OPINIÃO | JOÃO ROMÃO
Calhou-me viver estes extraordinários tempos de pandemia global em terras asiáticas, muito perto do epicentro deste fenómeno que fez estremecer o planeta e o mantém em estado de alerta permanente. Ou devia, pelo menos, que até agora não se encontrou cura nem vacina para este vírus estranho e devastador, cujo comportamento e impacto escapa largamente à compreensão da medicina e da tecnologia que até agora conseguimos desenvolver. Estava em Janeiro de 2020 no norte do Japão, na ilha de Hokkaido, lugar privilegiado de visita invernal para o turismo chinês, vastos grupos que se deslocam para descobrir invernos magníficos, formidáveis e infinitas paisagens de neve branca e silenciosa, variados desportos invernais, águas termais e outras formas de conforto e aquecimento, festivais no gelo com improváveis esculturas. Foi num desses festivais que chegaram a Sapporo, a cidade onde vivia, as primeiras infecções. Estávamos no início no início de Fevereiro e já a região de Hokkaido contava meia dúzia de casos, nada comparável com os milhares que se começavam a contar na China, a partir da cidade de Wuhan, e que em breve obrigariam o maior país do mundo a gigantesca e compulsiva reclusão, com mais de mil milhões de pessoas fechadas em casa e vastas metrópoles subitamente desertas.
Prepararam-se razoavelmente, os vizinhos: Japão, Coreia ou Singapura, países particularmente expostos a intercâmbios turísticos e comerciais com a China, accionaram os estados de alerta possível, com planos de emergência, sistemáticos sistemas de rastreio, infra-estruturas adequadas para as quarentenas necessárias, apoios possíveis à economia e garantia de equipamentos e utensílios, quer para os hospitais, quer para as pessoas. Sapporo, tornou-se semi-deserta com o súbito desaparecimento do turismo chinês e a reclusão recomendada por um estado de emergência regional rapidamente convocado e com visível impacto, ainda que mais preocupado com recomendações de comportamento social do que imposições de autoridade. O assunto pareceu rapidamente controlado e a propagação atingiu números bastante baixos ainda em Março. Pareceu, apenas.
Entretanto a Europa, a parte rica do planeta, onde se concentram os mais magnânimos exemplos do estado Providência, da capacidade de todos enquanto comunidade tomarmos conta de cada um enquanto pessoa, onde se concentra maior riqueza, tecnologia e conhecimento, essa Europa fechava os olhos. Passaram uns dois meses entre os primeiros casos na Ásia e a sua propagação em Itália, tempo mais do que suficiente para preparar planos de emergência, conhecimento, tecnologia, infra-estruturas e equipamentos, mobilizar os recursos necessários para uma emergência possível. Não se fez nada: o vírus instalou a sua implacável mortandade e acabou por espalhar-se por quase todo o continente: onde melhor se devia estar preparado para combater este improvável inimigo, acabou por se viver uma trágica mortandade, seguramente a maior em tempos de paz a que assistimos nos últimos 100 anos.
Falta a segunda volta, no entanto: no Japão onde estou, o tal primeiro impacto que parecia controlado afinal não estava. Abril trouxe uma nova vaga de casos, que já vivi noutra cidade, por coincidências da vida profissional. Essa segunda volta da infecção teve proporções maiores que a primeira, tal como se verificou noutros países vizinhos bastante bem preparados para enfrentar o problema, como a Coreia ou Singapura. Fecho das fronteiras com viagens internacionais reduzidas ao mínimo e quarentena obrigatória para quem chega, rastreio sistemático de todos os novos casos e isolamento obrigatório de quem contactou pessoas infectadas são medidas essenciais para que este controlo seja razoavelmente eficaz – e estamos para ver se o será mesmo. Essa segunda volta também pode chegar à Europa, onde o número de casos parece ter reduzido o suficiente para relaxar as medidas de controlo e reabrir a sociedade ao contacto e à interacção. Há toda uma economia para reativar – e em particular a que vive do turismo. Ao contrário do que acontece na Ásia, abrem-se as rotas do turismo internacional: aviões com lotação máxima e deslocações estivais a países estrangeiros, quando afinal são nacionais os sistemas de saúde e não há a mais remota hipótese de acompanhar processos internacionais de transmissão de infecções – nem identificação de contactos além-fronteiras, nem imposição de isolamento a potenciais infectados. Tal como aconteceu na primeira vaga de transmissão deste vírus, a Europa continua a não aprender com as experiências e as práticas de quem está a viver estes problemas com dois meses de avanço – o continente asiático. Visto da longínqua Ásia, é de terror o filme a que assistimos na Europa actual: se tal como na Ásia houver uma segunda ronda de propagação do vírus mais intensa do que a primeira, assistiremos a uma matança sem precedentes no continente europeu.
João Romão
Doutorado em Turismo pela Universidade do Algarve. Professor Associado na Universidade Yasuda em Hiroshima, Japão. Natural de Vila Real de Santo António
jornaldoalgarve.pt
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