e do desempenho geral abaixo do esperado, a terceira edição do evento não deixou de ter seus grandes feitos. O americano Anton Heida, por exemplo, tornou-se o primeiro grande vencedor de uma edição, ao conquistar cinco medalhas de ouro na ginástica — ainda ganhou uma de prata. As vitórias vieram nos exercícios combinados, que não existem mais, no concurso geral (hoje chamado de individual geral), na barra fixa, no cavalo com alças e no salto.
A ginástica ainda proporcionou outro momento memorável. Muito antes da existência dos Jogos Paralímpicos, o alemão naturalizado americano George Eyser, que perdeu a perna esquerda num acidente de trem e usava uma prótese de madeira, conquistou seis medalhas, sendo três de ouro, duas de prata e uma de bronze. O título no salto foi dividido com Heida.
Fora da Europa, o evento contou com metade dos países presentes na França quatro anos antes (12 nações). O último país a sediar os Jogos, inclusive, não atravessou o Oceano Atlântico devido ao alto custo. Até mesmo o Barão de Coubertin, presidente do Comitê Olímpico Internacional, não compareceu por questões políticas. Ele se irritou com a imposição do presidente americano Theodore Roosevelt, que preteriu Chicago (mais bem preparada para receber o megaevento) em favor de Saint Louis, que receberia a Exposição Universal.
Um dos pontos altos foi a estreia da África na competição, com a presença dos sul-africanos que estavam de passagem pela feira. Saint Louis contou com outros avanços, entre eles, a disputa da natação em tanque artificial, substituindo as provas em mar aberto. Ainda ganhou algumas novas modalidades, como boxe e luta livre, que existiam na Antiguidade, o decatlo e o halterofilismo. O boxe, inclusive, também foi praticado pelas mulheres. Mesmo com menos atletas, a competição manteve o número de eventos esportivos de Paris: 95.
Algumas coisas, no entanto, não mudaram. Como as trapaças na maratona. Ao contrário de Paris, quando apesar das acusações o francês Michel Théato manteve o ouro, em Saint Louis, o primeiro lugar mudou de mãos. O americano Fred Lorz perdeu a medalha por ter feito parte do trajeto de carro, voltando à pista pouco antes da chegada. O título ficou com o compatriota Thomas Hecks.
1908, LONDRES
Duração: 27 de abril a 31 de outubro
Países: 22
Atletas: 2.008
Após o fracasso de Saint Louis, os Jogos Olímpicos retornaram para a Europa. Em Londres, a organização deu as caras, e a cidade sediou o melhor evento até então, mesmo tendo sido incumbida da tarefa às pressas, já que a sede original seria Roma. A erupção do vulcão Vesúvio, em abril de 1906, tirou a competição da cidade italiana, pois os recursos financeiros do governo foram empregados na reconstrução da capital.
Os ingleses não decepcionaram. Em apenas 10 meses, levantaram o White City, estádio construído especialmente para o evento, e que ficou de pé por 71 anos — chegou a sediar partida de futebol na Copa do Mundo de 1966. Com capacidade original para 66.288 espectadores, o Great Stadium, como era conhecido, podia dobrar de tamanho ao utilizar os terraços para alocar o público. Lá, houve a primeira cerimônia de abertura dos Jogos, com desfile das bandeiras dos países.
Os ingleses não se destacaram apenas na organização das Olimpíadas, que aconteceram em duas partes — uma na primavera e outra no outono. O país se preparou e conseguiu superar os americanos na classificação geral, ao conquistar 56 dos 110 ouros em disputa. No total, arrebatou 146 medalhas. O evento ainda gerou lucro de 6 mil libras.
Na competição, um herói britânico surgiu nas águas. Na primeira vez em que uma piscina foi construída especificamente para os Jogos, com plataforma de largada, Henry Taylor faturou três medalhas de ouro: 400m livre, revezamento dos 800m — em Londres, tiveram início as provas por equipe na natação — e 1.500m livre.
As medalhas individuais foram conquistadas até com facilidade. Nos 400m livre, ele chegou mais de oito segundos à frente do medalhista de prata, o australiano Frank Beaurepaire. Nos 1.500m livre, a prova mais longa da natação, Taylor conseguiu o recorde mundial, com 22m48s4.
A terceira conquista só veio com muito drama. No revezamento dos 800m livre, ele caiu na piscina em terceiro lugar e, em um esforço hercúleo, acompanhado pelo cansaço dos adversários, conseguiu recuperar a diferença e deixar os húngaros para trás.
Drama também viveu o italiano Dorando Pietri na maratona. Líder da prova, ele chegou ao estádio sem forças e confuso. Caminhou na direção contrária da pista e caiu três vezes. Foi ajudado por fiscais e médicos, que o levantaram e o guiaram até a linha da chegada, onde desabou. Por isso, foi desclassificado, e o ouro ficou com o americano Johnny Hayes. No entanto, a coragem de Pietri foi imortalizada e ele recebeu uma taça de ouro das mãos da rainha Alexandra.
A edição londrina ainda coroou um campeão conhecido como “homem elástico". Ray Ewry conquistou o tricampeonato olímpico ao vencer as provas de salto em distância sem impulsão e salto em altura. O americano ganhou, ao todo, oito medalhas em três Jogos.
1912, ESTOCOLMO
Duração: 5 de maio a 27 de julho
Países: 28
Atletas: 2.407
A tecnologia foi o ponto alto dos Jogos Olímpicos de Estocolmo. A eficiência tomou conta da competição, que estreou a cronometragem eletrônica, o photochart (recurso de imagem) e sistema de som no estádio. Também foi o evento mais plural até então, com a presença de atletas dos cinco continentes, e, pela primeira vez, com a participação japonesa. Os suecos investiram na competição, que teve 12 instalações para os diferentes esportes disputados — ao todo, foram 102 provas disputadas.
Os anfitriões inovaram também ao premiar outras habilidades, que não as esportivas. O COI colocou no programa olímpico competições de arte — arquitetura, música, literatura, pintura e escultura eram premiadas com medalhas. Isso perdurou até 1948, mas a entidade nunca reconheceu essas conquistas.
As mulheres também ganharam mais espaço na Suécia. Num total de 48 representantes femininas, elas debutaram na natação (100m livre e 4x100m livre) e nos saltos ornamentais. O destaque foi a australiana Fanny Durack, que conquistou o ouro nos 100m livre com o tempo de 1m19s8, e se tornou a primeira mulher a vencer na piscina olímpica.
Desde criança, Fanny era considerada um prodígio nas piscinas, principalmente no nado costas. Porém, ela quase ficou fora de Estocolmo por falta de dinheiro. A federação australiana não pagou sua passagem e ela precisou arrecadar recursos para seguir viagem. De navio, foi até Londres, onde treinou um período antes de chegar à Suécia. Entre 1912 e 1918, ela quebrou 12 recordes em competições europeias.
