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Esta reportagem será contada como se de uma peça de teatro se tratasse. Relata a história de actores e apresentadores que no passado todos queriam ter por perto e que hoje poucos sabem onde estão. Pisaram os palcos mais importantes do País, receberam ovações, vestiram-se nas melhores lojas de Londres e de Nova Iorque, nunca lhes faltou companhia para um copo.
Estão agora em lares ou na solidão de casa, com doenças graves, reformas que não chegam para a renda ou visitas contadas pelos dedos de uma só mão.
São personagens unidas por um currículo glorioso e por um futuro incerto; Graça Lobo, de 79 anos, interpretou peças de Tchekhov e Beckett, vive num lar; Ruy de Carvalho, 91 anos, continua a representar porque de outra forma não teria uma vida desafogada; Eládio Clímaco, 77, deixou de poder trabalhar na RTP e vive assombrado pela morte. Irene Cruz, de 75, diva dos palcos, tem a memória cansada e não trabalha há três anos. António Cordeiro, 59, luta contra uma doença neurodegenerativa, pediu reforma antecipada.
Manuela Maria, de 83 anos, dirige a Casa do Artista. Paulo Sargento é um psicólogo que já trabalhou nesta instituição, com experiência na análise da depressão geriátrica em personalidades que atingiram o estrelato. Falar-se-á da memória, bem como da morte, incontornável, mesmo para quem chegou a cheirar a eternidade.
Acto I
A questão não é ser ou não ser. É deixar de ser
Uma senhora entra em cadeira de rodas na recepção do lar da Santa Casa da Misericórdia de Canha: "Não se assustem! Sou eu", anuncia. Graça Lobo sabe que envelheceu e que ganhou peso mas esquece-se que a sua voz continua inconfundível, prescindindo de apresentações.
Fá-lo porque reconhece ser estranho encontrá-la sozinha, guiada por uma funcionária do lar.
"Mas eu hei -de voltar a ter a minha casa.
E a subir a um palco. Isto, se Deus quiser, é só uma passagem." É de acreditar: a actriz já venceu um grave acidente de viação e um cancro da mama. Ao pé disso, a osteoporose e o enfisema pulmonar são maleitas menores.
O calvário começou quando ficou sem a firma de cosméticos criada pela mãe: "Foi-me roubada por um familiar", acusa. "Era uma empresa tão boa que deu para eu e a minha filha levarmos uma vida despreocupada. Depois, foi o horror." Há nove anos deu entrada na Casa do Artista. Antes, para fazer face às despesas, vendeu a casa e quadros que o pintor Júlio Pomar lhe oferecera quando namoraram. "Vendi o último há pouco tempo, já na Casa do Artista. Rendeu 30 mil euros.
Pedi a uma funcionária que me fosse depositar o dinheiro ao banco, dei-lhe o NIB, mas aquela besta seguiu o conselho da bancária e colocou-o noutra conta que tinha, que estava arrestada. Fiquei sem ele", conta. "Hoje não tenho absolutamente nada. Nem a ajuda de ninguém. Tirando a minha filha, a minha família é inexistente." Um assistente social no Hospital de Santa Maria disse-lhe há uns meses aquilo que nunca pensou ouvir: "A senhora é uma sem-abrigo." "Quase lhe dei um par de estalos", recorda. Desde que entrou no lar de Canha, em Agosto, recebeu uma visita: da cantora Dulce Pontes e do marido.
A solidão massacra-a, mas não a derruba. É uma mulher de fibra, com um carácter que muitos avaliam como "difícil". "Vivo bem comigo mesma", afirma. Saiu da Casa do Artista em litígio, dizendo-se vítima de roubos e acusando a instituição de não lhe ter detectado um inchaço nos pés sintomático do enfisema. "São de uma incompetência atroz", vitupera. Manuela Maria, da direcção da instituição, responderia à SÁBADO: "Não falo sobre a Graça Lobo. Se quiserem saber a verdade, perguntem aos outros 71 utentes."
Quarenta anos de carreira resultaram numa reforma de 680 euros. "Quando conto isto a um colega estrangeiro, quase desmaia", diz, frisando os tempos em que comprava roupa elegante nas melhores lojas de Londres e de Nova Iorque, algo que, realça, em Portugal só as Champalimaud faziam. Com rendimentos tão parcos, deposita agora esperanças de recuperação financeira na publicação de um livro de memórias em que promete contar episódios das relações com os homens que amou, importantes figuras da cultura portuguesa.
"Como a forma como o Júlio Pomar me pôs fora de casa. E da sua vida. Foi da noite para o dia.
