Muito longe ainda de haver electricidade e congeladores, em pleno e tórrido Verão lisboeta havia sorvetes e bebidas frias. Como tal era possível? É uma longa história de carroças, barcos e animais.
Foi a 6 de Junho de 1775 que Lisboa assistiu a uma das suas maiores festas de sempre. Vinte anos depois do terramoto, era inaugurada a estátua de D. José I, que ainda hoje está no Terreiro do Paço.
A presidir, os dois protagonistas do reerguer da cidade – o Rei e o mais famoso dos seus ministros, o marquês de Pombal. A lista do que se comeu e bebeu é curiosa aos olhos de hoje. Estão lá 194 frangos, 291 frangas, 28 leitoas, 459 galinhas, 230 cocos, 624 arrobas de neve, 170 perus, 26 peruas, 312 pombos e cinco barris de "azeitonas de França e Sevilha".
Desta lista, talvez o leitor mais atento tenha reparado num item: as 624 arrobas (cerca de 9.360 quilos) de neve. Como era possível haver neve em Lisboa no Verão, num século tão distante da era dos congeladores? E para que serviam as "734 colherzinhas para os copos de neve", que também estão na lista?
Para os habitantes de Lisboa, porém, a neve não era uma novidade. Por exemplo, muito antes disso, em 1612, na peça El Burlador de Sevilla, o espanhol Tirso de Molina escrevia que se via em Lisboa "nieve de sierra de Estrella, que por las calles a gritos, puesta sobre las cabezas, la venden".
Não era propriamente neve, mas aquilo a que hoje se chama cubos de gelo, ou granizado. Aparecia em sorvetes e "bebidas nevadas", como eram chamadas. É o mesmo material que vai aparecer em 1877 n’A Tragédia da Rua das Flores, de Eça de Queiroz: "É laranja e morango; delicioso, é da melhor neve que tenho tomado este ano."
Chamava-se neve porque meses antes, no Inverno serrano, tinha sido neve. Depois de recolhida, era armazenada em poços e calcada com maços de madeira até ficar gelo – gelo que na Primavera era cortado em blocos e no Verão viajava para Lisboa.
Onde eram as "fábricas" do gelo que chegava a Lisboa?
Essencialmente, três serras: Lousã, Estrela e Montejunto. O gelo era transportado até aos rios mais próximos (Zêzere e Tejo), sendo fluvial o último troço da viagem até Lisboa.
A neve chegava a Lisboa vinda de três serras
A neve chegava a Lisboa vinda de três serras
A produção de gelo na serra de Montejunto (concelhos de Alenquer e Cadaval) é mais recente, remontando ao século XVIII. A razão deve-se ao desperdício de produto que vinha das outras duas serras mais distantes (Lousã e Estrela). Muita dessa neve derretia na viagem. Por isso, começou a construir-se, em 1741, uma fábrica de gelo na serra de Montejunto, a 40 km. Não havia neve: a água congelava devido às baixas temperaturas do local. A fábrica ainda pode ser visitada.
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É provável que a moda tenha chegado dos países europeus, bem servidos de neve. Nascia assim uma profissão: os neveiros, que por concurso público ganhavam o direito de abastecer a cidade – os contratos eram de três a seis anos.
Para prazer e remédio
Pensa-se que o primeiro neveiro oficial date de 1619.
"Obrigou-se Paulo Domingues, neveiro, morador às Fangas da Farinha [ao Chiado], a meter diariamente em Lisboa, à sua própria custa, desde o 1º de Julho até 30 de Setembro, quatro cargas de neve, de onde quer que a houvesse, tendo cada uma dessas partidas 24 arrobas [360 quilos], pelo menos. A câmara obrigou-se por sua parte a dar uma casa no Terreiro do Paço, e outra à porta de Santa Catarina, para a venda da neve."
Esta última passagem é de Eduardo Freire de Oliveira e está na sua gigantesca obra de 1887 Elementos Para a História do Município de Lisboa. É lá que se encontram vários ofícios e consultas à câmara e ao Rei sobre esta actividade
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Em 1717, fez-se uma separação de neveiros, passando a haver apenas um para a Casa Real e outro para a população em geral. A neve era canalizada preferencialmente para a corte, sobrando pouco para os lisboetas – que, regra geral, ainda a pagavam mais cara.
Tendo-se tornado produto de luxo (e também "remédio, que hoje é quase universal para os febricitantes"), vieram as invejas, as acusações e os relatos de incumprimento entre neveiros. E entre estes e os vendedores de "bebidas frescas de sorvetes e limonadas".
Em finais de setecentos, a neve vendia-se em meia dúzia de estabelecimentos e era armazenada pela cidade. Havia poços na Graça, ucharias (espécie de despensas da Casa Real) no Terreiro do Paço e armazéns na Travessa da Parreirinha (actual Rua Capelo).
Chegou a iniciar-se a construção de um poço no castelo de São Jorge, "dentro do vão de uma torre, sem uso, que fica ao Norte, da parte da calçada de Santo André".
A neve tornou-se tão apreciada que os neveiros tinham especiais privilégios concedidos pelo Rei no seu transporte, devendo qualquer autoridade que se cruzasse no caminho com um almocreve (quem transportava de facto a neve até Lisboa) facilitar-lhe ao máximo a vida, incluindo no desvio de barcos e animais para ajudar à celeridade da tarefa.
Três anos depois da inauguração da estátua de D. José I, um neveiro chamado Julião Pereira de Castro abriria no mesmo Terreiro do Paço uma loja de bebidas com gelo – chamou-lhe Casa da Neve. Como se pode constatar aqui, esse foi o primeiro nome do que é hoje o Martinho da Arcada, o mais antigo café de Lisboa em funcionamento.
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