Mas, se poucos conhecem a australiana, um dos feitos olímpicos em Estocolmo virou filme de Hollywood. O protagonista entrou para a história como Jim Thorpe, mas era um índio nativo dos Estados Unidos cujo nome verdadeiro era Wa-Tho-Huk (“caminho brilhante", numa tradução livre). Ele venceu as provas de pentatlo e decatlo, mas acabou desclassificado no ano seguinte. A história do americano Jim Thorpe ganhou as telas em 1951, com Burt Lancaster no papel principal.
Em janeiro de 1913, descobriu-se que ele tinha recebido uma soma modesta para jogar beisebol antes dos Jogos. À época, apenas atletas amadores sem qualquer remuneração podiam competir. Quase 70 anos depois, o COI decidiu devolver as medalhas e as entregou à filha de Thorpe.
Na Suécia, um esporte entrou para nunca mais sair. O hipismo, presente nas edições de 1900 e 1904, foi beneficiado por mudanças na legislação sueca, que flexibilizou as normas e regulamentações para a entrada de estrangeiros, e garantiu transporte gratuito para os animais. Mais de 60 cavaleiros — todos militares — competiram nos esportes equestres. Já o boxe, proibido pela legislação do país, não pôde ser incluído no programa olímpico. Isso irritou o barão de Coubertin, levando-o a aprovar resolução no COI que impediria os países-sede de interferirem na organização do evento.
Os Jogos entre guerras
A Europa, berço dos Jogos da Era Moderna — das cinco primeiras edições, quatro foram sediadas no continente —, recolhia os destroços após quatro anos da Primeira Grande Guerra (1914-1918) quando os Jogos Olímpicos retornaram. Pela vontade do Barão de Coubertin, para quem o evento não devia ter sido interrompido, a competição foi marcada para dois anos depois do fim do conflito mundial.
O ideal olímpico de reunir nações em torno do esporte e celebrar a performance física de atletas sucumbiu a questões políticas. Para ser sede, a Bélgica, que foi invadida pelas tropas alemãs, exigiu a exclusão dos derrotadas na Primeira Guerra: Alemanha, Áustria, Bulgária, Hungria e Turquia. Pela primeira vez na história dos Jogos, nações foram impedidos de participar do evento.
Em meia à reconstrução da Antuérpia, os Jogos Olímpicos foram organizados com muitas dificuldades e necessitaram de apoio privado para as construções dos equipamentos esportivos.
Em 1924, em Paris, a proibição foi mantida para a Alemanha, ainda como represália pelas invasões à França. Os resquícios físicos do conflito já não eram tão percebidos, mas a Europa se mantinha em ebulição com o crescimento de movimentos socialistas e comunistas em contraponto ao capitalismo.
Quatro anos depois, Amsterdã recebeu os Jogos Olímpicos em um ambiente político mais ameno. Tanto que permitiu a volta da Alemanha, que não disputava a competição desde 1912, em Estocolmo.
O clima olímpico foi preservado em 1932, em Los Angeles. Porém, ao chegar a Berlim, em 1936, o nazismo deu o tom dos Jogos. Sob olhares de Hitler, o grande destaque foi o negro americano Jesse Owens, medalhista de ouro nos 100 m e em outras três provas do atletismo. Sua conquista, um tapa de luva de pelica na dita “supremacia ariana”, entrou para a História.
Três anos depois, teria início a Segunda Guerra Mundial, que interromperia dois ciclos olímpicos, só retornando em 1948, em Londres.
1920 a 1932
1920, ANTUÉRPIA
Duração: 20 de abril a 12 de setembro
Países: 29
Atletas: 2.626
No pós-guerra, a Antuérpia sediou os Jogos, que ficaram conhecidos como da harmonia e da confraternização. Numa edição recheada de novas tradições, como o hasteamento da bandeira olímpica com os cinco anéis coloridos representando os cinco continentes, a participação somente de atletas vinculados aos comitês olímpicos nacionais e o juramento olímpico feito pelo esgrimista belga Victor Boin: "Em nome de todos os competidores prometo que participaremos nestes Jogos Olímpicos respeitando e cumprindo suas regras, com verdadeiro espírito esportivo, para maior glória do esporte e honra de nossas equipes".
Por causa dos parcos recursos financeiros — armadores navais e vendedores de diamantes contribuíram com dinheiro —, a Bélgica construiu instalações precárias. Muitos atletas tiveram de dormir em casas de famílias locais, por exemplo. A pista de atletismo tinha falhas e buracos que impossibilitavam as provas em dias de chuva.
Mesmo assim, a Antuérpia viu nascer uma das maiores lendas do atletismo e das Olimpíadas. O finlandês Paavo Nurmi, que, em três edições seguidas, conquistou um total de 12 medalhas (nove ouros e três pratas) no atletismo. Ele figura entre os dez maiores medalhistas da história olímpica e está entre os quatro atletas que conseguiram nove vitórias. Ao seu lado estão, a ginasta ucraniana Larissa Latynina (1956/1960/1964) e o ginasta soviético Nikoly Adrianov (1972/1976/1980). Acima deles, apenas o nadador americano Michael Phelps, com 18 ouros.
Em 1920, Nurmi ganhou suas primeiras quatro medalhas, sendo três douradas e uma prateada. Todas elas em provas de resistência, sua especialidade. Ele venceu nos 10 mil metros, no cross country individual e no cross country por equipes. O segundo lugar veio nos 5 mil metros.
O "finlandês voador" poderia ter ido mais longe. Porém, após os Jogos de 1928, em Amsterdã, Nurmi estava tão famoso que foi convidado a participar dos meetings de atletismo, organizados pela Federação Internacional de Atletismo. Tornou-se profissional e ficou proibido de participar da edição de Los Angeles, em 1932, onde poderia subir ao lugar mais alto do pódio pela décima vez.
Na Antuérpia, uma estrela feminina surgiu. A francesa Suzanne Lenglen venceu no torneio de simples e no de duplas mistas (com Max Decugis). De quebra, levou o bronze nas duplas femininas (Elisabeth d'Ayen). De 1919 a 1926, ela perdeu apenas uma partida. Lenglen se tornou a primeira tenista profissional, ganhou 15 títulos em Wimbledon e 16 em Roland Garros, onde dá nome a uma das quadras principais.
Outros feitos marcaram a edição belga. O italiano Nedo Nadi, por exemplo, conquistou cinco das seis provas de esgrima. A americana Ethelda Bleibtrey venceu as três medalhas de ouro das provas de natação disputadas pelas mulheres. Incluindo as classificatórias, ela nadou cinco vezes e bateu recorde mundial em todas.
Lá, também institui-se o estilo de natação mais popular de todos: o nado crawl, apresentado pela primeira vez pelo havaiano Duke Kahanamoku, que venceu os 100m livre.
