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sábado, 16 de maio de 2020

É vergonha ter fome? Insegurança alimentar em Portugal Actualmente pode não se morrer de fome, mas vive-se em insegurança alimentar e com carências específicas. Elas estão já a ser enormes.

Isabel do Carmo





É vergonha ter fome? Insegurança alimentar em Portugal 

Actualmente pode não se morrer de fome, mas vive-se em insegurança alimentar e com carências específicas. Elas estão já a ser enormes.



As imagens que nos chegam dos que actualmente procuram comida mostram cidadãos que tapam o rosto e se escondem porque têm vergonha. É assim e sempre foi assim por todo o lado. Só aqueles que já chegaram à desumanização da desnutrição e da caquexia em países de fome é que já não têm energia para se esconder das fotografias e das câmaras de televisão. Tal como os que mendigam na rua nas zonas urbanas dos países desenvolvidos. Mas por trás há uma multidão, que não tem com que se alimentar e tem vergonha. Quando quem devia ter vergonha são os que são responsáveis por não haver repartição. Mas este sentimento tão generalizado de esconder a fome, como se ela atingisse a própria dignidade, é caso para um aprofundamento social, antropológico e histórico, porque decerto diz respeito às estruturas humanas de forma profunda.
Estamos neste momento no nosso país na altura de olhar para uma situação de fome, de insegurança alimentar e de carências. Uma situação nova porque há novos pobres. O vírus desta pandemia pode causar doença e morte. A falta de alimentos, que a acompanha e vai acompanhar, diz respeito à sobrevivência do corpo e da saúde. Morria-se de fome em Portugal até ao 25 de Abril de 1974, tal como constava em declarações de óbito. Actualmente pode não se morrer de fome, excepto em casos de grande marginalização social. Mas vive-se em insegurança alimentar e com carências específicas. Elas estão já a ser enormes. As causas estão nas desigualdades e no sistema que tem um nome – capitalismo.






Há pois fome, insegurança alimentar e carências específicas. As consequências não dizem respeito ao Ministério da Saúde, mas a todos os ministérios, ao Governo, à Assembleia, e sobretudo à Comissão Europeia. Estivessem todos à altura da capacidade do SNS português. E as soluções têm que ser urgentes! Ao fim de cerca de quarenta dias de greve da fome, morre-se. Mas a comer uns bocadinhos, uma certa quantidade mínima de calorias, sobrevive-se anos. E adoece-se durante anos, mais fraco, com menos energia, com menos capacidade cognitiva, com mais vulnerabilidade à depressão e às infecções. A tirar de si próprio para dar aos filhos. A ganhar vergonha e a perder dignidade. É isto que está a acontecer em 2017, o 2.º Inquérito Alimentar Nacional e de Actividade Física (IANAF) (coordenado por Carla Lopes, do Instituto de Saúde Pública do Porto) apresentava os resultados dos dados colhidos entre 2015-2016 (estávamos a sair da crise), que se passa a transcrever: “10% das famílias em Portugal experimentaram insegurança alimentar, ou seja, tiveram dificuldade, durante esse período, de fornecer alimentos suficientes a toda a família devido à falta de recursos financeiros. A maioria destas famílias tem menores de 18 anos.” 





Admitamos que este número desceu visto que o desemprego baixou e a taxa de pobreza passou de 25% para 17% (Farinha Rodrigues). Mas são 17%. Ou seja: eram, até início de Março de 2020. Actualmente há mais 75.000 desempregados, há um milhão de trabalhadores em lay-off, mas só 200.000 vão receber nas próximas semanas, por natural atraso administrativo, apesar do grande esforço dos funcionários da Segurança Social. E há os novos pobres. Há um milhão de empresas que são empresas sem trabalhadores (José Maria Castro Caldas, entrevista de Daniel Oliveira, podcast a 6.5.2020). Isto significa que o “patrão” é ao mesmo tempo o gerente e o trabalhador. Não pôde entrar em lay-off, nem está desempregado. Uma espécie de “Olívia patroa e Olívia empregada”, criação da Ivone Silva em tempos passados. Há todos os trabalhadores do espectáculo, alguns em lay-off, outros precários. Há os trabalhadores do turismo, a maior parte sazonais e precários. As empregadas domésticas, que, não tendo contrato, não podem ter direito a lay-off, mesmo descontando para a segurança social. E os que estão em algumas empresas em lay-off total ou parcial, reduzindo muito os rendimentos, sabem que “lá em cima” são distribuídos dividendos. Vergonha!
Tudo isto que se descreve é multidão. São os que tapam a cara na fila da Amadora a caminho do centro islâmico, são os que vão ao Banco Alimentar, são os descartados dos bairros pobres do Pragal, são os que tentam organizar-se no bairro da Cova da Moura. São as “pessoas normais” (como se diz!) que pedem aos amigos e à família. E desta esperam muitas vezes a factura: culpabilizações e conselhos.



Mas não há só insegurança alimentar. Há algo mais escondido, mas muito alastrado que são as carências específicas em nutrientes. Volto aos resultados do IANAF: “1 em cada 2 portugueses não consome a quantidade de fruta e hortícolas recomendada pela Organização Mundial da Saúde.” Ou seja, pode calcular-se que metade dos portugueses não come vitaminas e sais minerais em quantidade suficiente para ter uma boa saúde. Isto basta para dar o retrato da situação e não é preciso ir aos detalhes da carne, do peixe e dos lacticínios. Não se poderá dizer que metade dos portugueses têm insegurança alimentar, eles eram apenas 10%. Mas talvez se possa dizer que a maioria destes 50% não compra fruta e vegetais, porque os considera dispensáveis e não “enchem”.
Neste momento, o Banco Alimentar está a entregar estes alimentos perecíveis, até porque não têm tempo de “perecer” porque ao fim do dia já desapareceu tudo. Mas habitualmente os apoios das várias fontes não incluem fruta e hortícolas. No entanto, o inquérito alimentar baseia-se no que as pessoas dizem que comem e aí também funciona a vergonha e o socialmente desejável, como em todos os inquéritos. Mas outra coisa é o que têm de facto dentro do corpo.
Já no século XX, investigadores de países escandinavos, da Holanda e do Reino Unido foram dosear vitaminas e sais minerais no sangue de uma amostra de cidadãos e concluíram pela existência de carências numa certa percentagem. Estamos a falar de países ricos. Inspirada pela leitura desses trabalhos, elaborei com outros investigadores um projecto para avaliar a situação portuguesa com doseamentos no sangue. Estendi a mão (é o termo) a várias instituições e fui recebendo várias negativas. A questão das carências não é suficientemente atractiva. Desistimos. Nesta área, apenas a Sociedade Portuguesa de Hematologia fez uma investigação durante a crise da troika e concluiu pela existência de uma percentagem importante de anemias por falta de ferro. E o grupo do Prof. Pedro Moreira doseou a vitamina D em idosos e concluiu pela sua carência. Mas essa era sobretudo por falta de sol e por estarem “confinados” em lares. Não entra o sol, mas entrou a covid-19.





Por enquanto ainda só temos os dados do trabalho e ainda não temos, que eu saiba, os dados da oferta alimentar, que não tem faltado. Mas sabemos que a crise será também da oferta e, portanto, do custo. Entretanto a Comissão Europeia delonga-se em discussões, ajustes, burocracias, tribunais.




Com todos estes dados, assumo que os portugueses que já são pobres e mais os novos pobres “bem vestidinhos” terão muito mais insegurança alimentar, muito mais carências, muito mais reflexos na saúde a longo prazo. E vergonha. Que deviam perder.





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