Ele, ébrio, eu, ébria, às 5h da manhã. Porque eu estava a cantar o Never Never Never, da Shirley Bassey, dentro do carro de um amigo, estacionado à frente dele. Deu -lhe para o ciúme e disse-me: ‘Tu aqui não entras mais.’" Se lhe custou? Nem por isso. "Ele era bem mais velho e queria que eu estivesse a contemplá-lo enquanto pintava, mas eu tinha mais que fazer", remata. Nostalgia, não tem. Só dos palcos. A última peça que fez foi uma adaptação de Tchekhov há três anos. "Se fosse inglesa, com a minha carreira, não passaria por estas dificuldades", diz.
Para os que sentiram a fama e o magnetismo social, uma velhice votada ao esquecimento acarreta problemas adicionais. "A depressão geriátrica aparece depois da reforma, ligada à solidão, à perda de atenção dos amigos e familiares e à incapacidade.
A pessoa sente-se abandonada isso gera stress psico -social.
Os artistas têm uma agravante. Além de perderem a atenção dos mais próximos, também perdem a do público. Quando lidam mal com isso, incorrem numa existência tortuosa e uma possível perturbação depressiva", diz o psicólogo Paulo Sargento. "O próprio Elvis passou a interpelar pessoas na rua quando deixaram de lhe fazer caso."
Não é o caso de Irene Cruz. Quem a reconhece de peças como Mãe Coragem ou das telenovelas, continua a cumprimentá-la. Ela retribui. O que a apoquenta é a memória gasta, flagelada, que a obrigou a parar de trabalhar há três anos. Novelas não faz desde 2012. "Olhei para o espelho e reparei que estava esquelética. Eu comia mas o stress estava a destruir-me. Pensei que tinha de parar senão não ia aguentar", confessa. "Chateia-me agora estar a trabalhar menos do que devia. Deixaram de me chamar da televisão. Isso deixa-me triste. Eles esquecem-se dos actores. Nas novelas vemos pessoas que não sabem falar e não têm expressão. Enfim... eu também não queria trabalhar muito porque a minha memória não é o que era. Mas o teatro faz-me falta."
Sem ele, uma escuridão atenuada pela visita das netas e pela companhia dos dois cães, o Boss e a Jenny, baptizada em homenagem à pirata de Brecht.
"Quando me apetece chorar, que faz bem à alma, o Boss sobe para o meu colo e lambe-me as lágrimas." Custa-lhe confessar fraquezas e as memórias do passado assaltam-lhe o quotidiano. Recorda -se do pai, barbeiro em Sacavém, fazer espectáculos de ilusionismo em que participava como assistente, da estreia no Teatro Nacional D. Maria II ainda com Amélia Rey Colaço, do casamento com o encenador João Lourenço, da química em palco com Eunice Muñoz. As fotografias e os posters expostos na sala são excelentes auxiliares – está lá o de Oiçam Como Eu Respiro, a peça que a consagrou. Outras recordações não são tão boas, como a morte do pai com Alzheimer: "Eu e a minha irmã íamos visitá-lo à Casa do Artista e ele já não nos reconhecia." Dessa doença nem quer ouvir falar – uma realidade que a aterroriza sempre que toma medicação para a memória. "Era uma máquina. Decorava tudo. E entregava-me. Porque no teatro temos de tirar o que temos dentro e preencher com as características da personagens. Abusei. Cansei-me cá dentro."
Acto II
Uma casa para onde ir
Tal como Graça, também Irene Cruz tem uma reforma que ronda os 700 euros – um valor alto quando comparado com o auferido por outros actores de menor projecção. "Quero continuar em minha casa. Se não conseguir tratar de mim, tenho a Casa do Artista", diz. A instituição de solidariedade social, inaugurada em 1999, é para os profissionais do mundo do espectáculo um último reduto de dignidade numa actividade absolutamente desregulada e instável.
Transmite-lhes um sentimento contraditório; por um lado, quase todos a querem evitar porque representa o momento em que deixam de ser autónomos, por outro, reconhecem a extrema utilidade de terem uma casa para onde ir na velhice e na doença.
O problema não é novo: "Aliás, está bem melhor agora do que já foi", diz Manuela Maria. "Antes muitos morriam isolados num quarto alugado."
Foi Raul Solnado que trouxe de uma digressão ao Brasil, no final dos anos 60, a ideia de construir um refúgio para os seus colegas decanos, recebendo o apoio do casal Armando Cortez e Manuela Maria, de Carmen Dolores e de muitos outros. Em 1976, começaram à procura de um espaço. Só 30 anos depois começaram a construção num terreno camarário em Carnide, Lisboa, inaugurando um complexo que hoje além do lar tem teatro e centro de formação. O lema está à entrada: "Aqui não é permitido envelhecer."