Os Jogos estavam de volta e a expectativa era de quem não fosse mais interrompida.
O PRIMEIRO OURO DO BRASIL
Aos olhos brasileiros, os outros feitos na Antuérpia ficaram em segundo plano. Em especial para a dentista Valéria Paraense Ferreira, de 60 anos. Neta de Guilherme Paraense, primeiro medalhista olímpico do Brasil na estreia do país nos Jogos, em 1920, ela cuida para que a imagem do avô herói seja lembrada eternamente.
Na casa da mãe, Oysis, que mora no mesmo prédio na Tijuca — a família foi criada no Méier, Zona Norte do Rio —, Valéria retira todos os objetos que guardam a história do avô. No acervo pessoal, que faz questão de preservar sozinha, o desgaste da história escrita há mais de 90 anos é fruto de quem corre o país para contar o feito de Guilherme. Lá estão a arma, a medalha, a estatueta, e várias outras honrarias recebidas pelo atirador na época da conquista e depois.
— Ele ajudou a me criar e hoje ajudo a cuidar da memória dele. Corri muito atrás para o nome dele não ficar esquecido. Muitas coisas foram perdidas na mudança de casa e não sei onde foram parar. Um dia, vou entregar tudo para a AMAN (Academia Militar das Agulhas Negras), onde há um polígono de tiro com o nome dele e onde fica o museu de tiro — conta Valéria, que hoje cuida da mãe Oysis, de quase 90 anos, a única mulher dos sete filhos de Paraense. A filha carregou a tocha pan-americana em 2007.
A neta preferida do avô, que se aposentou como coronel do exército, nasceria mais de três décadas depois de Paraense ter escrito seu nome no olimpo. Porém, a tradição oral passada de mãe para filha, e em todas as tardes vividas ao lado avô até sua morte aos 68 anos, ajuda a desmistificar algumas histórias.
— Muitas vezes, falam como se meu avô e toda a equipe de tiro tivessem subido ao pódio por acaso. Não foi. Eles eram credenciados para estarem lá. Todos competiam sul-americanos e conquistavam títulos. Eles treinavam no estande de tiro do Fluminense, eram reconhecidos. Não foram aventureiros que decidiram ir para a Bélgica de trem e que não tinham a menor chance. Ninguém faria essa viagem só por diversão — ressalta Valéria.
Realmente, chegar até a Bélgica não foi nada fácil. A equipe chefiada por Afrânio da Costa, que ganhou medalha de prata no tiro de pistola livre de 50m, custeou a ida à Antuérpia na classe mais econômica do navio Curvello. Após 10 dias, pararam em Portugal e seguiram de trem até a sede dos Jogos. Tudo com o medo de perder a prova, pois haviam passado ao time que a competição teria início no dia da chegada. Mas a programação mudou. No meio tempo, ainda tiveram a munição roubada e precisaram pedir emprestado.
— Alguns contam que meu avô teve a arma roubada e usou uma emprestada. Isso não é verdade. Essa arma que está aqui foi uma das que ele levou. Ele tinha várias. Apenas a munição foi roubada — explica Valéria. — Ele contava que todo mundo ficava ao lado dos atletas na hora do tiro, não tinha apoio para estabilizar a arma, óculos, protetor de ouvidos.
Ela lembra que os americanos contestaram o título, pois os brasileiros, por serem militares, levariam vantagem no manuseio da arma. O choro não deu resultado e as conquistas foram mantidas. Além do ouro, ele ganhou o bronze por equipes na prova de 50m de pistola, ao lado de Afrânio da Costa, Sebastião Wolf, Dario Barbosa e Fernando Soledade.
Apesar de esses serem os cinco brasileiros mais lembrados na primeira participação do Brasil nos Jogos Olímpicos, o país enviou uma delegação de 21 atletas no total, todos homens. O porta-bandeira foi o atirador Afrânio da Costa, medalhista de prata (pistola livre) e bronze. Os outros, no entanto, tinham pouca experiência internacional e sofreram com a diferença de ambiente.
Além do tiro, havia representantes nos saltos ornamentais, natação, remo e polo aquático. Todos tiveram algum tipo de problema. Por desconhecimento das regras, por exemplo, Adolpho Wellisch foi desclassificado em uma prova de saltos ornamentais. Ele chegou a disputar a final do salto plano, categoria que não existe mais — um estilo livre, sem piruetas —, e terminou em oitavo lugar.
Os nadadores, que desconheciam a técnica do nado crawl e a própria piscina olímpica, tiveram participação bem abaixo do esperado. A maioria desistiu de participar. Os únicos que pularam na água foram Orlando Amêndola — que também fazia parte da equipe de polo aquático — e Angelo Gammaro. Eles competiram nos nos 100 m livre e 200 m peito, respectivamente, mas não passaram das eliminatórias.
O frio castigou os jogadores de polo. Na água com temperatura de três graus, muitos precisavam ser massageados pelos adversários para seguirem no jogo. Ainda assim, o time goleou a França por 5 a 1, na estreia. Porém, na segunda partida, perdeu para a Suíça por 7 a 1 e foi eliminado. No remo, a equipe formada por João Jório, Abrahão Saliture, Alcides Short Vieira, Guilherme Lorena e Ernesto Flores Filho (timoneiro) disputou na modalidade quatro com, mas foi eliminado na fase de grupos com o Estados Unidos.
Infelizmente, o sucesso de estreia do Brasil não se repetiu em Paris, quatro anos depois. Desde então, o país conquistou mais 105 medalhas (22 de ouro, 29 de prata e 54 de bronze).
1924, PARIS
Duração: 4 de maio a 27 de julho
Países: 44
Atletas: 3.089
A capital francesa voltou a receber os Jogos Olímpicos, desta vez com muito mais organização e histórias de cinema. Em 1924, o evento finalmente se firmou como mundial, com a participação de 44 países, 15 a mais do que na Antuérpia. Os rituais das cerimônias também se consolidaram: foi introduzida a festa de encerramento, com hasteamento da bandeira olímpica, do país-sede e do próximo país a receber a competição. O lema das Olimpíadas também surgiram em Paris: "Mais rápido, mais alto e mais forte".
A saga dos britânicos Eric Liddell e Harold Abrahams foi contada, com muita licença poética, pelo filme vencedor do Oscar de 1982 "Carruagens de Fogo", cuja trilha sonora ficou estritamente ligada aos Jogos. O drama começou com o escocês Liddell que, por ser um cristão devoto, recusou-se a correr os 100 metros rasos, prova do qual era favorito. Uma das classificatórias caiu no domingo, dia sagrado de descanso.
Ele optou por participar dos 200 metros e dos 400 metros rasos, na qual bateu o recorde olímpico com 47s6. Enquanto isso, o compatriota Abrahams ficou com a missão de bater os americanos na final dos 100 metros rasos. Para isso, ele abriu mão do salto em distância e contratou um técnico. Resultado: ouro na prova, com 10,6s.
Outro personagem olímpico fez o caminho contrário: saiu do cinema para o pódio. O americano Johnny Weissmuller protagonizava o Tarzan nas telas (foram 12 filmes ao todo) quando conquistou três ouros na natação. Ele venceu os 100 m livre, os 400 m livre e o revezamento 4x200 m livre. De quebra, ainda levou o bronze no polo aquático. Ele ainda ganharia mais duas vezes em 1928, em Amsterdã.
Quem também continuou realizando feitos dignos de Hollywood foi o finlandês Paavo Nurmi. Em um período de menos de uma hora, ele venceu os 1.500 metros rasos e voltou para a largada dos 5 mil metros.
O Brasil foi pela segunda vez aos Jogos, mas a viagem a Paris nem se compara com a da Antuérpia. Com 12 atletas (três remadores, um atirador e oito do atletismo), a melhor colocação foi dos irmãos cariocas Eduardo e Carlos Castelo Branco, em quarto lugar no skiff duplo (remo). O brasileiro mais famoso na França era o artista plástico Di Cavalcanti, reconhecido mundialmente após a Semana de Arte Moderna de 1922.
A ida da delegação brasileira foi bem confusa. A então CBD (Confederação Brasileira de Desportos) abriu mão de enviar atletas por falta de dinheiro — o governo de Arthur Bernardes chegou a prometer 350 contos de réis para a viagem, mas não liberou a verba. Porém, a Federação Paulista, com a ajuda do jornal “Estado de São Paulo”, conseguiu arrecadar 40 contos de réis, o que foi suficiente para a equipe de 12 atletas. Pela demora na inscrição, o COI chegou a descartar o Brasil nos Jogos, mas, no fim, aceitou.
Outros sul-americanos, porém, fizeram história. Paris viu o surgimento da “Celeste”, seleção de futebol do Uruguai que encantou o mundo também nos anos subsequentes. Os uruguaios conquistaram o bicampeonato em 1928, em Amsterdã, e, dois anos depois, em 1930, a Copa do Mundo em casa.
1928, AMSTERDÃ
Duração: 17 de maio a 12 de agosto
Países: 46
Atletas: 2.883
No ano seguinte, o mundo ficaria à beira do colapso. Mas a crise de 1929, que fez bolsas despencarem e fortunas desaparecerem, ainda parecia uma realidade distante quando Amsterdã recebeu os Jogos Olímpicos de 1928. A capital holandesa, curiosamente, tinha experiência quando o assunto era a derrocada de bolhas financeiras: três séculos antes, em 1630, a bolsa de valores de Amsterdã havia assistido à súbita queda dos títulos de bulbos de tulipa, que ficou conhecida como a primeira grande ação especulativa do planeta — naquela época, um contrato futuro sobre flores que sequer haviam sido plantadas valia mais que uma casa.
O Brasil foi um dos poucos a sinalizar a crise: as exportações de café caíram em 1928, embora a safra continuasse em alta — sintoma que o mercado internacional, embora aparentasse ter fôlego total, já não andava bem das pernas. O governo brasileiro alegou falta de recursos e não mandou atletas para Amsterdã.
Aquela foi a primeira edição das Olimpíadas com provas femininas no atletismo. A americana Elizabeth Robinson, então com 16 anos, tornou-se a primeira mulher campeã olímpica nos 100 m, com o tempo de 12s2. Aquela foi apenas a quarta prova oficial de Betty, como era conhecida. Meses antes dos Jogos, ela havia sido convencida a treinar provas de velocidade por um professor de educação física, impressionado com a rapidez da garota em uma tentativa de alcançar o ônibus escolar. Causou preocupação, contudo, a série de desmaios de competidoras da prova dos 800 m, vencida pela alemã German Marie Dollinger em 2h16m08. Os episódios de exaustão fizeram o COI limitar provas femininas de atletismo a 200 m de distância, determinação que durou até as Olimpíadas de Roma, em 1960.
O aumento da presença de mulheres no maior evento esportivo do mundo, à época dominado por homens, trouxe à tona a discussão de gênero, ainda hoje uma questão mal resolvida. A canadense Ethel Catherwood foi a primeira atleta a ganhar o título informal de “musa das Olimpíadas". Catherwood era chamada pelos jornais de “lírio de Saskatoon”, referência à cidade em que vivia no Canadá. Apesar do excelente desempenho na pista de competição, coroado com a medalha de ouro no salto em altura, a vida pessoal de Catherwood tomou conta dos holofotes. Com dois divórcios antes da década de 1960, época em que o fim do matrimônio ainda era tabu, ela viu o escrutínio da imprensa aumentar consideravelmente. Catherwood não conseguiu ser reconhecida apenas pelo sucesso esportivo, sina que muitas mulheres carregam até os dias atuais.
Os Jogos de 1928 tiveram ainda o retorno da Alemanha ao calendário olímpico. Considerados culpados pela Primeira Guerra, os alemães não haviam sido convidados para as Olimpíadas de Antuérpia-1920 e Londres-1924, as duas primeiras que sucederam ao conflito mundial. E o país voltou forte: ficou em segundo no quadro de medalhas, atrás somente dos Estados Unidos.
1932, LOS ANGELES
Duração: 30 de julho a 14 de agosto
Países: 37
Atletas: 1.332
Na primeira edição das Olimpíadas nos EUA, era de se esperar que o país quase sempre dominante no quadro de medalhas vencesse com ainda mais folga. De certa forma, foi o que aconteceu: os americanos tiveram quase o triplo de medalhas da Itália, sua concorrente mais próxima (103 a 36).
O número de ouros, embora não fosse um recorde dos EUA, impressionava: foram 41, quase o dobro do conquistado em Amsterdã quatro anos antes. Ninguém, no entanto, causou mais assombro naqueles Jogos Olímpicos de Los Angeles do que a equipe japonesa de natação.
Nos EUA, a piscina produziu uma das primeiras grandes surpresas olímpicas. O time de nadadores do Japão arrebatou cinco medalhas de ouro, cinco de prata e duas de bronze, desempenho superior até ao dos anfitriões e favoritos americanos. O sucesso inesperado dos japoneses deu origem a explicações inusitadas. Bob Kiphuth, treinador da equipe de natação dos EUA, foi um dos que tentou justificar, em entrevista ao jornal Brooklyn Daily Eagle, a supremacia nipônica na água.
“Eles são uma nação sem cadeiras. Desde seus tempos mais antigos, eles se agacham para sentar e para comer. Suas pernas são sempre flexíveis, fortes como aço", impressionou-se Kiphuth.