Não faltam mecanismos para retardar o desgaste: os residentes têm consultas médicas, fisioterapia, ginásio e psicólogo, são convidados para todas as antestreias de teatro e recebem a visita de cantores. Carlos Alberto Moniz foi o último. A estratégia tem resultado com Maria Carolina Martinez, conhecida por "Nini", que apesar de fazer 100 anos em Fevereiro – e não é a mais velha na Casa do Artista – aprendeu ali a usar a Internet. Vem de uma troca de emails com Júlio Isidro. A sua vida conta histórias de outros tempos: o pai, violinista, chegou a tocar para o Rei D. Carlos, ela foi descoberta por um nadador-salvador da Nazaré que a ouviu tocar piano num bar, foi estrela de rádio com a irmã no duo Irmãs Martinez, trabalhou depois na Emissora Nacional.
Em 2005, entrou na Casa. "Tenho Internet, TV cabo e casa de banho privativa. Somos uns privilegiados."
O lar está aberto não só a actores como a todos os profissionais do mundo do espectáculo, de encenadores a electricistas de palco. Miguel Barbosa, de 92 anos escondidos numa cara que não aparenta ter mais de 70, é escritor e dramaturgo. Já assinou mais de 80 títulos e chega com o último, Reflexões na Ardósia a Giz, debaixo do braço. Escreveu-o à mão na Casa do Artista e está já a preparar o próximo. Veio parar a Carnide com a mulher, ex-professora de liceu, porque as reformas eram baixas. "Este é um lugar virado para a memória, para a união e para o carinho que, ao mesmo tempo, promove a actividade constante. Ainda assim, encontramos aqui pessoas traumatizadas e infelizes pelo abandono a que foram confinadas. Somos um País de memória curta, onde o valor só é reconhecido após a morte", diz.
Manuela Maria só tem pena que haja figuras do espectáculo não associadas à Casa do Artista: "Principalmente, os mais jovens. Dizem que ainda são muito novos para pensar nisso. Mas se não pensam no futuro deles, que pensem em ajudar os colegas que cá estão", diz. Soma -se a falta de atenção dos familiares: "Quando não os visitam recebem logo uma chamada minha. É que nós fazemos tudo, mas não substituímos a família." Paulo Sargento fundamenta: "O suporte familiar é essencial para evitar o isolamento."
Para além da ausência de rede familiar, a falta de saúde e a precariedade profissional são os principais motivos de ingresso. "Depois do 25 de Abril os actores deixaram de trabalhar com contrato. Com os recibos verdes, passaram a ser responsáveis pelos seus próprios descontos. Os que descontaram sempre pelo mínimo aperceberam-se tarde que iam ficar com uma reforma baixa", explica Manuela Maria. Poucos são os que superam os 1.000 euros. A maioria ronda os 500 e os 700.
"Em Portugal, não há actores ricos", diz Ruy de Carvalho. Sabe-o por experiência própria: se houvesse, ele, que não tem espaço na sala para mais medalhas, seria um forte candidato. Mas está longe disso.
"Continuo a trabalhar porque gosto, mas também porque preciso de um reforço para a reforma. Acho que mereço viver desafogadamente, como merece toda a gente que trabalhou bem. E vivo. Mas não dá para um cruzeiro, ir a um restaurante e estar à vontade, pagar um bom jantar a um amigo." Por enquanto, está com o espectáculo itinerante Trovas e Canções. Nunca deixou de representar, nem mesmo quando perdeu a mulher, ex-bailarina, companheira de uma vida. Fez a última peça em Julho, tem uma telenovela a arrancar em Janeiro e um papel à espera no Teatro Experimental de Cascais a partir de Abril. "Sou um felizardo por ainda me chamarem enquanto há colegas desempregados e desamparados." Uma situação que atribui a problemas de base: a falta de orçamento para a cultura e de público no teatro. "Ajudaria muito na minha profissão se os responsáveis pela tutela percebessem de cultura", critica.
É um homem em paz consigo mesmo. Em palco, fez de tudo: "Fui rei, médico, bêbedo e maricas. Sou um homem feliz porque me escolheram para papéis de que gostei muito", diz. "Sei que das condecorações que recebi ao proveito que tenho vai uma grande distância. Mas conto com o reconhecimento do público, que continua a acarinhar-me." Diz ter uma criança dentro dele que não o deixa envelhecer. Pensa pouco no passado, excepção para os momentos em que desfia a cara e a voz dos colegas que já partiram; Vasco Santana, João Villaret, Amélia Rey Colaço. Prefere olhar em frente. Trava na morte, aborrecida, porque todos a sabem incontornável. "Prefiro apoiar-me na fé e acreditar que há uma continuidade, que esta energia que tenho passa para outro lado qualquer", diz. "Porque a morte, meu filho, é só um segundo."
Acto III
A morte: um segundo ou a vida toda
Para Eládio Clímaco leva muito mais tempo. Desde que, aos 15 anos, viu o avô morto no seu leito que o fantasma do fim lhe assombra a existência. "Vivi sempre antecipadamente a velhice e a morte", afirma.