O feito em Los Angeles rendeu o apelido de “peixes voadores” para a equipe japonesa. Takashiro Saito, o treinador daquele time, seria contratado pela Marinha brasileira dois anos depois, em 1934, para preparar tanto atletas militares quanto civis que representariam o Brasil nos Jogos de Berlim, em 1936.
— Saito foi trazido pela Marinha e acabou ficando no Brasil quando começou a Segunda Guerra Mundial, em 1939. Muitos atletas brasileiros que estiveram nos Jogos de 1932, como a Maria Lenk, acabaram sendo treinados por ele depois. Com Saito, as Forças Armadas começaram a ser uma espécie de terceiro núcleo esportivo do Brasil, ao lado do Comitê Olímpico Brasileiro (COB) e da Confederação Brasileira de Desportos (CBD). Hoje em dia são mais de 500 atletas de alto rendimento no Exército, Marinha e Aeronáutica — diz Lamartine da Costa, pesquisador da história olímpica e curador do Acervo Maria Lenk.
Não é como se faltassem fenômenos dos Estados Unidos nas piscinas. A americana Helene Madison, à época recordista mundial do nado livre nos 100m, 200m e 400m, foi a atleta que mais conquistou medalhas de ouro nas Olimpíadas de Los Angeleses-1932. Ela subiu ao topo do pódio nos 100m e nos 400m livre, além do revezamento 4x100m. O brilho individual de Madison, contudo, não foi o bastante para ofuscar a façanha dos “peixes voadores”.
Com apenas 14 anos e 309 dias de idade, o menino-prodígio Kusuo Kitamura foi o símbolo de um Japão que apresentava seu talento ao mundo. Kitamura venceu a final dos 1.500m livre, mantendo-se o mais jovem medalhista de ouro dos Jogos Olímpicos até Seul-1988, quando a húngara Krisztina Egerszegi, com 14 anos e 14 dias, subiu ao topo do pódio nos 200m costas.
Maria Lenk, a pioneira do Brasil
O Brasil também deu sua contribuição à história dos Jogos. A primeira participação do país havia sido em Antuérpia, em 1920, quando veio também a primeira medalha — feitos históricos, mas limitados à memória nacional. Em 1932, contudo, Maria Lenk trouxe a carga de pioneirismo necessária para ser lembrada não só como heroína brasileira, mas sim, como um exemplo para todo o esporte mundial. Lenk tornou-se, em Los Angeles, e com apenas 17 anos, a primeira mulher sul-americana a competir em uma edição dos Jogos Olímpicos da Era Moderna.
— Maria Lenk começou muito cedo na natação. Seu pai a ensinou a nadar no rio Tietê quando ela tinha dez anos. Ele amarrava a filha a uma corda e acompanhava pela margem do rio, que não era poluído como hoje — conta o pesquisador Lamartine da Costa.
Lenk competiu nos 100m e 200m peito, sem passar das eliminatórias. Sua participação nas Olimpíadas, contudo, já foi motivo de comoção nacional. A partida da delegação brasileira de navio, para Los Angeles, recebeu a visita do presidente da república, Getúlio Vargas, que fez questão de ser fotografado ao lado da nadadora. Era uma época em que as mulheres apenas começavam a ter oportunidade de entrar no mundo esportivo. Ninguém queria perder o bonde da história.
A ida de Lenk aos EUA foi marcada pelas dificuldades típicas da participação das delegações sul-americanas nos Jogos Olímpicos. Embora fosse a primeira edição no continente americano, a distância a ser percorrida de navio até Los Angeles não era muito diferente das longas viagens até a Europa, que poderiam levar mais de um mês. A falta de dinheiro, justificativa do governo para não mandar atletas brasileiros aos Jogos de 1928, desta vez resultou em uma solução inusitada: os competidores tiveram que vender sacas de café nos portos em que o navio ancorava ao longo da viagem, como forma de custear a viagem. Se era difícil ser mulher nos Jogos, também não era simples ser sul-americano. Imagine ser uma mulher sul-americana nas Olimpíadas.
A delegação do Brasil voltou sem medalhas de Los Angeles, mas não por falta de grandes personagens. Um deles, o fundista Adalberto Cardoso, ficaria conhecido como “homem de ferro” apesar da última colocação na prova dos 10 mil metros. O resultado não faz justiça ao esforço demonstrado por Adalberto, que precisou antes de mais nada fugir do navio Itaquicê, que levou a delegação brasileira, para competir. Isso porque, além de vender café, os atletas tinham que pagar uma taxa de desembarque às autoridades portuárias. Como não havia dinheiro para todos, os organizadores decidiram bancar aqueles que consideravam ter mais chance de conquistar medalhas — além de Maria Lenk, cuja participação já era um feito histórico.
Adalberto, um dos que acabaram barrados no navio, conseguiu escapar e percorreu quase 20km até o estádio olímpico. Chegou faltando minutos para o início da prova dos 10 mil metros. Correu descalço e com uniforme incompleto. A torcida americana, segundo relatos da época, aplaudiu bastante o empenho do brasileiro. A colocação final virou mero detalhe.
O diário de viagem de Sylvio Magalhães Padilha, que competiu nos 110m e nos 400m com barreiras, indica que o desempenho esportivo ficou longe de ser prioridade em Los Angeles. Em seus escritos, Padilha reclama dos “pseudo atletas” que se descuidaram dos treinamentos durante a viagem para se dedicar à vida noturna. Os brasileiros, segundo ele, ganharam a péssima fama de chegarem apenas depois da meia-noite na Vila Olímpica, e pareciam ter se esquecido da “pátria que confiara a seus filhos a excursão de aprendizagem” que era disputar as Olimpíadas.
Padilha, por sua vez, foi um dos bons alunos: apesar de não ter avançado nas duas provas em Los Angeles, quatro anos depois, em Berlim-1936, disputaria a final dos 400m com barreiras, terminando em quinto. Em 1963, foi ainda mais longe: tornou-se presidente do Comitê Olímpico Brasileiro (COB) — hoje chamado Comitê Olímpico do Brasil —, posto que ocupou até sofrer um AVC, em 1989.
1936, Berlim
1936, BERLIM
Duração: 1 a 16 de agosto
Paises: 49
Atletas: 3.963
É impossível descrever o impacto daquele mês de agosto em Berlim, a capital da Alemanha, sem recorrer a dois personagens opostos. Um deles foi a grande estrela dos Jogos Olímpicos de 1936, com quatro medalhas de ouro — incluindo nos 100 m, a prova mais rápida do atletismo. O americano Jesse Owens, contudo, não foi mais aplaudido do que uma outra figura marcante daquelas Olimpíadas.
Adolf Hitler não correu, nadou ou saltou naqueles Jogos. Mas cada aparição do ditador alemão vinha acompanhada por demonstrações do magnetismo exercido na Alemanha por um regime nazista que, a despeito de algumas violações de acordos internacionais e do apoio ao ditador Francisco Franco na Guerra Civil espanhola, ainda não havia cometido suas maiores atrocidades.