A reforma só veio piorar o estado de alma. Após 40 anos de RTP ficou a saber que não podia trabalhar na estação pública com mais de 70. "Uma grande estupidez", atira. De início, soube a férias: agarrou-se ao ginásio para descansar o cérebro e exercitar os músculos.
Mas fartou -se. Então, surgiram as saudades da televisão: a rotina de entrar as 9h, pesquisar, preparar os textos. E com elas, a angústia. "Trabalhar obriga -nos a concentrar a memória e o espírito em determinada coisa. Sem isso, a cabeça esvazia -se, foca-se só nas preocupações", diz. Ainda tentou voltar, mas da televisão não o chamaram e na publicidade respondem-lhe que a sua cara e a sua voz são demasiado conhecidas: "Um contra-senso, não acham?" O antigo apresentador dos Jogos sem Fronteiras e do Festival da Canção está a fazer uma dobragem para um filme animado de Steven Spielberg, a estrear na Netflix.
Foi o único serviço nos últimos tempos. Tem saúde e uma reforma generosa. Não obstante, não consegue atingir a felicidade. Sente que o seu destino ficou traçado desde um desgosto de amor aos 20 anos. Nunca mais assumiu uma relação duradoura. Viveu sempre em casa dos pais, cuidando deles até falecerem. Depois, recebeu em casa um amigo mais velho, pintor, de quem também cuida. "A solidão mora em mim." Na opinião de Paulo Sargento, o segredo está num envelhecimento activo.
No caso dos artistas, alicerçado em duas colunas: "O orgulho numa carreira relevante e a crença de que se vale até ao fim", anuncia. "É preciso envelhecer vivendo, não à espera de morrer. E encontrar um equilíbrio entre o saldo positivo da vida e o investimento no que falta viver."
Essa tem sido a luta de António Cordeiro desde que lhe foi diagnosticada uma doença neurodegenerativa rara: a paralisia supranuclear progressiva. Ainda não tem cura. "No meu último trabalho em televisão, algumas pessoas disseram-me que não entendiam algumas coisas que dizia. Obriguei-me a rever as cenas e tinham razão. Foi assim que entendi que algo de preocupante me estava a acontecer", conta o actor de séries de culto como Claxon e Major Alvega. Além das alterações na fala, a doença causa atrofia muscular, perda dos movimentos oculares e dificuldades de deglutição.
António nunca mais trabalhou. Alocou as poupanças ao tratamento, feito à base de terapêuticas para o Parkinson, mas sem rendimentos nem qualquer apoio social, rapidamente se viu em aperto: "Nós, os actores portugueses, não temos qualquer sistema de protecção social. Enquanto trabalhamos, descontamos sem apelo nem agravo. Mas, quando paramos, ou temos algum dinheiro guardado para sobrevivermos ou então estamos completamente tramados." Contra a sua vontade, pediu reforma. Ainda não sabe quanto vai receber.
Se tamanha injustiça lhe serviu para alguma coisa, foi para perceber que muita gente gosta dele. A 26 de Outubro, num jantar solidário em sua homenagem compareceram mais de 1.000 fãs e amigos. A receita vai cobrir os tratamentos por mais uns tempos. António diz acordar cedo e querer acreditar que nada o afecta. "Mas, quando me vejo ao espelho, sinto que é mais um dia igual aos que tenho vivido ultimamente. Porque não saio de casa como gostaria e tenho de me medicar, porque foi para isso que me levantei", diz. Foi obrigado a pensar na morte precocemente e pede apenas que esta o leve depois dos pais. Espera também que a Medicina encontre uma fórmula para o curar e que possa passar umas férias com a mulher num sítio que não conhece.
O sonho persiste na recta final. Graça Lobo quer encontrar uma casa que lhe dê a estabilidade necessária para voltar aos palcos. Irene acredita que ouvindo o ponto com auriculares poderá voltar a actuar. Quer morrer a saber dizer adeus e com dinheiro para o enterro. Ruy de Carvalho gostava de visitar a China e a Austrália. Manuela Maria almeja a continuidade da Casa do Artista por longos anos. Olha para o céu, pensa em Armando Cortez e em Raul Solnado: "Vejo as estrelas e penso que deve ser tão bom encontrarmo-nos lá em cima."
Esta reportagem será contada como se de uma peça de teatro se tratasse. Relata a história de actores e apresentadores que no passado todos queriam ter por perto e que hoje poucos sabem onde estão. Pisaram os palcos mais importantes do País, receberam ovações, vestiram-se nas melhores lojas de Londres e de Nova Iorque, nunca lhes faltou companhia para um copo.
Estão agora em lares ou na solidão de casa, com doenças graves, reformas que não chegam para a renda ou visitas contadas pelos dedos de uma só mão.
São personagens unidas por um currículo glorioso e por um futuro incerto; Graça Lobo, de 79 anos, interpretou peças de Tchekhov e Beckett, vive num lar; Ruy de Carvalho, 91 anos, continua a representar porque de outra forma não teria uma vida desafogada; Eládio Clímaco, 77, deixou de poder trabalhar na RTP e vive assombrado pela morte. Irene Cruz, de 75, diva dos palcos, tem a memória cansada e não trabalha há três anos. António Cordeiro, 59, luta contra uma doença neurodegenerativa, pediu reforma antecipada.
Manuela Maria, de 83 anos, dirige a Casa do Artista. Paulo Sargento é um psicólogo que já trabalhou nesta instituição, com experiência na análise da depressão geriátrica em personalidades que atingiram o estrelato. Falar-se-á da memória, bem como da morte, incontornável, mesmo para quem chegou a cheirar a eternidade.
Estão agora em lares ou na solidão de casa, com doenças graves, reformas que não chegam para a renda ou visitas contadas pelos dedos de uma só mão.
São personagens unidas por um currículo glorioso e por um futuro incerto; Graça Lobo, de 79 anos, interpretou peças de Tchekhov e Beckett, vive num lar; Ruy de Carvalho, 91 anos, continua a representar porque de outra forma não teria uma vida desafogada; Eládio Clímaco, 77, deixou de poder trabalhar na RTP e vive assombrado pela morte. Irene Cruz, de 75, diva dos palcos, tem a memória cansada e não trabalha há três anos. António Cordeiro, 59, luta contra uma doença neurodegenerativa, pediu reforma antecipada.
Manuela Maria, de 83 anos, dirige a Casa do Artista. Paulo Sargento é um psicólogo que já trabalhou nesta instituição, com experiência na análise da depressão geriátrica em personalidades que atingiram o estrelato. Falar-se-á da memória, bem como da morte, incontornável, mesmo para quem chegou a cheirar a eternidade.
A questão não é ser ou não ser. É deixar de ser
Uma senhora entra em cadeira de rodas na recepção do lar da Santa Casa da Misericórdia de Canha: "Não se assustem! Sou eu", anuncia. Graça Lobo sabe que envelheceu e que ganhou peso mas esquece-se que a sua voz continua inconfundível, prescindindo de apresentações.
Fá-lo porque reconhece ser estranho encontrá-la sozinha, guiada por uma funcionária do lar.
"Mas eu hei -de voltar a ter a minha casa.
E a subir a um palco. Isto, se Deus quiser, é só uma passagem." É de acreditar: a actriz já venceu um grave acidente de viação e um cancro da mama. Ao pé disso, a osteoporose e o enfisema pulmonar são maleitas menores.
O calvário começou quando ficou sem a firma de cosméticos criada pela mãe: "Foi-me roubada por um familiar", acusa. "Era uma empresa tão boa que deu para eu e a minha filha levarmos uma vida despreocupada. Depois, foi o horror." Há nove anos deu entrada na Casa do Artista. Antes, para fazer face às despesas, vendeu a casa e quadros que o pintor Júlio Pomar lhe oferecera quando namoraram. "Vendi o último há pouco tempo, já na Casa do Artista. Rendeu 30 mil euros.
Pedi a uma funcionária que me fosse depositar o dinheiro ao banco, dei-lhe o NIB, mas aquela besta seguiu o conselho da bancária e colocou-o noutra conta que tinha, que estava arrestada. Fiquei sem ele", conta. "Hoje não tenho absolutamente nada. Nem a ajuda de ninguém. Tirando a minha filha, a minha família é inexistente." Um assistente social no Hospital de Santa Maria disse-lhe há uns meses aquilo que nunca pensou ouvir: "A senhora é uma sem-abrigo." "Quase lhe dei um par de estalos", recorda. Desde que entrou no lar de Canha, em Agosto, recebeu uma visita: da cantora Dulce Pontes e do marido.
A solidão massacra-a, mas não a derruba. É uma mulher de fibra, com um carácter que muitos avaliam como "difícil". "Vivo bem comigo mesma", afirma. Saiu da Casa do Artista em litígio, dizendo-se vítima de roubos e acusando a instituição de não lhe ter detectado um inchaço nos pés sintomático do enfisema. "São de uma incompetência atroz", vitupera. Manuela Maria, da direcção da instituição, responderia à SÁBADO: "Não falo sobre a Graça Lobo. Se quiserem saber a verdade, perguntem aos outros 71 utentes."
Quarenta anos de carreira resultaram numa reforma de 680 euros. "Quando conto isto a um colega estrangeiro, quase desmaia", diz, frisando os tempos em que comprava roupa elegante nas melhores lojas de Londres e de Nova Iorque, algo que, realça, em Portugal só as Champalimaud faziam. Com rendimentos tão parcos, deposita agora esperanças de recuperação financeira na publicação de um livro de memórias em que promete contar episódios das relações com os homens que amou, importantes figuras da cultura portuguesa.