Berlim teria recebido os Jogos de 1916, que acabaram cancelados pela Primeira Guerra Mundial. Nas edições das Olimpíadas após a guerra — Antuérpia-1920 e Paris-1924 —, a Alemanha foi proibida de participar das competições, por ter sido considerada culpada do conflito armado que escandalizou a Europa.
Foi nesse contexto que a realização das Olimpíadas em 1936 acabou encarada por Hitler não como uma superação definitiva dos horrores do conflito armado que assolou a Europa, mas sim como tentativa de vender a imagem de superioridade alemã. Uma espécie de laboratório para a ideologia nazista que empurraria o povo alemão, três anos mais tarde, a uma guerra de proporções ainda maiores do que a vivenciada pelos europeus na década de 1910.
— Meu avô se impressionou com a disciplina do povo alemão em reverência ao Hitler. A saudação nazista que o público fazia quando ele entrava no estádio... aquilo era impressionante — conta o advogado Alberto Murray, neto do atleta brasileiro Sylvio Magalhães Padilha, finalista da prova de 400 m com barreiras.
Inspirado pelo sucesso pioneiro do avô no esporte, Murray, hoje com 50 anos, tornou-se um pesquisador da história olímpica. A partir de relatos da época — incluindo, é claro, o de Padilha —, o advogado paulistano rechaça a possibilidade de que a ideologia nazista, que pregava uma superioridade dos arianos em comparação às demais etnias, tenha contaminado os atletas.
— O ambiente da Vila Olímpica era muito cordial. Não havia aquela rivalidade que Hitler queria provocar entre brancos e negros. Não era uma questão que aparecia no convívio de Jesse Owens, por exemplo, com atletas alemães ou de outros países simpatizantes do nazismo. Você consegue ver cenas do salto em distância, inclusive, nas quais Owens conversa com alemães — descreve Murray.
A aparência cordial também servia à propaganda nazista, que tentava vender uma imagem positiva da Alemanha para o mundo. Berlim foi a primeira edição das Olimpíadas a ser transmitida pela televisão, mas apenas para os poucos alemães que tinham aparelho em suas residências naquele tempo. O Estádio Olímpico, erguido especialmente para a competição, custou U$ 30 milhões, valor astronômico à época.
Hitler, sem poupar esforços para promover o regime, encomendou à cineasta Leni Riefenstahl um documentário sobre os Jogos de 1936. O filme, lançado dois anos depois, chamaria-se “Olympia”.
A propaganda, contudo, não funcionaria sem um grande desempenho esportivo. E a Alemanha, com ego e economia inflados pelos nazistas, liderou o quadro de medalhas, superando até mesmo os EUA em número de ouros — 34 a 24. Só que o grande nome da competição não era alemão, tampouco ariano. Jesse Owens, americano negro, o mais novo de dez filhos de Henry Cleveland Owens e Emma Mary Fitzgerald, não encontrou adversário à altura. À época um jovem de 23 anos, ele frustrou o planejamento nazista ao conquistar a medalha de ouro na cobiçada prova dos 100 m. E também subiu ao lugar mais alto do pódio nos 200 m, no revezamento 4x100 m e no salto em distância.
Os feitos tornaram Owens uma celebridade instantânea na Alemanha de Hitler. Atletas brasileiros, como de outros países, não se cansavam de parabenizar e tirar fotos com o americano. No retorno da delegação brasileira, a nadadora Maria Lenk, ainda com 21 anos, contou ao jornal “Folha da Noite” que “nas ruas de Berlim, as crianças organizavam corridas e se intitulavam Jesse Owens".
Por muito tempo, falou-se que Hitler, irritado com os feitos de Owens, não quis cumprimentá-lo após a vitória nos 100 m. Em 2009, o jornalista alemão Siegfried Mischner negou a versão. Disse que ambos se falaram, e que Owens guardou na carteira por décadas uma imagem do encontro com o ditador alemão.
O desagrado nazista com o sucesso de um atleta negro ficou no imaginário que se tem, em retrospectiva, das Olimpíadas de 1936. Não é difícil acreditar, contudo, nos relatos mais hospitaleiros de Hitler naqueles Jogos, aproveitados justamente para divulgar uma imagem positiva do regime. A brutalidade tomaria forma pouco depois, nos campos de concentração e nos ataques aos vizinhos europeus.
— Os atletas foram muito bem tratados. Ninguém poderia imaginar a proporção da guerra que aconteceria em seguida — avalia Murray. — Se não me engano, três adversários do meu avô na final dos 400 m faleceram em combate. Muitos daqueles atletas participaram da Segunda Guerra Mundial e morreram.
A ODISSEIA BRASILEIRA ATÉ BERLIM
O Brasil viajou dividido para a Alemanha. O Comitê Olímpico Brasileiro (COB), fundado em 1914, consolidou-se como instituição responsável por organizar a participação de atletas do país em Olimpíadas apenas em 1935, um ano antes dos Jogos de Berlim. Até então, a tarefa de selecionar a delegação brasileira cabia à antiga Confederação Brasileira de Desportos (CBD). Quando chegou a hora de escolher quem competiria em solo alemão, cada entidade fez sua própria lista e ambas enviaram seus escolhidos, em navios separados.
A viagem para competir quase se transformou em mero passeio turístico, já que o Comitê Olímpico Internacional (COI), ao tomar conhecimento de duas delegações brasileiras na Alemanha, ameaçou não deixar ninguém participar dos Jogos. A saia justa institucional teve que ser resolvida pelo então presidente da república Getúlio Vargas.
— Esse fato chamou atenção para a desordem do esporte no Brasil. Foi uma espécie de escândalo. A repercussão na Alemanha não foi nada boa — resume o pesquisador da história das Olimpíadas Lamartine da Costa. — O COB era registrado e reconhecido, mas não lidava muito com os clubes. A relação se dava mais com as federações nacionais. Só que as federações internacionais reconheciam a antiga CBD. Os presidentes da CBD, Luís Aranha, e do COB, Arnaldo Guinle, não se entenderam. Então, os alemães disseram que ninguém ia competir.
Mesmo assim, todos foram para a Alemanha. Os atletas escolhidos pelo COB partiram do Brasil no dia 24 de junho, a bordo do navio General San Martin. Os representantes olímpicos dividiram espaço com um carregamento do principal artigo de exportação do Brasil: café, que seria vendido nas escalas do navio ao longo da Europa. Foi a maneira encontrada pelo governo brasileiro para pagar a viagem.
Já os atletas da CBD, que se dividiam em três modalidades — remo, atletismo e natação — embarcaram no Alcântara, um navio de passageiros, no dia 7 de julho. Durante os mais de 20 dias de viagem, os treinos se resumiam a algumas voltas no convés no início da manhã, quando ainda estava vazio. O velocista Oswaldo Ignácio Domingues, que registrou por escrito suas memórias dos Jogos de 1936, diz que parecia “mais uma viagem de recreio do que ida à competição”.