"Como a forma como o Júlio Pomar me pôs fora de casa. E da sua vida. Foi da noite para o dia.
Ele, ébrio, eu, ébria, às 5h da manhã. Porque eu estava a cantar o Never Never Never, da Shirley Bassey, dentro do carro de um amigo, estacionado à frente dele. Deu -lhe para o ciúme e disse-me: ‘Tu aqui não entras mais.’" Se lhe custou? Nem por isso. "Ele era bem mais velho e queria que eu estivesse a contemplá-lo enquanto pintava, mas eu tinha mais que fazer", remata. Nostalgia, não tem. Só dos palcos. A última peça que fez foi uma adaptação de Tchekhov há três anos. "Se fosse inglesa, com a minha carreira, não passaria por estas dificuldades", diz.
Para os que sentiram a fama e o magnetismo social, uma velhice votada ao esquecimento acarreta problemas adicionais. "A depressão geriátrica aparece depois da reforma, ligada à solidão, à perda de atenção dos amigos e familiares e à incapacidade.
A pessoa sente-se abandonada isso gera stress psico -social.
Os artistas têm uma agravante. Além de perderem a atenção dos mais próximos, também perdem a do público. Quando lidam mal com isso, incorrem numa existência tortuosa e uma possível perturbação depressiva", diz o psicólogo Paulo Sargento. "O próprio Elvis passou a interpelar pessoas na rua quando deixaram de lhe fazer caso."
Não é o caso de Irene Cruz. Quem a reconhece de peças como Mãe Coragem ou das telenovelas, continua a cumprimentá-la. Ela retribui. O que a apoquenta é a memória gasta, flagelada, que a obrigou a parar de trabalhar há três anos. Novelas não faz desde 2012. "Olhei para o espelho e reparei que estava esquelética. Eu comia mas o stress estava a destruir-me. Pensei que tinha de parar senão não ia aguentar", confessa. "Chateia-me agora estar a trabalhar menos do que devia. Deixaram de me chamar da televisão. Isso deixa-me triste. Eles esquecem-se dos actores. Nas novelas vemos pessoas que não sabem falar e não têm expressão. Enfim... eu também não queria trabalhar muito porque a minha memória não é o que era. Mas o teatro faz-me falta."
Sem ele, uma escuridão atenuada pela visita das netas e pela companhia dos dois cães, o Boss e a Jenny, baptizada em homenagem à pirata de Brecht.
"Quando me apetece chorar, que faz bem à alma, o Boss sobe para o meu colo e lambe-me as lágrimas." Custa-lhe confessar fraquezas e as memórias do passado assaltam-lhe o quotidiano. Recorda -se do pai, barbeiro em Sacavém, fazer espectáculos de ilusionismo em que participava como assistente, da estreia no Teatro Nacional D. Maria II ainda com Amélia Rey Colaço, do casamento com o encenador João Lourenço, da química em palco com Eunice Muñoz. As fotografias e os posters expostos na sala são excelentes auxiliares – está lá o de Oiçam Como Eu Respiro, a peça que a consagrou. Outras recordações não são tão boas, como a morte do pai com Alzheimer: "Eu e a minha irmã íamos visitá-lo à Casa do Artista e ele já não nos reconhecia." Dessa doença nem quer ouvir falar – uma realidade que a aterroriza sempre que toma medicação para a memória. "Era uma máquina. Decorava tudo. E entregava-me. Porque no teatro temos de tirar o que temos dentro e preencher com as características da personagens. Abusei. Cansei-me cá dentro."
Acto II
Uma casa para onde ir
Tal como Graça, também Irene Cruz tem uma reforma que ronda os 700 euros – um valor alto quando comparado com o auferido por outros actores de menor projecção. "Quero continuar em minha casa. Se não conseguir tratar de mim, tenho a Casa do Artista", diz. A instituição de solidariedade social, inaugurada em 1999, é para os profissionais do mundo do espectáculo um último reduto de dignidade numa actividade absolutamente desregulada e instável.
Transmite-lhes um sentimento contraditório; por um lado, quase todos a querem evitar porque representa o momento em que deixam de ser autónomos, por outro, reconhecem a extrema utilidade de terem uma casa para onde ir na velhice e na doença.
O problema não é novo: "Aliás, está bem melhor agora do que já foi", diz Manuela Maria. "Antes muitos morriam isolados num quarto alugado."