As Olimpíadas de 1936 expuseram tantos problemas de organização do esporte brasileiro, que se tornaram um marco. A intervenção de Vargas fomentou uma cultura de participação do Estado. Costa lembra que cinco anos depois, em 1941, o mesmo Vargas criaria o Conselho Nacional dos Desportos, órgão com atribuição de estabelecer diretrizes gerais para o esporte, que passou a ser dirigido através de atos administrativos. Herança, segundo o pesquisador, do impasse em Berlim.
A viagem de Oswaldo Ignácio Domingues com a equipe da Confederação Brasileira de Desportos (CBD) foi repleta de desventuras — de certa forma, um prenúncio do que os aguardava em Berlim. Na primeira escala, em Portugal, os atletas foram liberados para conhecer a cidade, acabaram notados nos pontos turísticos pela “algazarra que faziam”, nas palavras de Domingues, e não conseguiram depois encontrar o bonde que os levaria de volta ao porto. Como os portugueses estranhamente não conseguiam informá-los da parada mais próxima, o jeito foi gastar dinheiro e pegar um táxi para não perder a saída do navio. Mais tarde, os brasileiros descobriram que deveriam ter perguntado pelo “carro elétrico”, como são chamados os bondes no país.
Na escala seguinte, na Espanha, Domingues relata que chegou aos ouvidos dos atletas a notícia de “uma possível guerra civil” no país. A viagem dos brasileiros coincidiu com a eclosão da Guerra Civil Espanhola, conflito que durou de 1936 a 1939, deixou cerca de 500 mil mortos e abriu caminho para a ditadura militar do general Francisco Franco, que se estendeu até 1975. Para completar, a delegação sofreu com as “águas agitadas” no trecho até a França, onde descobriram, ao desembarcar, que os selecionados pelo Comitê Olímpico Brasileiro (COB) já haviam sido apresentados em Berlim como os únicos atletas do Brasil nas Olimpíadas, sendo inclusive hospedados na Vila Olímpica.
Em seus escritos, Domingues, à época atleta do Vasco, garante que aproveitava cada tempo livre na viagem para estudar matemática, já que prestaria concurso para a Escola Militar ao fim daquele ano. Em Berlim, contudo, acreditando que não competiria, decidiu sair com outros atletas brasileiros para aproveitar a noite alemã. A delegação de atletismo carioca, formada por Domingues, Darcy Radich Guimarães, Oswaldo Gonçalves e Antônio Damaso de Carvalho, sequer estava hospedada na Vila Olímpica. Naquela noite do início de agosto, contudo, chegava o telegrama de Vargas que resolveu a disputa e arrumou espaço tanto para os atletas do COB quanto da CBD.
Domingues e seus colegas foram acordados às pressas na manhã seguinte por Eugênio Rappaport, treinador de atletismo do Vasco e da CBD. Competiu na eliminatória dos 100 m e ficou em quinto na sua bateria, resultado insuficiente para avançar à fase seguinte.
A indefinição não prejudicou apenas os cariocas. Ícaro Castro Mello, atleta de salto em altura do Pinheiros-SP, era outro que não sabia até a véspera se competiria naquelas Olimpíadas. Chamado às pressas para disputar a eliminatória, saltou 1,80m e ficou fora das finais por cinco centímetros.
— Meu pai ficou decepcionado com a briga política, achou que não competiria, e resolveu participar do desfile de abertura dos Jogos. Foram horas em pé sob o sol, o que causou um desgaste considerável — conta o arquiteto Eduardo Castro Mello, filho de Ícaro. — Na madrugada, ele foi acordado com o telegrama recém-chegado do Brasil, dizendo que os atletas de São Paulo participariam das provas. Chegaram em cima da hora no estádio e, minutos após acessar a pista, já ouviu o locutor oficial chamando por “Castro Mello, brasilien”.
Rappaport, em entrevista a “O Jornal” às vésperas dos Jogos de 1936, já antecipava a dificuldade brasileira para conseguir bons resultados na Alemanha e culpava o “dissídio que ainda desgraçadamente reina no nosso esporte”. Nascido em Budapeste, na Hungria, em 1898, ele veio para a América do Sul fugindo da destruição causada pela Primeira Guerra Mundial, que se estendeu entre 1914 e 1918. No primeiro semestre de 1936, Rappaport se naturalizou brasileiro e viu nascer seu primeiro filho, Henrique.
As Olimpíadas da Alemanha dariam início a um período turbulento. A guerra que fez Rappaport deixar a Europa teve um segundo capítulo entre 1939 e 1945, graças à consolidação da ideologia nazista de Hitler — para a qual os Jogos de Berlim, de certa forma, deram sua contribuição. O filho Henrique morreu atropelado pouco após o fim da Segunda Guerra. As memórias de 1936 foram se apagando. Acabaram salvas pelo segundo filho, Francisco, hoje com 75 anos, responsável por um arquivo de fotografias e recortes de jornais sobre Rappaport.
— Não lembro do meu pai falar sobre aquelas Olimpíadas, nem sobre a briga entre as delegações. Ele sempre foi muito ligado ao atletismo, mas com o tempo se afastou e passou a se dedicar cada vez mais à coleção de selos — conta Francisco, que vive em uma casa confortável na Usina, Zona Norte do Rio, e se recorda mais das qualidades peculiares do pai. — Ele foi um dos maiores filatelistas da época. Só de olhar, sabia dizer se um selo era valioso. A casa em que vivo hoje foi comprada pelo meu pai com o dinheiro dos selos que encontrava e depois revendia para colecionadores.
A sequência das desventuras brasileiras em Berlim teve um epílogo quase 70 anos depois, quando o COB lançou o livro “Sonho e Conquista”, lembrando a participação de todos os atletas brasileiros em Jogos Olímpicos. O nome de Oswaldo Domingues não apareceu. Era como se toda aquela saga tivesse sido esquecida. O erro foi reconhecido pela entidade em carta assinada pelo então vice-presidente e secretário-geral, André Gustavo Richer, e endereçada a Domingues. A correspondência garantia que seria feita uma “retificação nos resultados referentes a Berlim”, prestando ao ex-atleta, à época já com 88 anos, uma “justíssima homenagem”, o que realmente aconteceu. Domingues faleceu quatro anos depois, em 2009.
Apesar das frustrações, o Brasil teve dois atletas em finais nos Jogos de 1936. Piedade Coutinho foi a quinta nos 400m livre, resultado que só foi repetido 68 anos depois, com Joanna Maranhão nos 400 m medley, em Atenas-2004. No atletismo, Sylvio de Magalhães Padilha, que seria presidente do COB entre 1963 e 1990, chegou em quinto na decisão dos 400 m com barreiras, depois de ter eliminado o favorito József Kovács, da Hungria, na semifinal.