Foi Raul Solnado que trouxe de uma digressão ao Brasil, no final dos anos 60, a ideia de construir um refúgio para os seus colegas decanos, recebendo o apoio do casal Armando Cortez e Manuela Maria, de Carmen Dolores e de muitos outros. Em 1976, começaram à procura de um espaço. Só 30 anos depois começaram a construção num terreno camarário em Carnide, Lisboa, inaugurando um complexo que hoje além do lar tem teatro e centro de formação. O lema está à entrada: "Aqui não é permitido envelhecer."
Não faltam mecanismos para retardar o desgaste: os residentes têm consultas médicas, fisioterapia, ginásio e psicólogo, são convidados para todas as antestreias de teatro e recebem a visita de cantores. Carlos Alberto Moniz foi o último. A estratégia tem resultado com Maria Carolina Martinez, conhecida por "Nini", que apesar de fazer 100 anos em Fevereiro – e não é a mais velha na Casa do Artista – aprendeu ali a usar a Internet. Vem de uma troca de emails com Júlio Isidro. A sua vida conta histórias de outros tempos: o pai, violinista, chegou a tocar para o Rei D. Carlos, ela foi descoberta por um nadador-salvador da Nazaré que a ouviu tocar piano num bar, foi estrela de rádio com a irmã no duo Irmãs Martinez, trabalhou depois na Emissora Nacional.
Em 2005, entrou na Casa. "Tenho Internet, TV cabo e casa de banho privativa. Somos uns privilegiados."
O lar está aberto não só a actores como a todos os profissionais do mundo do espectáculo, de encenadores a electricistas de palco. Miguel Barbosa, de 92 anos escondidos numa cara que não aparenta ter mais de 70, é escritor e dramaturgo. Já assinou mais de 80 títulos e chega com o último, Reflexões na Ardósia a Giz, debaixo do braço. Escreveu-o à mão na Casa do Artista e está já a preparar o próximo. Veio parar a Carnide com a mulher, ex-professora de liceu, porque as reformas eram baixas. "Este é um lugar virado para a memória, para a união e para o carinho que, ao mesmo tempo, promove a actividade constante. Ainda assim, encontramos aqui pessoas traumatizadas e infelizes pelo abandono a que foram confinadas. Somos um País de memória curta, onde o valor só é reconhecido após a morte", diz.
Manuela Maria só tem pena que haja figuras do espectáculo não associadas à Casa do Artista: "Principalmente, os mais jovens. Dizem que ainda são muito novos para pensar nisso. Mas se não pensam no futuro deles, que pensem em ajudar os colegas que cá estão", diz. Soma -se a falta de atenção dos familiares: "Quando não os visitam recebem logo uma chamada minha. É que nós fazemos tudo, mas não substituímos a família." Paulo Sargento fundamenta: "O suporte familiar é essencial para evitar o isolamento."
Para além da ausência de rede familiar, a falta de saúde e a precariedade profissional são os principais motivos de ingresso. "Depois do 25 de Abril os actores deixaram de trabalhar com contrato. Com os recibos verdes, passaram a ser responsáveis pelos seus próprios descontos. Os que descontaram sempre pelo mínimo aperceberam-se tarde que iam ficar com uma reforma baixa", explica Manuela Maria. Poucos são os que superam os 1.000 euros. A maioria ronda os 500 e os 700.
"Em Portugal, não há actores ricos", diz Ruy de Carvalho. Sabe-o por experiência própria: se houvesse, ele, que não tem espaço na sala para mais medalhas, seria um forte candidato. Mas está longe disso.
"Continuo a trabalhar porque gosto, mas também porque preciso de um reforço para a reforma. Acho que mereço viver desafogadamente, como merece toda a gente que trabalhou bem. E vivo. Mas não dá para um cruzeiro, ir a um restaurante e estar à vontade, pagar um bom jantar a um amigo." Por enquanto, está com o espectáculo itinerante Trovas e Canções. Nunca deixou de representar, nem mesmo quando perdeu a mulher, ex-bailarina, companheira de uma vida. Fez a última peça em Julho, tem uma telenovela a arrancar em Janeiro e um papel à espera no Teatro Experimental de Cascais a partir de Abril. "Sou um felizardo por ainda me chamarem enquanto há colegas desempregados e desamparados." Uma situação que atribui a problemas de base: a falta de orçamento para a cultura e de público no teatro. "Ajudaria muito na minha profissão se os responsáveis pela tutela percebessem de cultura", critica.
É um homem em paz consigo mesmo. Em palco, fez de tudo: "Fui rei, médico, bêbedo e maricas. Sou um homem feliz porque me escolheram para papéis de que gostei muito", diz. "Sei que das condecorações que recebi ao proveito que tenho vai uma grande distância. Mas conto com o reconhecimento do público, que continua a acarinhar-me." Diz ter uma criança dentro dele que não o deixa envelhecer. Pensa pouco no passado, excepção para os momentos em que desfia a cara e a voz dos colegas que já partiram; Vasco Santana, João Villaret, Amélia Rey Colaço. Prefere olhar em frente. Trava na morte, aborrecida, porque todos a sabem incontornável. "Prefiro apoiar-me na fé e acreditar que há uma continuidade, que esta energia que tenho passa para outro lado qualquer", diz. "Porque a morte, meu filho, é só um segundo."
Acto III
A morte: um segundo ou a vida toda
Para Eládio Clímaco leva muito mais tempo. Desde que, aos 15 anos, viu o avô morto no seu leito que o fantasma do fim lhe assombra a existência. "Vivi sempre antecipadamente a velhice e a morte", afirma.
A reforma só veio piorar o estado de alma. Após 40 anos de RTP ficou a saber que não podia trabalhar na estação pública com mais de 70. "Uma grande estupidez", atira. De início, soube a férias: agarrou-se ao ginásio para descansar o cérebro e exercitar os músculos.
Mas fartou -se. Então, surgiram as saudades da televisão: a rotina de entrar as 9h, pesquisar, preparar os textos. E com elas, a angústia. "Trabalhar obriga -nos a concentrar a memória e o espírito em determinada coisa. Sem isso, a cabeça esvazia -se, foca-se só nas preocupações", diz. Ainda tentou voltar, mas da televisão não o chamaram e na publicidade respondem-lhe que a sua cara e a sua voz são demasiado conhecidas: "Um contra-senso, não acham?" O antigo apresentador dos Jogos sem Fronteiras e do Festival da Canção está a fazer uma dobragem para um filme animado de Steven Spielberg, a estrear na Netflix.
Foi o único serviço nos últimos tempos. Tem saúde e uma reforma generosa. Não obstante, não consegue atingir a felicidade. Sente que o seu destino ficou traçado desde um desgosto de amor aos 20 anos. Nunca mais assumiu uma relação duradoura. Viveu sempre em casa dos pais, cuidando deles até falecerem. Depois, recebeu em casa um amigo mais velho, pintor, de quem também cuida. "A solidão mora em mim." Na opinião de Paulo Sargento, o segredo está num envelhecimento activo.
No caso dos artistas, alicerçado em duas colunas: "O orgulho numa carreira relevante e a crença de que se vale até ao fim", anuncia. "É preciso envelhecer vivendo, não à espera de morrer. E encontrar um equilíbrio entre o saldo positivo da vida e o investimento no que falta viver."
Essa tem sido a luta de António Cordeiro desde que lhe foi diagnosticada uma doença neurodegenerativa rara: a paralisia supranuclear progressiva. Ainda não tem cura. "No meu último trabalho em televisão, algumas pessoas disseram-me que não entendiam algumas coisas que dizia. Obriguei-me a rever as cenas e tinham razão. Foi assim que entendi que algo de preocupante me estava a acontecer", conta o actor de séries de culto como Claxon e Major Alvega. Além das alterações na fala, a doença causa atrofia muscular, perda dos movimentos oculares e dificuldades de deglutição.
António nunca mais trabalhou. Alocou as poupanças ao tratamento, feito à base de terapêuticas para o Parkinson, mas sem rendimentos nem qualquer apoio social, rapidamente se viu em aperto: "Nós, os actores portugueses, não temos qualquer sistema de protecção social. Enquanto trabalhamos, descontamos sem apelo nem agravo. Mas, quando paramos, ou temos algum dinheiro guardado para sobrevivermos ou então estamos completamente tramados." Contra a sua vontade, pediu reforma. Ainda não sabe quanto vai receber.
Se tamanha injustiça lhe serviu para alguma coisa, foi para perceber que muita gente gosta dele. A 26 de Outubro, num jantar solidário em sua homenagem compareceram mais de 1.000 fãs e amigos. A receita vai cobrir os tratamentos por mais uns tempos. António diz acordar cedo e querer acreditar que nada o afecta. "Mas, quando me vejo ao espelho, sinto que é mais um dia igual aos que tenho vivido ultimamente. Porque não saio de casa como gostaria e tenho de me medicar, porque foi para isso que me levantei", diz. Foi obrigado a pensar na morte precocemente e pede apenas que esta o leve depois dos pais. Espera também que a Medicina encontre uma fórmula para o curar e que possa passar umas férias com a mulher num sítio que não conhece.
O sonho persiste na recta final. Graça Lobo quer encontrar uma casa que lhe dê a estabilidade necessária para voltar aos palcos. Irene acredita que ouvindo o ponto com auriculares poderá voltar a actuar. Quer morrer a saber dizer adeus e com dinheiro para o enterro. Ruy de Carvalho gostava de visitar a China e a Austrália. Manuela Maria almeja a continuidade da Casa do Artista por longos anos. Olha para o céu, pensa em Armando Cortez e em Raul Solnado: "Vejo as estrelas e penso que deve ser tão bom encontrarmo-nos lá em cima."
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