— Meu avô (Padilha) foi o único que não descuidou da planilha de treinamentos e seguiu se preparando, acreditando que ia competir — diz Alberto Murray Neto, advogado e pesquisador da história olímpica. — A delegação chegou mal preparada por conta dos 20 dias de viagem de navio, e lá na Alemanha não houve disciplina dos atletas e dos dirigentes em manter uma programação de treinos. Ali não havia regras. Era cada um por si.
Diferentes momentos dos Jogos Olímpicos
POR RONALDO HELAL* / FAUSTO AMARO**
Um relato do historiador grego Heródoto nos conta sobre o espanto dos invasores persas, no século V a.C., ao descobrirem que os gregos compareciam em Olímpia para disputar entre si o reconhecimento de seus pares, buscando a glória, e não riquezas. Olímpia, localizada na península do Peloponeso, foi durante mais de mil anos tanto a sede quadrienal de festividades esportivas quanto um local de culto religioso para os gregos. Dentre as narrativas que cercam a origem dos Jogos Olímpicos, uma correlaciona as disputas esportivas aos rituais funerários. Este registro provém usualmente da descrição de Homero na Ilíada, na qual consta que Aquiles promoveu jogos em honra de seu amigo Pátroclo.
Para os cidadãos gregos, a prática corporal era parte fundamental da vida cotidiana. Não se tratava, entretanto, de uma atividade acessível a todos. Escravos e mulheres estavam excluídos. O treinamento físico associado ao cultivo do intelecto era almejado pelas elites, que viam na beleza física a manifestação exterior das virtudes morais de um indivíduo.
A despeito da centralidade de Olímpia, outras cidades organizavam seus próprios Jogos, como era o caso de Neméia, Platéia, Heréia, Delfos, Tebas, Rodes e Atenas. Os quatro maiores Jogos Pan-Helênicos recebiam as seguintes denominações: Olímpicos, Píticos, Nemeus e Ístmico. Tais acontecimentos mesclavam o aspecto religioso, de culto aos deuses do panteão, com o elemento agonístico, próprio das disputas atléticas. Durante o período de realização dos Jogos Olímpicos, as cidades-estado gregas encerravam momentaneamente suas desavenças bélicas.
A programação dos Jogos incluía diversos tipos de corridas, pentatlo, exercícios de luta e pugilato, esportes equestres, além de competições juvenis e disputas artísticas. Notemos que se tratavam de esportes individuais. O conceito de esportes coletivos surge com os Jogos Modernos. O objetivo dos competidores em Olímpia era a vitória. O que pode nos parecer exótico é o fato de os gregos competirem nus. A nudez possuía para eles uma conotação de civilidade.
A partir da conquista romana, no século II d.C., os Jogos experimentaram uma mudança em sua natureza de competição, voltando-se mais para o espetáculo e abandonando progressivamente o teor religioso. Inicialmente combatido, o cristianismo foi legalizado em todo território romano após a publicação do Édito de Milão pelo imperador Constantino. O golpe final foi impetrado por Teodósio I que, em 393, pôs fim às celebrações de cunho pagão. Assim, com base nos registros históricos, temos que os Jogos Olímpicos antigos perduraram de 776 a.C. até 393.
Olímpia foi redescoberta em 1766 pelo arqueólogo britânico Richard Chandler. Ao longo do século XIX, as escavações, conduzidas por franceses e alemães, se intensificaram, aguçando a curiosidade da opinião pública europeia. Nesse mesmo século, a ideia de reinstituir Jogos Olímpicos se disseminava pela Europa.
Pierre de Freddy, o barão de Coubertin, estava ciente desse ambiente de efervescência relacionado ao legado grego antigo. Entusiasta do esporte como instrumento pedagógico, Coubertin buscava também promover a educação física e moral da juventude mundial. Ele apresentou sua ideia de recriação dos Jogos em dois momentos: 1892 e 1894. Neste último, o “Congresso Internacional de Paris para o estudo e a propagação dos princípios do amadorismo”, tem-se como marco histórico a reinstituição dos Jogos Olímpicos, com a formação de um Comitê Olímpico Internacional e a definição da primeira sede dos Jogos. A originalidade da proposta de Coubertin estava na abrangência geográfica — não se tratava de um evento local ou nacional, mas sim de uma empreitada com objetivos globais.
Os Jogos “ressurgem”, mantendo alguns elementos que estavam presentes na Antiguidade, e introduzindo novas tradições, principalmente nas décadas de 1920 e 1930. Os dois pontos de convergência mais emblemáticos talvez sejam a ausência de participação feminina e a exigência do amadorismo. Pierre de Coubertin não aderiu originalmente à ideia de mulheres como atletas, o que só viria a ocorrer em Paris-1900. As duas principais divergências colocadas pelo evento na modernidade encontram-se na laicidade das festividades e em sua mobilidade global.
Ao longo de seus 120 anos de existência, os Jogos Modernos resistiram a duas Guerras Mundiais, aos boicotes de nações durante a Guerra Fria, a atentados terroristas, e sempre estiveram na vanguarda da introdução de novas tecnologias, desde as primeiras transmissões ao vivo até a qualidade de imagem em alta definição contemporânea. O evento olímpico não está assim apartado da história mundial. Ele é parte dela, ao mesmo tempo em que sofre suas influências.
Há, por certo, uma interface entre passado e presente na história dos Jogos Olímpicos, tanto no plano discursivo oficial quanto no senso comum. Porém, é equivocado crer que a modernidade apenas continuou a tradição antiga após um longo intervalo. Gostamos de organizar os fatos em uma perspectiva temporal, em pensar a história pelo viés do progresso inevitável, o que seria o caso da continuidade das Olimpíadas.
As evidências, no entanto, nem sempre suportam essa vontade. O embate entre o desejo manifesto e a realidade factual interpõe-se na comparação entre as Olimpíadas do passado e sua mimese contemporânea. O trabalho do pesquisador é muitas vezes ser o “chato” que tira a graça das opiniões enraizadas no senso comum. Explicar os mitos, não deve, contudo, servir ao (des)propósito de retirar o prazer de assistir aos grandes momentos da história dos Jogos Olímpicos. Afinal, uma das experiências humanas fundamentais advém do ato de entregar-se descompromissadamente aos momentos de emoção proporcionados pelo esporte.
*Ronaldo Helal é professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro(PPGCom/Uerj)
**Fausto Amaro é doutorando no PPGCom/Uerj com bolsa Faperj Nota 10. Sua tese lida, a partir de uma perspectiva histórica, com a relação entre os Jogos Olímpicos e a mídia impressa carioca nas décadas de 1890 a 1930
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